Orlando
Senna
Secretário do Audiovisual
No dia 07 de fevereiro de 2003, pouco mais de um mês após
a posse do novo presidente, o novo Secretário do Audiovisual, o
cineasta e professor Orlando Senna, se sentou com Daniel Caetano e Ruy
Gardnier no Rio de Janeiro, e nos concedeu essa longa entrevista.
Como todo início
de administração, é lógico que a entrevista
funciona muito mais como exposição de programa do que análise
de medidas práticas, mas a simples disposição em
ser entrevistado tão longamente por um meio de comunicação
como a Contracampo (que não é um dos grandes da mídia),
mostra as mudanças por que já passa a Secretaria. A entrevista
fica como um importante documento para leitura e releitura futura, e a
ela voltaremos certamente na medida em que o tempo passar.
Daniel Caetano: Para começar, pegamos como documento básico
de estudo o relatório feito a partir do Seminário do Audiovisual,
que é um estudo apontando problemas e propostas, mas que é
sobretudo uma carta de intenções.
Orlando Senna: Eu
considero um diagnóstico e uma via programática.
Daniel: A princípio,
gostaríamos de saber, isso é, são apenas 30 dias
de Governo Lula, mas já está começando a dar pra
saber como é que o "bicho" vai reagir, como a classe
cinematográfica está reagindo, quais são as propostas
correntes...Queríamos, então, reavaliar como é que
está a disposição do Governo no momento em relação
a estas questões apontadas nesse relatório.
Orlando Senna: A disposição
do governo não mudou muito desde esse recente começo. O
que aconteceu nesses últimos 15 dias foi muita movimentação
no setor, aquela coisa de pessoas achando que deveria se repensar a saída
da Ancine para o MiDIC, gente falando que deveria juntar tudo no MinC,
outras para que fosse para o Ministério das Comunicações...
Houve toda uma "rebordosa" que na verdade eu não entendi muito
já que algumas posições, se não eram consenso
real, já eram da grande maioria... Acho que essas movimentações
se acalmaram para se fazer a reunião do dia 12 (Nota do Revisor:
assembléia do Congresso Brasileiro de Cinema) em Brasília.
No geral, nós continuamos no mesmo caminho, nessa primeira arrumação
da "casa do cinema", e vamos cumprir o que o setor de cinema
propôs, que é o tripé ministerial. Depois disso tudo
arrumado, vai se voltar a estudar uma verdadeira reformatação
do universo audiovisual brasileiro – até porque o próprio
MinC está sendo reformatado também. Uma comissão,
da qual faço parte inclusive, fará toda uma reforma no MinC,
pois até agora ele não era um ministério para executar
ou criar políticas públicas, estava sendo usado apenas para
responder a demandas pontuais, não é? Todo um novo desenho
está sendo pensado agora. E aí também a Secretaria
do Audiovisual (SAV) requer algumas mudanças, para que depois se
volte a discutir as propostas iniciais da Ancine. Mas agora o mais importante
é instalar a Ancine, localiza-la no MiDIC e tocar o barco.
Ruy Gardnier: No
relatório, logo no primeiro parágrafo, aparecem duas expressões
que parecem ter se tornado unânimes para toda a classe, que são:
realçar a "condição estratégica do audiovisual",
e a "diversidade cultural" dos produtos audiovisuais – essas
duas expressões se balizam, para funcionar, num dos dados politicamente
mais complicados, que passa pelo Ministério das Relações
Exteriores e a Política da Exceção Cultural – queria
saber a quantas anda isso, já que estava na pauta de realizações
dos primeiros 100 dias de governo.
Orlando Senna: Isso
evidentemente já foi comunicado ao Ministério das Relações
Exteriores.
Daniel: Que está
sendo levado pelo Celso Amorim, que é um parceiro antigo do cinema.
Orlando Senna: Isso.
Na verdade, essa conversa deverá acontecer diretamente com o Ministério,
mas os interessados (Ancine e SAV) apresentam seus subsídios e
propostas. Em relação à diversidade cultural esse
é um ponto que vai ser levado à OMC e à Unesco –
pois a questão é pensar para que lado o Brasil deve se balançar:
a posição americana ou a francesa. A americana é
a de que os produtos culturais sigam um tratamento de compra e venda como
a de qualquer outro produto; e a posição francesa é
a de que esses produtos devem ter tratamentos diferenciados, não
geridos pela leis normais. Só que os franceses colocam dentro dessa
caixa de "indústria cultura" também a agricultura:
o vinho, o queijo... E isso é uma proposta só francesa.
O Brasil está tomando uma terceira posição, junto
com Canadá, Alemanha e alguns países da América do
Sul: que é uma rede de países que será organizado
pela Unesco, uma convenção em que teriam uma posição
comum de diferenciação da produção cultural
em relação as outras, não incluindo a extensão
dos franceses. Nessa terceira linha a indústria cultural seria
mais restrita a seu entendimento básico: música e cinema.
Claro que queijo é cultura, claro que vinho é cultura, mas
aí já entraríamos em outro campo.
Daniel: Seguindo
adiante, em relação a organização da Ancine,
ela começou com uma MP que teve muitas mudanças em seu percurso
– algumas ainda não muito claras, outras ainda acontecidas de fato,
eu gostaria de saber se o governo já tem uma posição
clara sobre ela, pois a classe tem uma posição, os exibidores
tem outra, e até a sociedade civil pode ter uma terceira. O governo
Lula já tem uma proposta inicial para a Ancine ou pretende esperar
as propostas da classe?
Orlando Senna: O MinC
tem essa posição que eu dei, inclusive hoje está
nos jornais o encontro do Gustavo (Dahl, diretor da Ancine) com o Gil,
mantendo-se a estrutura do tripé e instalação da
Ancine. O Gil já está até apressando as conversas
da Ancine com a Casa Civil. Estamos esperando a assembléia geral
do dia 12 apenas para ver se existe alguma proposta de modificação,
mas não acredito que haja algo tão novo que possa mudar
esse desenho.
Daniel: Mas a Ancine
vai ser uma agência só reguladora ou vai ser de fomento?
Orlando Senna: A principio
é uma discussão onde deve-se levar em conta o aspecto jurídico.
O ministério já esclareceu que no Brasil só existe
agência ou fiscalizadora ou fomentadora, e que uma agência
fiscalizadora não pode fomentar, a não ser que se estabeleçam
novas diretrizes. As agências que fomentam são as de desenvolvimento,
e não as reguladoras/fiscalizadoras. Isso é uma questão
a ser definida nos próximos dias - entra muito nessa questão
jurídica. Parece que existe uma posição majoritária
do setor para que seja também fomentadora, e aí se criaria
um quarto locus, pois isso não pode ser feito diretamente nem pela
Ancine, nem pela SAV, nem pelo Conselho... Eu espero que esteja dentro
da Ancine de alguma forma. Nisso existe um perigo das partes interessadas
gritarem, os americanos começarem a gritar: "não pode
ter agência que fiscalize e fomente"... São aspectos
que o governo, a Casa Civil e a justiça terão de pensar.
Daniel: Mas há
uma preocupação de que a Ancine mesmo não fomentando
diretamente, dê a orientação, um subsídio jurídico
e teórico para que o fomento se dê de forma transparente,
é isso?
Orlando Senna: Cria-se
a figura do fomento indireto...talvez soe bem aos ouvidos jurídicos
– a Ancine não tocaria no dinheiro, mas indicaria os moldes de
fomento.
Daniel: Mas a Ancine
não tem ainda nem estrutura para fiscalizar, agir com poder de
polícia...
Orlando Senna: Mas
isso é que eu chamo dela estar instalada: ter poder de polícia
para fiscalizar, regular. Menos mexer com dinheiro, parece.
Daniel: E se a
Ancine, a agência reguladora, por problemas de coesão interna
não tomar atitudes necessárias já acertadas pela
classe? Sendo uma agência independente, cria-se um conflito.
Orlando Senna: Mas
a Ancine é independente mas é uma agência do Estado.
E o Estado pode intervir na agência do Estado – se a CIA não
funciona, o Estado norte-americano pode intervir. Ela tem independência
em relação a mandados, em relação a administração.
Independente do Governo, e não do Estado. Elas são feitas
assim, para se liberar a questão das mudanças de governo,
para que isso não atrapalhe uma processo que é do Estado,
mas não do Governo. Mas o Governo pode intervir se precisar...
Internamente seria ótimo que a diretoria colegiada funcionasse
de maneira harmônica, com resultados não arrastados. Acho,
como cineasta, que deveria se criar uma 5a diretoria para o
chamado "cinema cultural", ao menos para se entender o que é
essa expressão, deixar claras as suas demandas.
Daniel: Mas o cinema
cultural ainda será do MinC ? Fomentado pelo MinC, certo?
Orlando Senna: A Ancine
não fomenta, certo? Os projetos do Minc são fomentados e
complementados pelas leis de incentivo. Leis essas que serão administradas
pela Ancine. Hoje mesmo, criamos um acordo numa reunião muito boa:
um modus operandi para que os projetos vindos do MinC sejam projetos de
tratamento prioritário.
Daniel: E a intenção
é reformular os concursos de curtas, documentários e de
baixos- orçamentos (BOs)?
Orlando Senna: Vamos
manter essa linha de trabalho com editais, acrescentando a possibilidade
de estímulos a telefilmes e a teses de escolas de cinema. Mas também
vamos dedicar alguns projetos às linhas prioritárias do
Governo: a inserção social. Já temos no papel dois
programas, para serem lançados, um chamado Cinema Fome Zero que
é o estímulo para a produção de filmes de
ficção e documentários em áreas rurais carentes.
Os filmes utilizariam a infraestrutura local, com 30 ou 40% do orçamento
empregado lá, dando ainda 15% da renda do primeiro ano para a região.
Inicialmente serão 5 filmes no nordeste, e outros tipos de filmes
em outras regiões carentes. Um outro projeto nessa linha é
o de realização de curtas para realizadores que vivem e
trabalham em comunidades de ate 20 mil moradores. Isso teria uma extensão
para a comunidade, capacitação básica que incluiria
a exibição de filmes brasileiros para a comunidade: inserção
cultural e cinematográfica. Uma linha geral do Governo Lula.
Ruy: Uns dos fatores
mais elaborados é a proposta da Rede Publica de Televisão,
e isso leva a uma tecla em que o Daniel vem batendo bastante, que é
o fato dos filmes da retomada, custeados pelo Estado, acabam não
dando a contrapartida social básica que é ser visto pelas
pessoas. O Estado fomenta mas não consegue ter direito nenhum sobres
os filmes, nem que seja o direito sobre os filmes após 3 anos para
a exibição na TVE. Mesmo com a qualidade dos filmes de 2002,
poucos são os filmes que chegaram a 200 mil espectadores, e uma
audiência básica da TVE já chega a 500 mil espectadores...
Existe algum projeto para que esses filmes possam chegar a redes públicas
de TV?
Orlando Senna: Não
em detalhes, isso estaria num segundo momento – inclusive está
incluído no programa de governo no que diz respeito ao audiovisual,
que é o encontro da produção audiovisual com a difusão
referente a TV. Isso é projeto de governo, anunciado.
Daniel: E sobre
os editais? Além desses dois de inclusão social...
Orlando Senna: Vamos
trabalhar para curtas e BOs. Juntos, ou passo a passo.
Daniel: Mas está
na agenda?
Orlando Senna: Está.
Todo governo em seu primeiro ano tem um orçamento que não
corresponde aos projetos do governo, feito pelo governo passado, e então
temos que nos adequar a esse processo – um orçamento de 15 milhões
apenas – dá pra fazer dois concursos, dois concursos pequenos...e
vamos buscar recursos em fundações, instituições.
Daniel: O CTAv
continua na Funarte?
Orlando Senna: Sim,
mas já está sendo feito seu resgate, o Sérgio Sanz
já está nomeado e em ação, com alguns recursos
para começar a resgatar aquilo tudo, os equipamentos que devem
ser revistos, limpos, organizados...
Daniel: Tenho que
dizer que só posso ter elogios ao trabalho anterior do Roberto
Leite...
Orlando Senna: É,
o problema não era o Roberto Leite. Mas o esvaziamento da Funarte,
a partir das secretarias do ministério que começaram a ter
funções paralelas as da Funarte... Essa reorganização
do MinC tem a ver com isso, por exemplo: a Funarte tem um setor de artes
cênicas mas existe também a secretaria das artes cênicas.
Estamos tentando ter dinheiro de fora para o CTAv, não o bastante
para a recuperação total do CTAv, que tinha uma atividade
muito intensa, de formação e apoio a atividades independentes.
Vamos tentar conseguir dinheiro fora.
Daniel: BNDES por
exemplo?
Orlando Senna: Pode
ser...mas também pode ser até de fora do Brasil. Retomar
um convênio com o Film Board do Canadá, por exemplo.
Daniel: Com relação
ao estímulo de produções independentes, o CTAv empresta
equipamentos para a produção de baixíssimo orçamento,
certo? Mas está todo concentrado no Rio de Janeiro. Sabemos que
existe um apelo para que existam outros pequenos pólos, em outras
regiões como Brasília e Ceará.
Orlando Senna: Temos
essa perspectiva de se criar pequenos núcleos com equipamentos
básicos, para que as pessoas não tenham que se deslocar.
Mas são passos seguintes.
Daniel: O BNDES
tem um programa de empréstimo para produtores, e como o BNDES tem
sido usado mais por grandes empresas do que pelas pequenas, no cinema
isso se reproduz. A estrutura ainda é para os grandes produtores.
Há alguma idéia de se criar projetos de financiamento através
de outros formatos? Projetos de fundos cinematográficos que seriam
realimentados, fomentando vários filmes? Queria saber se existe
essa idéia.
Orlando Senna: Existe
a idéia de uma reformatação geral do universo audiovisual
brasileiro, mas eu não posso entrar em detalhes. Existem estudos,
idéias, mas acho que não posso falar agora e nem acho que
seja eu que deva falar sobre isso...
Daniel: Mas nós
o procuramos como um representante do Governo Lula...Nesse primeiro ano
ainda não deve acontecer muita coisa...
Orlando Senna: Não,
não. Muita coisa já pode acontecer esse ano, estamos numa
fase de implantação de si mesmo. Número um: instalação
da Ancine. Número dois: reformatação do MinC. Um
mês é muito pouco, bicho... Quando se chega no ministério
é que você vai ver que aquilo ali não é um
ministério preparado para se fazer o nosso programa. Vai ser preciso
uma outra coisa, antes de começar a trabalhar realmente.
Daniel: A idéia
de reformulação de leis de incentivo vai ficar com a Casa
Civil?
Orlando Senna: Isso.
E, evidentemente, através de nossas opiniões.
Daniel: Pois há
a questão que o Ruy levantou da contrapartida da exibição
dos filmes por parte do Estado...
Orlando Senna: Mas
essa é só a contrapartida básica, comercial até.
Daniel: Mas é
a única consistente...
Orlando Senna: Não.
Por exemplo, na última reunião da Secretaria da Comunicação
Social, eu propus uma contrapartida que foi muito bem aceita: que todo
o filme que entre nesse processo de incentivo ou patrocínio estatal
tenha de fazer um contratipo para as cinematecas.
Daniel: Mas isso
já está na lei, mas ninguém faz...A idéia
de os filmes serem exibidos na TV por exemplo, muitos produtores não
têm o menor interesse em discutir... Acho importante cairmos no
assunto televisão.
Orlando Senna: A televisão
é, eu acho, um grande projeto: uma rede realmente pública
de Tv. Uma rede que tem que ser gerida com a co-participação
da sociedade civil. É um projetaço... Vamos ter que juntar
esses vários pontos de transmissão que já existem,
e pensar também no conteúdo.
Daniel: Mas o conteúdo,
de alguma forma, já é bancado, os filmes por exemplo. A
transmissão é que ainda é muito ruim...no interior
do Estado do Rio já é ruim, imagina em regiões mais
afastadas? Precisa melhorar.
Orlando Senna: Isso
está no projeto do governo. A melhoria tecnológica da TV
pública.
Daniel: Hoje, a
única TV que pega bem no país inteiro é a Globo,
e o SBT um pouco...a TVE está em poucos lugares.
Orlando Senna: São
duas possibilidades para se fazer essa rede, apesar de ainda estar muito
virgem: uma por satélite, a outra ponto-a-ponto.
Daniel: Mas é
um projeto urgente para o Governo?
Orlando Senna: É.
Ruy: Com a rede
pública funcionando, um problema sério seria diminuído,
que é a do tempo de filmagem e captação de 4 ou 5
anos para os realizadores. Com a rede pública de TV seria possível
fazer filmes sem o suporte de película, o que daria continuidade
ao trabalho dos realizadores.
Orlando Senna: Por
isso insisto em incluir na agenda da produção a questão
do telefilme... com R$300, 400 mil, e até menos.
Ruy: Um aspecto
que ficou ausente no relatório, mesmo que não para defendê-lo,
mas que faz parte de um modelo de descentralização, é
a questão do teto de captação, se vai haver um limite
de captação e orçamento.
Orlando Senna: Minha
opinião é que o custo do filme brasileiro foi aumentado
de forma absurda, fictícia. E por causa disso se paga muito a eles...
Citemos exemplos que passam na nossa cara: Amarelo Manga foi feito
com 600 mil, Domingos de Oliveira fez dois com 400 mil, cada um.
Ruy: Bressane faz
com 200 mil...
Orlando Senna: Então
existe alguma coisa errada aí com esses filmes de 3 milhões
de reais...
Daniel: A idéia
então é ter o filme barato como um referencial?
Orlando Senna: É.
Acho que isso, esse aumento, tem muita influência dos americanos
– aumentar o valor dos filmes brasileiros.
Daniel: Para inviabilizar
o número de filmes em competição. Mais caros, menos
filmes. Menos filmes, menos competição.
Ruy: Num país
em que todos os realizadores tivessem condições de ser financiados,
não faria sentido discutir teto de captação, mas
aqui no Brasil, filmes como Xangô e Carandiru tem orçamentos
muito grandes, e criam um problema a se discutir.
Orlando Senna: O próprio
orçamento dos documentários longos está começando
a bater em 1 milhão...Um filme como Rocha que Voa, melhor
documentário feito ano passado na minha opinião, com grande
impacto no exterior, é um filme de 100 mil reais. O Coutinho faz
com 300 mil... 1 milhão para um documentário é um
exagero. Se o Erik Rocha faz um filme daquele com 100, 150 mil... Então,
querer fazer documentário de 1 milhão... estamos falando
de coisas bem diferentes.
Daniel: E com relação
aos programas independentes e regionais na TV?
Orlando Senna: Isso
é a lei da Jandira Feghali e o Senado é que vê.
Daniel: Mas o governo
propõe, negocia...
Orlando Senna: O que
podemos fazer é tentar utilizar nossas bases, apoiar a iniciativa.
Tanto que conseguiu ser aprovada no Congresso e agora está no Senado.
Daniel: E o governo
é simpático a essa lei?
Orlando Senna: Até
agora, é simpático. Não tenho porque dizer que não
– tanto que está defendido por uma deputada da base do governo.
Ruy: Bem...novamente
sobre as leis de incentivo, há uma parte que me pareceu problemática,
que é a adoção do conceito de "função
social" e "qualidade do projeto". Me parece complicado
na medida em que certas obras, que em sua época foram consideradas
de conteúdo pornográfico, hoje são marcos da cinematografia
e literatura mundial, como os filmes do Carlão Reichenbach. Filmes
que foram considerados pornografia mas que tinham uma pesquisa de linguagem
que pouca gente fazia na época. Ao contrário de realizadores
que, digamos, vampirizavam a coisa do filme histórico-cultural.
Orlando Senna: Mas
o documento não fala de qualidade artística. O que queremos
é saber o que esse cinema devolve a grande linha do governo de
agora, que é a inclusão social. Não é questão
de linguagem boa ou ruim...até porque não dá pra
ver isso no projeto.
Ruy: Mas isso está
no texto: qualidade do projeto.
Daniel: E como
medir o retorno social de filmes feitos na cidade do Rio de Janeiro, por
exemplo?
Orlando Senna: É
uma questão de análise. Incentivos fiscais não podem
funcionar para filmes de alto retorno comercial, Xuxa por exemplo...é
um absurdo que isso utilize dinheiro público.
Daniel: E como
o governo pretende apoiar esses filmes de apelo comercial elevado?
Orlando Senna: Apoiando
de uma maneira geral como se apóia o audiovisual em qualquer país
organizado, mas não especificamente cada projeto. O apoio pontual
do governo deve ir para projetos voltados para a inclusão social.
Ao combate à fome e à descentralização. Temos
que entender que esse governo não é neoliberal! Os projetos
são outros. Não é uma revolução armada,
mas é uma revolução de conceitos...
Daniel: Mas, por
exemplo, seria possível um orçamento de 12 milhões
conseguir dinheiro emprestado no BNDES?
Orlando Senna: Claro,
como qualquer outra atividade industrial.
Daniel: Levando
em conta que vai empregar muita gente, vai juntar público...
Orlando Senna: Claro.
Na linha de um projeto audiovisual de cinema e TV considerados como área
estratégica, evidentemente que o governo se interessa que se desenvolva
esse tipo de atividade, seja com impacto comercial, seja na linha de um
projeto audiovisual voltado para as linhas gerais do governo. Não
é nenhum dirigismo... Quem quiser pode procurar empréstimo
no BNDES... Agora, a SAV terá suas preferências. Ou seja,
o que a grande maioria dos trabalhadores do audiovisual quer é
que as leis de incentivo sejam usadas em seu sentido original: apoiar
o pequeno produtor, a produção independente. E não
se entende que se continue uma coisa tão desregrada que é
das grandes empresas fazerem aplicações somente nelas mesmas
– muito dinheiro que não vai para o produtor independente. Vamos
chegar a um acordo em que as grandes empresas podem empregar dinheiro
em suas fundações e centros culturais, isso é bom,
mas não todo...
Ruy: A idéia
de um terço, não é?
Orlando Senna: Existe
essa idéia, que está rolando por aí...O governo está
considerando isso.
Daniel: E a Lei
do Curta que nunca foi regulada, e não existiu por muito tempo?
Existe uma confusão jurídica se o Collor teria terminado
com ela ou não. O governo anterior preferiu considerar que não
existia. Isso será rediscutido?
Orlando Senna: A SAV
não será avestruz, de forma nenhuma. Que além de
esconder a cabeça no buraco acaba mostrando outra coisa, virando-a
para cima. O MinC não pretende se esconder em nenhum assunto –
em breve tentaremos encaminhar soluções para a questão
da Lei do Curta – não haverá bundas para cima, pode ter
certeza. (risos...) Não sei se estou sendo claro...
Ruy: Muita coisa
ainda não está definida, não há como prospectar
para o futuro muito claramente ainda...
Orlando Senna: Isso
mesmo. Não faz nem um mês que começamos. Um mês
para arrumar a casa, até fisicamente estamos organizando aquilo
lá, se você for lá vai ver, nem o espaço físico
era adequado, uma coisa maluca...
Ruy: Uma coisa
que a Folha de São Paulo utilizou de forma meio complicada foi
em relação a fala do Gil sobre ter de ouvir os notáveis
do cinema...
Daniel: Ele citou
o Luiz Carlos Barreto, o Cacá Diegues...
Orlando Senna: Acho
que o que o ministro quis dizer nesse momento foi que todo mundo deveria
ser ouvido – e evidentemente que o que vem na cabeça quando se
fala de cinema, qualquer autoridade, é pensar naturalmente nesses
grandes nomes...mesmo que para a gente, mais do meio, não seja
tão assim. Pois são pessoas que estão nisso há
mais de meio século. Com relação a Ancine está
claro que o Ministro está com o setor cinematográfico, isso
é: concorda com a divisão de funções do audiovisual
num tripé ministerial.
Ruy: Para uma sociedade
civil que muitas vezes não está prestando atenção
aos detalhes, pode soar como um retorno àquele perfil Embrafilme
do "é meu amigo, pode filmar". Mesmo que não me
pareça ser assim, essa frase do Gil pode dar essa idéia.
Orlando Senna: Essa
questão tem dois lados – é muito difícil hoje que
os caciques do cinema brasileiro tenham a influência de antes. Pois,
pela primeira vez na história do cinema brasileiro, os trabalhadores
da área estão organizados. Com brigas internas, é
claro, mas nunca houve um tipo de organização como temos
agora. Isso muda o panorama. Por outro lado, esses caciques é que
levaram o cinema nas costas por quase meio século – o que nós
todos fazemos agora eles levavam nas costas sozinhos. Quem criou a Embrafilme
foi o Glauber Rocha!
Daniel: O Barreto
diz que a Embrafilme foi uma continuação da DiFilm..
Orlando Senna: Isso.
Quem indicou os modos, os caminhos aos militares, foi o Glauber, foi um
cineasta. Levou isso nas costas durante muito tempo. Hoje a situação
é outra. O setor está ativo e atuante como nunca esteve
– não é caso de se jogar os velhos heróis fora, mas
fazer um equilíbrio geral, respeitando a experiência deles.
Daniel: A gente
margeou o problema ao falar de TV, o problema eterno de distribuição
e exibição. Mesmo com a televisão difundida são
poucos os canais, e foram-se fechando os cinemas, perdendo o apelo popular
por causa disso...
Orlando Senna: Essa
questão está incluída nas linhas programáticas.
Além da Rede Pública, criaremos o Circuito Exibidor Popular.
Daniel: Isso está
em estudo ainda, certo? Pois hoje existem tantas questões a serem
levadas em conta: a exibição digital, o cinema em DVD...
Orlando Senna: Ainda
não começou nenhum estudo específico – é uma
idéia aceita pelo governo, só isso. Mas vai ser uma trabalheira,
não poderemos construir novos cinemas, vamos ter que aproveitar
tudo...
Daniel: E sobre
distribuição: só existe hoje uma distribuidora estatal
no Brasil. Que cuida de metade dos filmes brasileiros, e o resto fica
ou sem distribuição, alguns com as majors outros na mão
das independentes – e mesmo que tenha havido o estouro esse ano da Lumière
com o Cidade de Deus, a Lumière já é uma independente
muito bem estruturada. Em suma: vai existir dinheiro para a distribuição
ou se espera que a sociedade civil se organize?
Orlando Senna: O governo
espera muito da sociedade civil. Mas tem que insuflar e implementar algumas
providências para que a sociedade civil possa atuar de forma mais
eficaz.
Daniel: Pois quando
a Embrafilme foi fechada, ela estava se voltando mais para o lado da distribuição...
Orlando Senna: Claro,
a grande coisa da Embrafilme foi a distribuidora, organizada e dirigida
pelo Gustavo Dahl. Claro que essa é a questão maior do cinema
brasileiro (ou argentino, ou não-americano)...
Ruy: Ou não-europeu...
Orlando Senna: Ou
não-coreano... a França conseguiu agora 50%, a Coréia
também. Mas ninguém é a França ou a Coréia.
E a Coréia consegue porque ameaça jogar bomba...e quem é
maluco pode tudo (risos...)
Daniel: O Irã
conseguiu porque proibiu o cinema americano... O Governo Lula considera
isso?... (risos...)
Orlando Senna: Não...o
governo acha importante a diversidade cultural. O governo considera essencial
o direito de se ver filmes brasileiros e estrangeiros...Mas não
é diversidade cultural você assistir a 90% de filmes de uma
fonte só. Como dar jeito nisso? Vamos andar, vamos andar...
Daniel – Vocês
já têm uma noção de qual será a agenda
a seguir, o cronograma, ou ainda estão descobrindo o terreno?
Orlando Senna – Você
está dizendo pontualmente?
Daniel – Isso.
Orlando Senna – O
presidente deve apresentar, não sei quando, acredito que ainda
em março, uma lista de intervenções e ações
para o primeiro ano de governo. Esperemos, pois ele está recolhendo
ainda as propostas e necessidades de todos os ministérios, para
organizar uma atividade imediata de todo o governo, nisso incluído
o audiovisual. No mais, não posso adiantar coisas... que nem tenho
o direito!... E além disso seria muito confuso passar já
qualquer informação.
Daniel – E isso
vai passar ainda pela Casa Civil?
Orlando Senna – Claro,
tudo isso... E o presidente irá apresentar isso, será através
de um discurso dele, então é uma coisa bem organizada.
Daniel – E com
relação ao percentual que cada empresa pode investir em
leis de incentivo, pensa-se em mudar algo, em aumentar o teto existente?
Orlando Senna – O
Ministério da Fazenda não quer nem ouvir falar nisso!...
Mas acredito que seja possível aumentar um pouco sim, mais à
frente.
Daniel – Mas, mesmo
com este limite, durante o governo FH a captação destes
recursos sempre esteve abaixo do valor orçado anualmente, em todos
os anos deixou-se de captar um bocado do teto fixado pelo governo para
ser aplicado nas leis...
Orlando Senna – É
verdade. É preciso definir também o que se fará com
as sobras dos recursos captados por projetos aprovados, dinheiro que foi
utilizado por empresas através de incentivos fiscais e que, não
tendo sido gasto pelos produtores, e deveria ser usado então para
fomento, para a realização de atividades fomentadas. Isto
eu não sei como andou, mas agora fica com a Ancine, a Ancine tem
direito a isso, os restos do que não foi usado... isso acontece
quando você pega o dinheiro e seis anos depois ainda não
fez o filme. Aí, quando o sujeito perde o direito a uma nova captação,
ao invés de deixar perder o recurso pega-se esse dinheiro e cria
um fomento, concurso para curta, videoteca...
Daniel – Esses
recursos sempre foram destinados para o Fundo Nacional de Cultura, que
investe principalmente no patrimônio histórico arquitetônico...
Orlando Senna – Isso
também está sendo estudado, porque isto está com
a Ancine, e se isso continua assim, se essa vai ser a regra e vai haver
sobras das leis de incentivos, então a Ancine irá repassar
parte dessas verbas para a SAV justamente para que se faça o fomento
direto.
Daniel – A Ancine
então já tem um mecanismo de repasse à SAV?
Orlando Senna – Isso
não deve ser difícil não, é só acertar
todos os pontos e definir melhor essa divisão de atribuições
de SAV e Ancine, que foi feita de forma muito apressada... Já estão
colocando tudo isso no papel, para definir melhor o que tem que fazer,
se é correção ou uma nova MP, aí são
coisas legais de que não entendo... Mas entre Ancine e SAV as coisas
não são muito difíceis não, nós estamos
nos dando muito bem nestes acertos preliminares.
Transcrição
de Felipe Bragança
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