Patton - Rebelde ou Herói,
de Franklin J. Schaffner


Patton, EUA, 1970



Herói ou Vilão

Os maus – respondeu Jesrad – são sempre infelizes : servem para experimentar um pequeno número de justos espalhados sobre a terra, e não há mal de que não provenha um bem.
Voltaire (Zadig ou o Destino)


Não cheguei a fazer pesquisas para escrever este texto, mas tenho a impressão que a maioria dos filmes de guerra são como parábolas que terminam sempre no mesmo ponto, mudando somente o caminho a se chegar nele. Quer dizer, a conclusão sendo a mesma, fica apenas o interesse de observar a maneira com que o autor busca provar sua idéia.

Estilos, de fato, não faltam. Existe o estilo realista (Os Que Sabem Morrer), o simbólico (Apocalipse Now), existe o ensaísta (Além da Linha Vermelha), ou a epopéia filosófica ('Non' ou a Vã Glória de Mandar); todos esses, no entanto, concordam invariavelmente num ponto: a guerra é realmente estúpida. Para Kubrick, por exemplo, a desmoralização da guerra e dos grandes comandantes parecia ser uma obsessão: Glória Feita de Sangue, Dr. Fantástico, Nascido para Matar... O engraçado é que Kubrick foi um artista ambíguo, misterioso, que sempre parecia dizer uma coisa com a impressão de estar dizendo outra. Acontece que quando a questão era guerra, seu recado se mostrava claro. Usava o caminho ensaísta para mostrar formalmente como a guerra é estúpida.

Não é que a guerra não possa ser representada como uma coisa estúpida, lógico que não. Apenas é estranho que autores sofisticados amoleçam o coração e em alguns casos pareçam tão ingênuos. Em todo o caso, estamos na aurora de uma nova guerra, e ela já vem, como sempre, acompanhada de maniqueísmos de todos os lados; as soluções simples, num mundo sedento por respostas fáceis, batem à nossa porta. A situação, portanto, não é diferente de há um pouco mais de trinta anos, no auge dos movimentos contra-culturais, das grandes manifestações pacifistas. Sendo lançado nesse cenário de “paz e amor”, não é nada espantoso que um filme como Patton tenha sido alvo de tanta controvérsia. Autobiografia de um general linha-dura na segunda guerra mundial, esse filme, que já arrancou muitos aplausos e vaias desde seu lançamento, nunca esteve tão atual. Poderia servir como antídoto, até, ao simplismo oferecido diariamente pelo noticiário internacional.

Mas falemos do general. Se Patton tem uma imagem instigante, é porque encarnou, como nenhum outro, a própria figura da contradição: era um acadêmico que falava grosso, espartano que escrevia versos, general paternalista capaz tanto de esbofetear um soldado quanto beijá-lo. Patton tinha uma pulsão incontrolável pela guerra; num tempo em que é feio gostar de lutar, o filme mostra o general tecendo ternos comentários sobre a beleza de um uniforme iluminado pela noite, assim como um fanático torcedor pode falar da camisa do seu time. É impressionante a cena em que Patton surge num grande campo de batalha devastado pela morte e, depois de olhar os corpos atirados no chão, repete apaixonadamente : “I love it! I love it!”

O diretor Franklin J.Schaffner disse que considera o general Patton “o homem certo, na hora errada.” Quer dizer, se Patton tivesse nascido na antiguidade (e na idéia do general crente em reencarnação isso realmente aconteceu) estaria provavelmente inscrito na mitologia e louvado em versos épicos como um semi-deus. De fato, ele não foi um homem de seu tempo – “eu odeio o século XX”, diz, por sinal, numa das cenas mais bonitas do filme, em que contempla comovido as ruínas dos cartagineses. Porém, e isso é inegável, Patton foi um homem útil para sua época: ajudou, em diversas oportunidades, a derrotar os alemães e livrar do mundo os nazistas. O que nos leva a uma terrível conclusão: um homem aparentemente abominável, justamente pela sua própria natureza abominável e deslocada, presta um serviço inestimável para a ordem universal – e é em cima desse paradoxo assustador que Shaffner constrói seu filme, como se essa idéia instigante atravessasse a obra do início ao fim.

Shaffner nos conduz maliciosamente a um caminho de questionamentos sem respostas, como se seu filme comportasse, ao mesmo tempo, a tese e antítese, com a infinidade de variáveis entre o pró e o contra (raras são as obras assim). O diretor nunca deixa claro se está venerando, ou criticando seu (anti-)herói; ora sentimos afeto pela sua figura, ora irritação, ou revolta, e em determinados momentos até pena ou compaixão. Esse procedimento, de tão ambíguo, chega às vezes a ser irritante ao espectador, e por isso mesmo é que soa tão bem. Pois se o tão saudado Kubrick, em Glória Feita de Sangue, insistia em mostrar um general caricatural e inquestionavelmente demoníaco, Shaffner, por sua vez, nos serve um enigma. 

Os autores do roteiro de Patton são Edmund North e Francis Ford Coppola. Em O Poderoso Chefão, Coppola já abordava a mesma situação delicada: o filho caçula em crise de identidade que abraça um pai que ele sabe criminoso, o mesmo pai obrigado a mandar matar um de seus filhos... A idéia que une Patton a O Poderoso Chefão comporta a mesma complexidade, apresentando assassinos que podem ser simpáticos pais de família ou gangsters que brincam com seus netos – laços de ternura no meio de um banho de sangue. O filósofo Edgard Morin explica: “a arte é o momento de compreensão do ser humano.” Assim, talvez a resposta da pergunta que serve como subtítulo da tradução brasileira (sempre tem que ter um), “herói ou vilão”, possa ser: herói E vilão. O mais bonito no filme, justamente, é essa vontade de dignificar seu personagem, sem jamais poupá-lo. E nessa tentativa, duas imagens, um prólogo e um epílogo, ligam o filme: a de um sanguinário ensinando, com a bandeira americana de fundo, a arte de matar a seus alunos, e o mesmo sanguinário seguindo solitário seu caminho para o esquecimento, consciente de que toda a glória é efêmera.

Nesse meio tempo, Coppola, Norton e Shaffner constroem sua rede de dualidades. Eles não ignoram, por exemplo, a decisão irresponsável que Patton toma quando manda seus soldados para uma batalha arriscada, apenas com o objetivo de se antecipar ao General Montgmomery na conquista. Apesar de sair vitorioso, fica clara a vocação arrivista de Patton, disposto a dar vidas de seu país por causa de uma rivalidade. Shaffner traduz o problema em um plano lindo, onde se vê Patton sentado em seu carro, o rosto no extremo do quadro, com uma expressão fechada e o nariz levantado, a arrogância tentando esconder a insegurança, enquanto os soldados passam esgotados ao seu lado. Um deles diz: “a glória é dele, mas o sangue é nosso.” Nesse momento sabemos que estamos olhando um criminoso de guerra, traindo a ética para obedecer sua lógica de grandeza.

Cada frase, diálogo, e olhar remetem ao jogo de provocação que os autores nos propõe. O roteiro é estruturado de uma maneira bastante simples: uma frase de impacto, bastante dúbia e provocante, fecha sempre uma cena. Para evidenciar a controvérsia de Patton, colocam o comentário dos nazistas, as mensagens de Ike, e até filmes de propaganda e manchetes de jornais. O personagem do General Bradley, por sua vez, nos serve mais ou menos como um espelho do diretor, onde se reflete o duplo sentimento de aprovação e reprovação para com Patton. E a atuação de Karl Mazen nesse papel é quase tão boa quanto a de George C. Scott como Patton (que o interpreta como se tivesse nascido para o papel), com seus olhos demonstrando magnificamente ora a admiração, ora o desencanto que os atos de seu colega lhe proporcionam. Os melhores momentos do filme são justamente aqueles onde fica explícita a diferença entre os dois generais, um fazendo seu trabalho “porque foi treinado para isso” e o outro porque simplesmente gosta .

Já o núcleo dos nazistas oferece momentos discutíveis. Shaffner os usa para demonstrar uma certa superioridade moral da “democracia americana”. Quando a inteligência alemã defende a tese de que Patton não irá lutar na Normandia por ter ficado com a imagem desgastada depois de esbofetear um soldado, o general nazista replica furioso: “e você realmente acredita que eles vão abrir mão de seu melhor general por causa de um soldado?!” – ou seja, a idéia um pouco ufanista que só no glorioso país da liberdade um superior pode ser questionado por causa de um subalterno. Ou ainda, durante a projeção de um filme roubado mostrando o desembarque de Patton e Bradley na Sicília, o espião explica ao mesmo general que este último é um homem simples, que até poderia ser confundido com um soldado, o que nos dias de hoje é “coisa rara em generais”. Ao ouvir a frase o general nazista se vira com olhar de repreensão ao autor da gafe, que coloca prontamente suas desculpas. E ainda tem, é claro, o medo de Rommel em relação a Patton, com um monólogo no final do filme beirando o ridículo.

Na verdade, derrapadas como essa apenas comprovam a coragem do filme em transitar entre dois pólos. Patton não propõe soluções fáceis; é mais uma conversa franca, uma espécie de esfinge que desafia o espectador a rever conceitos e lidar com seus próprios ideais. Em dias de maniqueísmos é bom já ir avisando: Patton é um filme terrivelmente complexo.

Bolivar Torres