Vá e veja, de Elem Klimov
Idi i Smotri, URSS, 1985


A fisionomia da guerra

O campo de batalha é um campo de percepção – e não existe guerra cirúrgica, praticada sob anestesia e com materiais esterilizados. Guerra é necessariamente uma experiência de dor e perda: Elém Klimov realiza Vá e Veja partindo destes princípios. Se em Tempos de Guerra Godard optou por rostos inexpressivos e pela desdramatização irrestrita, Klimov busca aqui o oposto, impondo seu filme pela força da expressão e da dramatização (além da cuidadosa composição). Cada close-up de Vá e Veja funciona como um “solilóquio silencioso” (conceito formulado pelo teórico húngaro Béla Balázs) a expressar um ápice de ódio, dor, torpor ou tristeza. O papel da fisionomia e do olhar (este muitas vezes dirigido para o próprio espectador) é sem dúvida alguma fundamental no filme, e reverbera uma antiga relação arte-organicidade.

Vá e Veja possui dois caminhos principais: impacto e estranhamento. Ao transmitir a experiência de guerra do ponto de vista de um adolescente que se juntou à milícia camponesa que auxiliava o Exército Vermelho, o filme justapõe planos em que crueza absoluta e um inusitado lirismo se comunicam diretamente. É assim que vemos balas tracejantes cruzarem sobre a cabeça do menino protagonista do filme, enquanto a vaca que ele e um companheiro haviam roubado é atingida por um dos tiros e cai agonizante: em seguida ao plano detalhe da tremedeira descontrolada do globo ocular da vaca, onde pousa ainda uma mosca, surge a imagem de um sinalizador riscando o céu crepuscular, como um verso romântico dentro daquela poesia fúnebre que parecia apontar para a total fraqueza moral e de espírito. E o jogo de contraste não se limita às imagens, o som também mistura fontes e texturas conflitantes, gerando um conluio que beira a cacofonia. Após um bombardeio aéreo, o som se torna subjetivo, ouvimos o zunido provocado pelas bombas no ouvido do protagonista, assim como participamos de seu conseqüente estado de semi-surdez. Na cena em que ele, ao lado de Glacha (a jovem que se torna sua única companheira numa parte do filme, e que reaparecerá maltratada física e psicologicamente ao final), encontra sua família massacrada e sai correndo até chafurdar num denso lamaçal, alguns acordes de Mozart ameaçam aparecer, mas sons de insetos, ruídos indistintos e timbres sombrios abafam a melodia, como se a lama retivesse as notas, não as deixasse fluir.

O olhar do adolescente vai se tornando cada vez mais lasso, melancólico, perdido. O campo/contra-campo de Vá e Veja ignora a regra dos 30º, trocando as tomadas em diagonal por ângulos retos em que o olho no olho dos personagens se reproduz como olho na câmera: o filme é direto como o seu título, acompanha sem desvios a transformação no olhar e nas atitudes do menino. Num gesto de desespero e impotência ele afunda a cabeça na lama, mas em seguida estará erguendo a voz perante adultos, tomando a decisão de prosseguir e buscar mantimentos para as pessoas que ficaram para trás passando fome. A atuação de Alexéy Krávchenko corresponde à entrega exigida pelo papel – entrega tamanha que havia sempre um psicólogo no set aos seus cuidados.

A seqüência da invasão à aldeia – espécie de clímax tanto da violência e do absurdo quanto do vigor estético extraído desse extremo – pode resultar num exame incansável para obter do caos das imagens um sentido qualquer, embora o crescendo de horror conflua para a ausência de todo sentido. Klimov quer frustrar essa tentativa de dar sentido ao caos. Vá e Veja é um filme turbulento, com poucas pausas para respirar – mesmo na cena em que Glacha começa a dançar de forma brincalhona há uma dissonância sonora e uma melancolia latente impedindo que o riso seja reconfortante. Nos planos-seqüência a angústia não está na dilatação temporal, mas antes na fratura irreversível do tempo, na desordenação dos fatos: a câmera se movimenta para acompanhar um conteúdo dramático tão intenso quanto difuso, uma vez que representa a vida estilhaçada de quem perde a família, perde a infância, perde a noção de realidade, tudo em meio a bombardeios e atrocidades.

Para quem viveu a guerra, o tempo foi subtraído, e não engordado – e a vontade de recuperá-lo é incomensurável. Por isso ele faz retroceder, atirando no pôster de Hitler, as imagens da ascensão do nazismo e da Segunda Guerra, até chegar à foto do ditador ainda bebê no colo da mãe, numa pose de medo e fragilidade perante o mundo. Mais um contraste, mais um estranhamento. Só então o menino pára de atirar e suas lágrimas escorrem, ao passo que o barulho das bombas, os discursos histéricos e o som das multidões em êxtase somem lentamente para dar lugar à belíssima Lacrymosa do Réquiem de Mozart (um austríaco, assim como Hitler). É claramente um momento de sublimação, não só no sentido de fazer desaparecer aquele passado como também de atingir o sublime, o qual chega ao filme através da música (agora límpida, na íntegra, sem interferência de ruídos) e das lágrimas precocemente poluídas pelo horror da guerra. Tomando como base a afirmação de Victor Hugo no prefácio de Cromwell (“o grotesco repousa no reverso do sublime”), é justo dizer que Elém Klimov fez um percurso genuíno.

Luiz Carlos Junior