A Inglesa e o Duque




De todos os cineastas da geração que começou escrevendo sobre cinema na Cahiers du Cinema nenhum parece ter levado tão a sério a política dos autores quanto Eric Rohmer. Quando apresentados a uma série de seus filmes fica claro o quanto o cineasta pensa a sua carreira em termos de obra, muito mais do que de filmes individuais. Além das séries como Os Seis Contos Morais, Comédias e Provérbios e Os Contos das Quatro Estações, uma outra seqüência não oficial de filmes que Rohmer vem desenvolvendo desde meados da década de 60 é a dos filmes de reconstituição de época. Foram dois na segunda metade da década de 70, A Marquesa de O e Perceval, e agora este mais recente A Inglesa e o Duque (L'Anglaise et le Duc, 2001).

Para compreender um pouco melhor o projeto de Eric Rohmer nestes filmes é preciso retornar aos seus filmes contemporâneos. Há neles, à primeira vista, uma certa obsessão com a reprodução do real. De fato, o cinema de Rohmer passa ao largo do artificialismo, de uma encenação que chame a atenção para si mesma, etc. Ao mesmo tempo são filmes muito bem pensados e, ao contrário, de um Cassavetes ou Pialat, Rohmer evita ao máximo o improviso (tirando raríssimas exceções). Estamos, então, diante de um cinema com uma proposta de se aproximar do cotidiano de suas personagens, sem com isso abrir mão de um rigor na construção e encenação das situações que ele apresenta. Nestes filmes de época, Rohmer se coloca sempre o desafio de se colocar contra o que por tradição se tem como filme de época acadêmico, de capturar um pouco do que era o período da França que está sendo abordado, e no processo manter ao máximo as características dos seus filmes contemporâneos.

Cada um dos três filmes de época de Rohmer adota estratégias diferentes. A Marquesa de O foi rodado em locação e Perceval (o mais barroco dos trabalhos do diretor) foi todo feito em estúdio. Para realizar A Inglesa e o Duque, Rohmer optou por algo diferente. Encomendou dezoito telas que retratavam a França durante a revolução e usando tecnologia digital sobrepôs seus atores sobre elas. Com isso o que Eric Rohmer acabou por conseguir foi um dos usos mais instigantes de tecnologia digital nos últimos anos. Porque tudo aquilo que geralmente é visto como limitação do formato, é usado aqui como um fator no processo de recriação do período e o que Rohmer termina por conseguir é fazer um filme que consegue ao mesmo tempo soar realista e totalmente anti-naturalista. O tratamento faz sentido, se nós pensarmos que se trata de um momento anterior ao da fotografia, as imagens que Rohmer constrói acabam por construir uma relação com a pintura da época. Não chega a surpreender também que o filme sobre a Revolução Francesa que ele mais se assemelha seja Órfãos da Tempestade de Griffith.

Construído de forma contemplativa apresentando a Revolução Francesa exclusivamente do ponto de vista de sua protagonista, o diretor segue o texto original com tal vigor que não há aqui nenhum espaço para colocá-la num contexto mais amplo. A revolução em si acontece fora de cena, com ação se apresentando em pouquíssimos momentos. Na maior parte do tempo, o espectador só tem acesso ao efeito que ela tem sobre a aristocracia. Talvez a cena mais característica do filme seja justamente aquela em que Grace Elliot e outros aristocratas aguardam o resultado do julgamento do Rei. Durante longos minutos os observamos, a câmera fixa, enquanto eles seguem conversando e especulando sobre o julgamento, sendo de tempo em tempo informados dos rumos por um empregado (mais tarde quando Louis XVI perde a cabeça Grace assiste, novamente à distância, de sua propriedade de campo, com a ajuda de binóculos). O filme todo se constrói com grande rigor formal, pouquíssimos movimentos de câmera, planos, quase sempre, ou de conjunto ou gerais. Este processo acaba por valorizar o deslocamento dos personagens no campo, cada movimento ganha um a força especial, como na cena final.

Muito se falou da opção de Rohmer de mostrar a Revolução Francesa do ponto de vista da aristocracia. De fato, Rohmer se agarra de tal forma aos pontos de vista de Grace Elliot que em certos momentos, pode se questionar se o filme não perde um pouco da sua lucidez. Na maior parte do templo, o que se tem é exatamente o contrário, as longas discussões verbais entre Grace e o Duque de Orleans nos são apresentadas sem que o diretor tome partido para qualquer um dos lados. Além disso, como o diretor é o primeiro a admitir, A Inglesa e o Duque é primeiro um filme sobre o Terror, mais do que sobre a revolução. Mais do que qualquer posição em favor do rei, aquilo com que o diretor mais parece se relacionar em relação a Grace Elliot é o seu horror diante da progressão da revolução. Em certo momento, quando já se sente acuado pelos rumos da revolução, o Duque afirma que vê a revolução de forma positiva (o filme nunca deixa claro até que ponto ele é honesto ou só interesse, em parte porque só o que temos acesso dele é dentro de sua relação com Grace), mas reconhece o horror de vivenciá-la, o que deve estar mais próximo da visão de Rohmer do que qualquer outro momento do filme.

Filipe Furtado