Quem tem medo do sertão?


Luiza Mariani, Júlia Lemmertz, Marieta Severo e
Maria Luiza Mendonça em As Três Marias de Aluízio Abranches

Não há nada pior do que começar um texto com um chamado "disclaimer". Ou seja, já anunciar uma possível má interpretação do que se vai dizer. Até porque isso pode permitir que alguns que nem pensariam nisso resolvam interpretar o texto da forma que você menciona. No entanto, no melhor (ou pior, como queiram) estilo "adaptativo" de Charlie Kaufman, vamos começar este aqui com aquilo que dissemos que não deveríamos fazer: dizer o que este texto não é. Ele não é uma defesa de um determinado cinema em detrimento de outros, de um cinema que utilize uma certa noção de realismo e de naturalidade por sobre as possibilidades (e até mesmo propriedades intrínsecas) que a imagem e a representação cinematográfica tenha de épico, mítico, anti-natural, e tudo o mais que escapa a uma noção mais direta do cinema (como aquela presente nos textos mais clássicos de André Bazin), uma noção de cinema como reprodução do mundo, tão melhor quanto menos tentar-se fugir desse realismo. Aliás, na situação de crítico e diretor de dois curtas, basta que se olhe os meus trabalhos com os filmes para saber que não se trataria disso, nunca.

Isso dito, no entanto, há que se concordar que as paisagens físicas (e aí incluímos geografia e paisagem humana) de um determinado local possuem alguma importância, e mais do que isso: uma História, uma tradição, uma cultura (e aí tratamos como "uma" o que também pode ser entendido como a mistura de várias), e partindo para o escopo diretamente cinematográfico, uma existência dada. Ou de resto, inclusive, não seria escolhida como espaço de representação para um determinado trabalho. Partindo desta idéia, queremos crer que um certo cinema brasileiro tem se apropriado destas noções com o desejo de recriar ou mesmo ir contra esta imagem das formas mais equivocadas possívelis. Tratamos especificamente aqui da paisagem do sertão, e de seus usos nos filmes As Três Marias, de Aluízio Abranches, e Abril Despedaçado, de Walter Salles.

Começando pelo filme de Salles, que certamente merece observação mais cuidadosa. Trata-se de uma adaptação de um livro do escritor albanês Ismail Kadaré para a paisagem do sertão brasileiro do início do século XX. Vamos desconsiderar de saída o possível argumento de uma impropriedade da filmagem de uma história albanesa no Brasil. Isso é uma bobagem, uma vez que temos desde radicais exemplos em cinema como A Herança, onde Ozualdo Candeias se apropria de Hamlet e o coloca no interior do Brasil, até mesmo a questão do teatro como um todo (que comumente adapta textos estrangeiros ao Brasil) e a música (onde influências se misturam de todos os lados). No cinema mesmo é besteira pensar em impropriedade de tomar um texto exterior, quando questões de estilo ou influências de cinematografias podem tornar um filme muito mais "estrangeiro" do que sua origem como história. Ou seja, o problema não reside, de forma alguma, nesta opção inicial. Até porque, se Salles viu nesta história de Kadaré o potencial de adaptação ao Brasil, nada mais natural, uma vez que não pode ser mais universal aquilo que é, em essência, a narração de um círculo vicioso de violência, vingança e dor, como a comparação com a situação dos Bálcãs ou do Oriente Médio deixa bem claro.

Salles, inclusive, com sua equipe de colaboradores, tratou de fazer uma pesquisa no local onde ia filmar (se não necessariamente na locação exata, certamente na região) sobre costumes e aparências, de arquiteturas a objetos. Nem acho, aliás, que o cinema deva necessariamente se prestar a estas pesquisas, se virmos que certos anacronismos, como os utilizados por Manoel de Oliveira, Derek Jarman ou Wes Anderson (para tratar de três exemplos completamente diferentes), são altamente complementares e enriquecedores do que estes realizadores querem passar com seus filmes.

Onde estaria portanto o problema que motiva o texto? O problema entra em cena quando o realizador, munido de uma equipe de colaboradores altamente capazes, torna-se excessivamente auto-consciente de sua função de criador de uma "obra de arte", aí sim no pior sentido que um termo pode ter. O filme de Salles, com toda essa verossimilhança adquirida, e com toda a propriedade de adaptação que o tema possa ter com o sertão nordestino, não consegue respirar nem por um segundo. Obcecado criador e pensador de um cinema (como podemos ver em seus textos no jornal Folha de São Paulo), Salles parece "pensar demais" enquanto faz um filme. Seu discurso altamente articulado sobre cada uma de suas opções estéticas ou narrativas (que pode ser visto sempre que ele lança um filme) depõe contra seus filmes, quando estes são vistos. Não é o caso aqui de se defender um cinema intuitivo, somente. É o caso, porém, de se pedir um pouco mais de contaminação da obra pelo que se vê, e menos pré-concepção sufocante.

Abril Despedaçado possui uma hora e quarenta de clímax estético. Não há uma imagem que não seja a mais bela, uma metáfora visual que não seja a mais significativa, uma nota de música que não seja a mais presente, uma atuação no elenco (aqui com a possível exceção de Everaldo Pontes) que não seja a mais auto-consciente de sua "arte". Alguns tentam articular esta opção de Salles com um desejo de conquista de prêmios ou de um mercado exterior. Esta saída me parece simplória porque, tanto em seu discurso quanto nos filmes, o diretor deixa claro um interesse sincero pelo que filma. No entanto, este interesse encontra-se, invariavelmente, sufocado pelo peso do "artista" que muito quer dizer, e que planeja cada segundo do que vai dizer. Não há respiro em Abril Despedaçado, e por isso mesmo não há arejamento.

Por isso, mesmo com toda a verossimilhança e adequação narrativa daquele ambiente, o sertão parece passar longe do filme de Salles. O filme acaba se passando quase num espaço inexistente, universal. O que, como dissemos, não é ruim por si mesmo. Se pensarmos em exemplos díspares como A Ostra e o Vento de Walter Lima Jr, ou Gerry de Gus Van Sant, vemos que a utilização do espaço físico e natural como abstração de local histórico não é um defeito, e sim uma opção. Que, no entanto, não é a de Salles e sua equipe, que justamente fazem tanto esforço em localizar esta trama (já em si universal) num tempo e espaço. Que este tempo/espaço seja consumido por um outro tempo/espaço específico, que é este do local da "obra de arte cinematográfica" que a tudo apaga, funciona muito contra o filme, com todas as suas boas intenções e pontos de partida corretos. Temos um elenco, uma fotografia, uma direção de arte, em suma, um filme, que em tudo briga por atenção o tempo todo com a possibilidade de qualquer criação de ambiente. Como numa versão "reflexiva" de A Guerra de Canudos, temos uma encenação brigando com seu local de encenação.

De outra ordem, completamente, é o problema de As Três Marias, embora resultados e operações se aproximem. Aluízio Abranches afirma ter tentando fugir da visualidade clichê do espaço do sertão, e mais do que isso: partindo de uma história que foi criada em torno da questão da literatura de cordel, tentou retirar tudo de típico que esta estrutura traria ao filme. Ou seja: retirado de sua especificidade, temos aqui o sertão como ícone pop tão somente.

Existe no filme de Abranches a mesma explosão de "auto-importância", a mesma obsessão em que cada plano do filme seja o mais significativo, o mais belo, o mais impactante. Mas, ao contrário de Salles, não se consegue nunca ver o porquê disso tudo. Essencialmente vazio nessa lógica de juntar uma roupagem pop (a ver as animações que localizam a história e personagens) a um suposto conteúdo "mítico" (o papel da mulher nessa história de vinganças familiares e brigas seculares), Abranches conseguiu realizar um dos mais irritantes filmes dos últimos anos.

Mais uma vez, que não se pense que há aqui um a priori contra seus pressupostos: o início do filme, com sua violência excessiva e hiperreal nos parece até interessante. Mas a diluição absoluta deste conteúdo ao longo do filme, num jogo que mistura a mais grotesca pantomima de atores (onde é conseguido o quase milagre de fazer de Lázaro Ramos, Maria Luisa Mendonça e Marieta Severo – três de nossos maiores atores – pastiches de si mesmos), com uma construção visual de cenografia de exposição de arte (a ver o campo de cactus ou a sala de jantar das mulheres – da foto acima), com um ritmo e montagem buscando uma linguagem forçadamente moderna, o que temos é um filme que perde completamente o motivo de ser. Vemos, mais uma vez, uma série de profissionais brincando de portfólio, e esquecendo por completo da questão da adequação de cada parte a um todo. Talvez até porque esse todo não exista.

Uma primeira pergunta que poderia surgir é se o sertão é tão somente a terra da vingança familiar, do sangue nas próprias mãos. Talvez seja, quem sabe (eu, certamente, não sei). No entanto, o que ele certamente não é, é um espaço vazio de significado, onde se pode encenar qualquer delírio de artistas "estrangeiros" a ele, que chegam com suas equipes e elencos e se utilizam dele para uma quase masturbação pessoal de "estilo". Nesse sentido, Cidade de Deus, com todas as suas limitações, é muito menos "cosmética da fome", mesmo que seja pelo seu elenco. A contaminação de um cineasta por aquilo que filma é um dos fenômenos mais bonitos que se pode assistir no cinema, e a completa esterilização neste contato (por excesso de pensamento, no caso de Salles, e por falta dele, no caso de Abranches) é uma das mais dolorosas experiências.

Como exemplo final, basta lembrarmos de Madame Satã de Karim Aïnouz, o filme que melhor solucionou muitas destas questões. Trata-se de um cineasta filmando um local que não é o seu e um tempo que não é o seu, mas tornando-se parte dele enquanto o faz. Usando da técnica (não há nada de naif no filme), mas usando-a para atingir algo. Sendo contaminado pelo que filma, sempre. Exemplo onde a história se torna melhor pelo que o cineasta quer dela extrair, mas de um cineasta que se torna melhor pelo que consegue entregar ao seu processo de realização. Nenhum filme deve ser "modelo" de nada, mas a generosidade desse olhar, em detrimento de um desejado status artístico, podia ser usado como exemplo de possibilidade diferente aos filmes acima analisados. O cinema pede ar e entrega, pois, vamos dar a ele.

Eduardo Valente