O Rohmer nosso de cada dia



Pascale Ogier e Fabrice Luchini em Noites de Lua Cheia (1984)


Se a chance de se assistir em conjunto os filmes de qualquer cineasta num curto espaço de tempo fornece uma oportunidade ímpar para se conhecer as mais diversas facetas e estágios evolutivos de um trabalho pessoal, no caso de Eric Rohmer isto torna-se ainda mais evidente e acentuado, por se tratar de um autor que constrói sua obra em blocos temáticos. Os Contos Morais, da décadas de 1960/70, as Comédias e Provérbios, dos anos 1980 e os Contos das Quatro Estações, lançados entre 1990 e 1998 compreendem variações dentro de um mesmo tema e, conforme destacou o crítico norte-americano A.O. Scott, "... um filme que, isoladamente, aparente limitações, pode, quando assistido no contexto de seu grupo, adquirir uma notável riqueza". Mas mesmo os filmes que não se encaixam dentro de tais blocos, como A Marquesa D’O (1976) ou A Árvore, o Prefeito e a Mediateca (1993) demonstram intensa coerência com o corpo dos demais.

Tendo preservado unidade e consistência em toda sua obra durante mais de meio século de carreira, Rohmer, com seu rigor formal de herança marcadamente bressoniana, seu apreço por um discreto trabalho de câmera e seu ritmo narrativo nada acelerado, certamente conquistou muitos admiradores fiéis. Mas também vem sendo por muitas vezes taxado como "lento", "contemplativo" e até mesmo "pouco cinematográfico". Para os acostumados ao ritmo quase taquicárdico das produções americanas e os que consideram que as histórias para cinema devem trazer algo de extraordinário, o trabalho de Rohmer pode aparentemente suscitar um forte estranhamento. Só que seus filmes centrados em pensamentos e emoções dos personagens, nos quais muitas vezes pouco ou nada de relevante acontece, parecem ser guiados por um "ritmo da vida", no qual é justamente o simples e o ordinário que se destacam, em personagens de marcada e impressionante humanidade.

Eric Rohmer é um cineasta que, ao longo da carreira, à medida em que sua idade aumentava, foi sofrendo, de forma paradoxal ao menos na temática de seus filmes, um rejuvenescimento aparente. Se os Contos Morais apresentam personagens intelectualizados e demasiado seguros de si em situações que os posicionam ao limiar da tentação, a partir das Comédias e Provérbios o diretor passa a explorar personagens que se caracterizam como jovens comuns em situações prosaicas ou corriqueiras. Certamente esta faceta de exploração do ordinário já estava presente nos Contos Morais, como podemos remeter à longa conversa entre Françoise Fabian e Jean-Louis Trintignant em Minha Noite com Ela, e se acentua bastante no último da série, Amor à Tarde. Mas com as Comédias adquire contornos passíveis de intensa veracidade, atemporalidade e poder de identificação, mesmo estando tais filmes e personagens inequivocamente inseridos nos contextos da França e de sua época.

Vale, por sinal, ressaltar que Rohmer explora como ninguém as mais diversas localidades de seu país, muitas vezes demonstrando uma relação direta entre as ações dos personagens e o clima e o ambiente que os envolve, em especial nos Contos das Quatro Estações, nos quais esta constitui uma das linhas temáticas centrais. E, mesmo conseguindo manter-se completamente distante dos padrões do "filme cartão-postal", acompanhar seu cinema pode resultar numa forma inusitada de conhecer quase toda a França.

Mas, voltemos então a algumas das facetas de Rohmer como um retratista do cotidiano, em especial como estas se apresentam nas Comédias e Provérbios. Uma das mais marcantes delas é a forma intensa e peculiar com a qual consegue filmar o ato de conversar. Trata-se de um cineasta cuja obra é marcada por longos diálogos, que vão de uma densidade quase filosófica (nos Contos Morais), chegando a discussões de ordem política (A Árvore ...), mas, durante o ciclo dos anos 80, como já foi dito, a encenação de tais diálogos atinge registro marcadamente coloquial. Colocando na boca de seus personagens papos sobre amores idealizados e frustrados, ou mesmo abobrinhas, Rohmer consegue fazer com que nos sintamos participando de conversas que muitas vezes podem nos parecer até longas e desinteressantes, levando-nos a instantes de desconcentração. Mas, cá para nós, quantas vezes, no nosso dia-a-dia, durante uma conversa, seja no âmbito profissional ou familiar, seja em uma mesa de bar ou restaurante, não ficamos momentaneamente de saco cheio daquilo que as pessoas dizem a nossa volta? Para ilustrar tal faceta, duas sequências em especial demonstram-se demasiado expressivas. Uma delas, em A Mulher do Aviador, na qual o jovem François segue o tal aviador e encontra a garota Lucie. Enquanto esta passa a ajudá-lo na perseguição, os dois vão se conhecendo, traçando uma prosa absolutamente natural que envolve as tradicionais perguntas: Como você chama? O que estuda? Do que gosta? E por aí vai. A outra em O Raio Verde, quando a sempre entediada Delphine, hospedada em uma casa de praia com pessoas que mal conhece, participa de um almoço no quintal, onde seu assunto predileto é a leveza e o verde das alfaces.

Diversos críticos consideram que as Comédias e Provérbios tenham como tema central a falta de um direcionamento dominante entre a juventude contemporânea à época de sua realização, sempre em situações que envolvem algum tipo de decepção. É certo que tais filmes abraçam diversas etapas do amadurecimento e expectativas amorosas na maior parte das vezes frustradas. Assim seus personagens se apaixonam ou buscam alguma forma de amor idealizado, e muitas vezes não concretizado, onde podemos facilmente identificar situações bastante próximas, quando não idênticas à nossa experiência individual. Quem nunca viveu namoricos de verão como a personagem título de Pauline na Praia ou ficou com a pulga atrás da orelha ao ver a namorada em companhia de um antigo amor como o François de A Mulher do Aviador? Quem nunca se viu dividido entre preservar a segurança de um relacionamento estável, embora por vezes burocrático, e o desejo de liberdade e novas experiências que possui a Louise de Noites de Lua Cheia? A isso podemos somar uma inequívoca sensação de não se encaixar em nada ou lugar nenhum, como a experimentada por Delphine em O Raio Verde ou o desejo de se encontrar um par ideal, mesmo que através de algum tipo de atração unilateral e fantasiosa como a que Sabine desenvolve para com Edmond em O Casamento Perfeito. E, principalmente, assim podemos considerar todos os sentimentos que envolvem a Blanche de O Amigo da Minha Amiga, aquele que me parece o mais emblemático dentro deste viés de temáticas cotidianas: encontros armados; a percepção de que o alvo de nosso interesse amoroso, quando em um contato mais próximo não corresponde, em personalidade, às nossas expectativas; o gradual desenvolvimento de uma atração por alguém que, a princípio, seria uma espécie de fruto proibido, como o namorado da amiga.

Se as situações apresentadas por Rohmer podem ser consideradas banais, o tratamento que lhes é dado pelo diretor jamais pode ser considerado como tal. A visão pessoal de Rohmer sempre apresenta seus personagens imersos em dilemas individuais, que adquirem uma conotação universal, e para com os quais manifestam um comportamento invariavelmente indeciso ao longo de todos os filmes. E muito pensam e muito falam a respeito de sua própria indecisão. É importante salientar como esta indecisão dos personagens parece se acentuar nos momentos em que estes se afastam de seus afazeres habituais, uma vez que grande parte dos filmes se passam em momentos de férias (A Colecionadora, O Joelho de Claire, Pauline na Praia, O Raio Verde, Conto de Verão) ou do surgimento de uma nova etapa na vida dos personagens (Um Casamento Perfeito, Noites de Lua Cheia, Conto de Inverno). O que nos leva a outra característica bastante recorrente em Rohmer: a importância que os franceses, em especial os parisienses, imprimem às férias de verão, algo que se faz notar desde seu primeiro longa, O Signo do Leão, no qual um homem cai em situação de completa miséria quando todos seus amigos se encontram em viagens de veraneio.

E, finalizando, só nos resta constatar que para um diretor francês de mais de 80 anos, é impressionante como todo o universo de Rohmer se aproxima muito mais de nossa realidade do que poderíamos a princípio imaginar. Sendo o Brasil um país com um extenso litoral onde um marcante hábito cultural é ir à praia, a visão dos filmes de Rohmer nos faz concluir que nenhum de nossos cineastas, mesmo aqueles de origem carioca, jamais conseguiu filmar tão bem quanto ele. e de forma tão verossímil, o ato de ir à praia. Ou como algumas vezes determinados personagens podem adquirir um certo quê de brasilidade, como o Octave de Noites de Lua Cheia (magistralmente interpretado por Fabrice Luchini), um sujeito casado que se diz amigo da protagonista Louise, mas passa o tempo todo tentando levá-la para a cama. Curiosamente, também, toda a ambientação de O Amigo da Minha Amiga, com seus condomínios luxuosos e shoppings habitados por jovens financeiramente bem sucedidos, poderia facilmente ser transportada para a Barra da Tijuca, no Rio, ou Alphaville, em São Paulo.

Gilberto Silva Jr.