O Gigante de Ferro, de Brad
Bird
Iron Giant, EUA, 1999
Exibido
no Brasil apenas em alguns festivais de animação e na TV a cabo, O
Gigante de Ferro destaca-se como uma das melhores animações norte-americanas
dos últimos anos, sendo uma das únicas em longa-metragem (ao lado da série
Toy Story) a trazer um algo novo para além das recorrentes pirotecnias
gráficas. Ultrapassando os limites do fabulário Disney, mas também negando
o sarcasmo fácil de algumas produções infanto-juvenis off-Disney (leia-se
Shrek), o filme de Brad Bird retrabalha a tradição fabular da animação
norte-americana, através de uma narrativa que entremeia o olhar fantástico
e o realista, criando um paradigma onde o gesto mágico não se sobrepõe
enquanto fuga moral do cotidiano, mas se insere enquanto comentário criativo.
A ladainha do mundo da imaginação, comum aos produtos voltados
ao público infantil, é deixada de lado – também não optando pelo discurso
opaco do sarcasmo negativo.
O Gigante de Ferro trabalha justamente
os limites entre o fabulário cotidiano de meados do século XX e os eventos
geopolíticos concretos que o permeavam. Utilizando o ícone do mistério
de Roswell (1947) como ponto de desdobramento, de dobra, o filme trabalha
uma inusitada concretização das imagens do medo e do encantamento norte-americano:
a figura de um misterioso robô de 30 metros de altura. “O Sputnik”, dizem
alguns; “um Alienígena”, dizem outros; “um ataque russo”, afirmam todos
pelas ruas da pequena cidade...mas não é nada disso (?):
Dotado de um incalculável poder de destruição,
vindo dos céus sem causa ou motivo definido, o gigante de ferro reúne
em seu corpo uma espécie de amálgama da identidade norte-americana do
pós-guerra: o terror da ameaça comunista, o encantamento das invasões
interplanetárias, o orgulho tecnológico dos EUA (a TV) em pleno vapor
de sua expansão. Partindo da lanchonete tomada pelo incipiente rock n'
roll, passando pelos filmes educativos que ensinam crianças a como se
defender de um ataque nuclear, ao expansionismo da intervenção dos serviços
secretos norte-americanos no dia-a-dia, chegando a configuração de famílias
sem-pai decorrentes da 2a guerra, o filme promove uma delicada
composição dos ícones de uma certa cultura do orgulho e da paranóia.
A partir dos olhos de um solitário menino
de 10 anos, o filme promove o encontro entre esse acúmulo de anseios e
a figura monolítica de um gigante de ferro, ao mesmo tempo poderoso e
frágil, ameaçador e passivo. Entre o medo de tudo aquilo que vem de fora,
de tudo o que não é americano, e o sentimento de forte amizade que aparece
entre os dois, o filme promove um choque de ambigüidades. Bom e mau, violento
e doce, o robô é a síntese do signo-máquina de criação e destruição, capaz
de agir com afetividade ou como um autômato (contra-atacando quem o ataca).
A força da idéia de um livre-arbítrio (“você
é o que você escolhe”) se choca com as reatividades histéricas de um país
em pé-de-guerra – que lança um míssil nuclear em direção a si mesmo tentando
destruir o robô e que promete atropelar a vida pacata de um menino caso
ele não coopere com a “segurança nacional”. O ato heróico do gigante (no
melancólico grito de “super-homem”) torna-se, em si mesmo, fruto de um
fantasioso desejo de auto-suficiência – típica dos super-heróis dos quadrinhos
(que tiveram seu auge justamente nessa época). Um desejo impossível que
o robô lê como verdade possível, e se lança contra o míssil nuclear –
salvando a cidade...mas despedaçando-se no ar numa bola de fogo. Mortos
juntos, de uma só vez – “ameaça” e “super-homem” desaparecem no ar num
mesmo e só movimento. Ironia final da cidade que homenageia, com uma estátua
de ferro, o “monstro” mesmo que os havia salvo de sua violência histérica.
Com um roteiro preciso (onde até as gags
mais simples estão articuladas com o desenvolvimento narrativo-conceitual
do filme), uma rara inteligência na animação, O Gigante de Ferro
constrói através de seu tom fabular-infantil um cuidadoso questionamento
sobre os limites de uma certa onipotência brutal norte-americana, sobre
as influências microscópicas de uma mitologia da eterna “ameaça externa”
e a paranóia de uma sociedade que se vê como o foco maior das hostilidades
do planeta...e de além dele.
Por dentro dos pequenos códigos, ícones e
heróis que povoaram a infância e a pré-adolescência de grande parte dessa
geração de norte-americanos crescidos entre 1940-1960 (geração da qual
também faz parte, curiosamente, George W. Bush
- nascido em 1946), Brad Bird (de Os Simpsons e O Crítico)
cria um pequeno painel da vasta rede de subjetividades que expandem a
guerra para além dos limites do pragmatismo estratégico e da força bruta.
Escorrendo por entre cada pequeno detalhe do cotidiano, o estado-de-guerra
se coloca também como um estado-de-espírito, um modo de estar de uma política
que transforma não só os corpos dilacerados nos campos de batalha, mas
também os corpos que ouvem, vêem e imaginam a guerra na angústia das mortes
anunciadas.
A seqüência final, onde o robô ensaia um
retorno, é a imagem de um encantamento e de um medo sempre à espreita
– metáfora do poderio das armas e das máquinas que “sobrevoam” a imaginação
daquela pequena Roswell. O retorno insinuado é a promessa de um desafio
infindado e inevitável, conseguindo dar ao filme um tom de esperança dispersa
e não fatalista, não um happy end redentor (“para sempre”), como
se costuma “exigir” de um filme para crianças.
Uma fábula criada por dentro (e rearticulando)
o olhar mágico-infantil, na forma de uma animação impecável – O Gigante
de Ferro é uma das melhores produções infanto-juvenis da última década
e única a conseguir pensar a cena da guerra aos olhos da rotina das crianças
norte-americanas. Pois não se trata de um filme de guerra “para crianças”
(as simulações de batalha das “irmandades” de Harry Potter), mas
um filme da guerra como vivência de uma certa infânciaI, investigada
através do universo de heróis e vilões cultivados na cultura e no cotidiano
do pós-guerra. E que hoje parece estar novamente em ebulição.
Felipe Bragança
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