Personagens em busca de sua autoria



Minha Noite com Ele (1969)


No cinema de Eric Rohmer, os personagens só existem como narração de si mesmos, não por suas atitudes. Eles não são, digamos, frutos de ações. Suas existências são construídas pelos auto-retratos verbais. Falam uns com os outros como forma de auto-conhecimento. Exteriorizando-se pelas palavras, tentam enxergar melhor o interior. São o que dizem ser. Ao optar por lhes dar autonomia sobre suas verdades, Rohmer adota uma postura de observador imparcial. Simula não saber nada sobre as pessoas filmadas por sua câmera. Evitando esquematismos psicologizantes, mostra-os como se estivesse conhecendo-os no filme. São seres incompletos, sempre em construção, sem versões finais. Permanecem, do início ao fim, inconclusos. Suas lógicas, na prática, são ilógicas. Buscam sentidos que não encontram. E o que dizem não corresponde ao que fazem.

É uma gente confusa. E também mutável, vaga e desconexa. Enredados em rocamboles afetivos, desencontros de sentimentos e emoções imprecisas, que os levam a confundir amizade com paixão e vice-versa, eles vivem a bater cabeça e a girar em falso. São modernos à beça. Tal modernidade parece ser incoerente, tema rohmeriano por excelência, com a fachada clássica dos filmes. Falsamente clássica, que se diga logo. Pois a postura do diretor/roteirista oniscientes, que sabem tudo sobre os personagens e resolvem seus conflitos como passe de mágica, está a anos luz da postura de Rohmer. Seus personagens parecem viver com autonomia e não para reproduzir os pensamentos do autor.

Aparentemente, não saem do lugar. É só aparência. Pois a evolução, para Rohmer, está na experiência, não no resultado. Apreende-se algo dos processos sem se aprender com as conclusões dele. Simplesmente porque, ainda em Rohmer, não existem conclusões. Seus filmes não transmitem a idéia de fim, como se o mundo fosse todo ordenado no desfecho. Eles continuam sem imagem. Seus filmes começam e terminam pelo meio. Há algo antes do início e muito após a última imagem. Talvez essa característica explique suas obras aglutinadas em séries temáticas (os Contos Morais, as Comédias e Provérbios, os Contos de Estação). Cada obra desses conjuntos amplia o sentido das outras. São pensadas para existirem em grupos.

Que não se entenda essa prática como elaboração de um sistema de valores. As sistematizações não existem para o cineasta. Seus personagens até as buscam, de modo a tentarem dar coerência aos gestos, mas não conseguem concebê-las. Na definição de Jean-Loup Passek, organizador do Dictionnaire du Cinema Français, "eles confrontam a aparente liberdade de seus atos com a exigência de sua moral e se buscam em alguma parte entre a fé cristã, a aposta pascaliana, a certeza matemática e a tentação libertina", como herdeiros de Rossellini, Dreyer e Bresson, mas sem os silêncios deste último. "Minhas histórias não têm uma moral com verdade conclusiva, mas apenas pensamentos de pessoas enquanto fazem algo", escreveu o autor nos anos 70.

Muitos de seus filmes parecem ser sobre nada. São apenas conversas alinhavadas e sem relevância explícita. Os personagens falam de suas condições afetivas instáveis, em transição ou em crise, seja por dúvidas sobre os sentimentos, pela eminência de uma ruptura ou pela ausência do amor. Rohmer filma o afeto como algo em constante movimento e transformação. Sem âncoras. O amor não é algo explosivo em seu cinema, é uma construção e desconstrução constante. Sempre falta algo. E isso leva os personagens a cair e a se levantar permanentemente em busca do extraordinário dos sentimentos e da esperança de se encontrarem nele. O amor é uma invenção e subterfúgio para o tédio burguês. Rohmer não os julga nem os tipifica socialmente. Deixa sua visão à margem para dar-lhes mais liberdade. Sua direção também é transparente, sem efeitos de estilo ou cenas-sensação. Valorizam os atores e a relação deles com o ambiente (praias, lagos, casas de campo, Paris, subúrbios). Há pouca música e muitos hiatos narrativos.

É um cinema de longas conversas e ausência de eventos/acontecimentos. Interessa-lhe o momento de contato e comunicação entre os seres, justamente para mostrar o desentendimento entre eles e auto-conhecimento de cada um a partir desses encontros. As cenas são amplificadas em sua duração para se tentar encontrar os personagens por trás das imagens. Muitos filmes se passam nas horas ou semanas de folga. São momentos em que os personagens, deixando de ser máquinas produtivas para o capitalismo, tentam encontrar sua identidade afetiva. Daí a multiplicidade de cenas de lazer, ambientadas em restaurantes e cafés, casas de campo e de praia, onde a busca do prazer, sempre problematizada, não livra ninguém da crise e do tédio.

Eric Rohmer nasceu em Nancy, em 1920, e pouco se sabe sobre sua vida. Esse sigilo em que a manteve, e ainda a mantém, enlouquece os críticos-biógrafos. Quem se dispõe a analisar uma obra pela vida do artista fica à deriva. Sabe-se apenas que os pais eram professores, que era leitor voraz de literatura clássica na adolescência, que se tornou cinéfilo quando era aluno do Lycée Henri IV em Paris, tomando intimidade com Frank Capra, Marcel Carné, a vanguarda soviética e os expressionistas alemães, sobretudo Murnau, objeto de estudo de sua tese de doutorado, publicada em 1972, sobre a organização espacial em Fausto. Na militância cinefílica-cineclubista, conheceu André Bazin, Alexandre Autruc, François Truffaut, Jacques Rivette e Jean-Luc Godard, parceiros de Nouvelle Vague.

Rohmer era o mais velho deles. Antes de passar à prática do cinema nos sets de filmagem, foi editor de La gazette du cinéma, nos anos 50, e chefe da redação da Cahiers du Cinéma, de 1957 a 1963. Assinava os artigos com seu nome de registro, Jean-Marie Maurice Scherer. Era um defensor de cineastas americanos sem status artístico. Via no estilo de seus escolhidos uma autoralidade capaz de superar as inevitáveis concessões feitas no roteiro e na produção. Essa marca pessoal estaria na forma com que planejavam e executavam os movimentos de câmera, a direção dos atores e outros elementos da linguagem cinematográfica. Os críticos da revista Positif discordavam dessa visão. Viam filmes, sobretudo, como mensagens, não como formas. Esse embate entre estética e ideologia está longe de acabar. Rohmer, como crítico, foi ortodoxo. Em 1957, escreveu, com Claude Chabrol, O Cinema Segundo Hitchcock, onde explicitava seu pensamento. Decreta o nascimento do cinema moderno com Ano Passado em Marienbad, de Alain Resnais, ao qual definia como cinema cubista.

Nos primeiros curtas-metragens, lançou-se a experimentações, seja nos enquadramentos, seja na montagem não linear, já antecipando a Nouvelle Vague. O primeiríssimo deles, Le Journal dŽun Scélerat (1950), teve mão de amigos (Rivette, Godard). Estreou no longa com O Signo do Leão (1959). Demorou para ser legitimado e reconhecido como um dos grandes do moderno cinema francês dos anos 60. Só veio obter esse diploma da opinião crítica com Minha Noite com Ele (1969). Com o passar dos anos e dos filmes, buscou ausentar-se como diretor, por assim dizer, para a priorizar a vida dentro dos planos, não os planos em si ou a ligação entre eles. Passou a adotar como padrão o plano geral, de modo a inserir melhor o personagem em seu ambiente. Esse estilo pode soar careta para quem curte triques-triques estéticos. Como em algumas obras de Jacques Rivette, porém, a austeridade resulta em leveza. Veterano octogenário, Rohmer, em seus filmes, recusa o posto de sábio. Filma como um jovem confiante na vida e nas dúvidas, sem verdades para transmitir, dotado de frescor narrativo a em busca de uma verdade interna e nunca fechada.

Cléber Eduardo