Walter Salles


Como vê o cinema brasileiro no momento, falando especificamente dos filmes e não dos processos de produção? Que qualidades e defeitos principais você enxerga na nossa produção?

Ônibus 174, Edifício Master, Janela da Alma: Penso que o documentário brasileiro está vivendo uma boa fase, em um momento em que o gênero se revitaliza em vários cantos do mundo.

Na ficção, a situação é outra. Uma cinematografia só existe realmente quando seus mestres filmam com constância, ao mesmo tempo em que jovens cineastas conseguem chegar ao primeiro ou segundo longa, oxigenando a linguagem fílmica. Ora, o que dizer da produção cinematográfica brasileira se o nosso grande mestre, que é Nelson Pereira dos Santos, não filma há anos? Filmes bem-sucedidos com o público e a maior parte da crítica, como Cidade de Deus, são muito importantes para o cinema brasileiro. No entanto, é preciso ter consciência de que é preciso ir além.

Como você entende a relação do realizador de cinema com o público? É possível planejar um projeto para um público?

Não, não se pode nem se deve fazer esse raciocínio.

Como realizador e produtor de cinema, como você vê o modelo atual de produção e exibição no Brasil, os papéis do Estado e da iniciativa privada? Enxerga alguma medida como a mais urgente a ser tomada para melhorá-lo?

Longe do ideal. Fazemos um terço dos filmes que o Irã, por exemplo, produz por ano. Projetos interessantes esbarram em um sistema de captação que privilegia o que é mais facilmente digerível. Um exemplo: se não tivéssemos conseguido uma co-produção com a França, jamais teríamos podido ajudar Karim Aïnouz, que é um cineasta muito talentoso, a realizar Madame Satã.

Sou a favor de uma mudança radical na forma com que se financia cinema no Brasil. Entre outras medidas, sou a favor da criação de um fundo destinado à produção e diversificação do cinema brasileiro, financiado através da taxação do cinema estrangeiro. A taxação só ocorreria a partir de um certo número de cópias, de forma a privilegiar o cinema independente feito nas mais diversas latitudes. Também taxaria o filme estrangeiro na televisão. Não é uma novidade, na França funciona assim. O pessoal do cinema americano não gosta de ouvir esse tipo de sugestão. Os americanos taxam o aço, os sapatos e o suco de laranja brasileiros, mas querem manter o laisser-faire, laisser-passer na área da comunicação. A sopa que eles tem aqui, não tem em nenhum país do mundo.

Mais: sou a favor da criação de leis que obriguem as televisões a investirem uma percentagem do faturamento, como acontece na França, no financiamento de filmes e projetos audiovisuais independentes. Redes de televisão são uma concessão do Estado, mas esquece-se facilmente disso. No Brasil, elas funcionam como cartórios eletrônicos.

De que formas você acha que a projeção conquistada por você no exterior pode ser voltada para o cinema brasileiro como um todo? Você planeja, por exemplo, se dedicar a produzir, permitindo que outros cineastas também cheguem a realizar?

Já faço isso, junto com meu irmão João. A idéia foi utilizar as portas abertas por Central do Brasil para ajudar jovens cineastas a fazerem um primeiro ou segundo filme. Também procuramos viabilizar projetos de documentários de mestres que admiramos, como Eduardo Coutinho e Nelson Pereira dos Santos. Finalmente, emprestamos equipamento sem cobrar para um monte de outros projetos, entre longas, curtas ou documentários. Até quando vamos conseguir produzindo, não sei, até porquê a Videofilmes é altamente deficitária há dois anos. É dificílimo manter um modelo aberto como esse que procuramos estabelecer.

Como você lida com o assédio do estrangeiro para produzir fora do país? De que forma você acha possível mesclar a produção internacional com uma noção de cinema brasileiro, e até onde te interessa ir nesses projetos?

Filtrando. Só considerando projetos que me dizem respeito de um ponto de vista temático. Recusei mais de 50 projetos nesses últimos dois anos, de Frida falado em inglês até filmes grandes, de estúdio.

Se resolvi ir em frente e aceitar o convite para fazer Diários de Motocicleta, é porque os personagens e a idéia de desvendar uma geografia física e humana que nos é própria, a da América Latina, me interessaram. E muito.

Por que você faz cinema?

Porque não sei fazer outra coisa com a mesma entrega e paixão. E para tentar seguir aquilo que dizia Antonioni, a idéia de que debaixo de uma imagem há outra, mais fiel à realidade. E debaixo dessa imagem, há outras mais. E ainda outra. Até chegar perto da verdadeira imagem dessa realidade, misteriosa, que se sente mais do que se vê.

Quais foram suas principais influências, em cinema ou não, na sua formação e no momento atual?

Tantos. Vi e revejo quase tudo do Neo-Realismo, vago pela Nouvelle-vague, Cinema Novo, pelo cinema independente feito pelos diretores ítalo-americanos nos anos 70. Gosto sobretudo de Antonioni e dos cineastas que trataram dos temas da errância e da identidade. Sou fã de Tomas Gutierrez Alea e de Memórias do Subdesenvolvimento. Adoro São Paulo s.a., um filme de uma extraordinária modernidade. Dos filmes recentes, o que mais gostei é Yi-Yi, de Edward Yang.

Que projetos você tem de realização, a curto e a longo prazo? Quais são os próximos trabalhos, e também, o que você deseja conseguir atingir ao longo da sua carreira? (não se tratando aqui de um exercício de futurologia, e sim de falar de desejo de realização pessoal)

Tenho dois roteiros em andamento, ambos com João Emanuel Carneiro. O primeiro fala de futebol como forma de quebrar o apartheid social brasileiro. O segundo fala da perda dos privilégios de uma família burguesa no Rio, através da estória de uma mulher que começa a alugar quartos de seu apartamento a beira-mar para não ser despejada do prédio - com todas as conseqüências, burlescas ou trágicas, que se pode imaginar. Projetos diferentes, mas complementares.