Entre
a imagem-metáfora e a beleza vazia, o quê?
Lázaro
Ramos em Madame Satã, direção de fotografia
de Walter Carvalho
Um dos discursos mais habituais e habitualmente defendidos no cinema brasileiro
atual é o da diversidade. Contra (ou na afirmação
da perda da ingenuidade de) uma nostalgia do cinema combativo dos anos
60 ostenta-se sempre o fato de que o cinema atual é diverso, múltiplo,
não possui discurso nem motivação única. O
cinema brasileiro da chamada "retomada" é vários
cinemas; é, antes de movimento cinematográfico, apenas movimentação,
retomada da atividade econômica de se produzir filmes. E antes de
constatação, esse detalhe é até uma bandeira.
É bastante
fácil de explicar este fenômeno pela multiplicidade de pólos
de produção e pela radical privatização da
atividade criativa. Os autores brasileiros de longas-metragens (quando
são autores) o são de maneira isolada, não formam
comunidades, não trocam idéias a respeito de seus cinemas
(salvo nos parcos encontros nos festivais, que começam a se desenhar
mais como plataforma de negócios do que como bancada de pensamento).
Apenas pequenas concentrações, formadas também por
motivos econômicos (os diretores da Conspiração, os
da Videofilmes, os da Casa de Cinema etc.) costumam estabelecer alguma
linha de ética-temática-estética.
Mas no meio deste
caos ordenado e desejado, dessa biodiversidade visual e textual, alguns
agregados de coerência se formam, como que tubérculos no
meio de um rizoma. Poderíamos listar alguns deles de grande relevância,
como a obsessão temática pelo Nordeste ou o desejo de um
cinema mais próximo do público ou, ainda, a busca por um
cinema mais "internacional". Interessa-nos, no entanto, um elemento
que parece flutuar em torno de todos os outros sem ser notado, apesar
de ser o que mais aparece: a busca de um padrão visual originalmente
brasileiro.
Para onde se olha,
no cinema brasileiro, lá está a fotografia. Ela ocupa todo
o filme, toma-lhe o pulso, faz-se presente como um fantasma para a própria
montagem, uma imposição. A fotografia do cinema brasileiro
tornou-se não-discreta.
Mas há que
se dividir esta nova imagem em dois grupos: a primeira, formada pela busca
por uma imagem-metáfora, uma forma de traduzir em termos de plano,
luz e, sobretudo, cor (e contrastes de cores) conceitos ou impressões.
É uma visualidade que busca vencer o "tédio da comunicação",
como dizia o poeta Paul Valéry. A outra é a busca de uma
imagem que seja capaz de produzir sensação de beleza e,
com isso, sustentar o conteúdo do filme como parte de um sistema
de entretenimento/anuência do espectador. Em ambos os casos, dá-se
a produção de um discurso de obra, de opus, de que há
uma operação artística envolvida na produção.
No primeiro, pela colocação do autor como produtor daquelas
imagens, como alguém que as pensou. No segundo, pela colocação
do profissional como artífice de uma arte (no sentido renascentista),
dotado de habilidades especiais que o diferenciam. O resultado dessa segunda
operação é sempre no sentido da busca de uma qualidade
imagética. O cinema brasileiro tem trabalhado com imagens eficientes,
de alta qualidade, tanto em termos técnicos quanto em termos da
ousadia de sua produção. Mas que critério é
utilizado para dar a medida desta "qualidade"?
A produção
de uma imagem-valor, de uma representação o tempo todo calcada
em uma economia da pictoricidade, parece ter se tornado a mecânica:
são imagens performáticas, em que pesa por vezes mais um
conteúdo de uma espetacularização da fotografia do
que o uso da fotografia como expressão. Em muitos casos, as imagens
não dizem, elas apenas impressionam.
O que mais chama a
atenção em um procedimento como este, entretanto, é
que ele é antagônico ao que era colocado no Cinema Novo,
mas de uma forma paradoxal, como paradoxal era a própria lógica
cinemanovista da fotografia: enquanto o movimento dos 60 queria promover
um choque através do real, através da reexibição
incessante da realidade brasileira, geralmente moldada por caracteres
ideológicos, mas através de uma imagem anti-realista, ou
que aproveitava traços semiológicos do real e os potencializava,
principalmente pelo jogo de superexposição de fundos e uso
ao limite das latitudes de película diante da luz solar natural,
o cinema da "retomada" adotou a cor como gramática e,
com ela, um realismo mais direto, uma filmagem com mais "verdade".
Mas de que verdade estamos falando? Essa imagem marcante do cinema da
"retomada" é uma imagem gráfica, estilizada, de
cores de altos contrastes, de luz marcante. Através de uma fotografia
que permitiu manipular menos o real (no sentido ideológico aparente),
a entrada da cor e um uso dela com um fim específico produziu um
cinema de imagens fabulosas, mas fabulares.
Daí ser talvez
fácil concordar com imprecações como "cosmética
da fome" (proposta por Ivana Bentes) para dar conta de uma maneira
de tratar os mesmos assuntos através de uma nova estética
cuja ética, antes de desagradar, como era o fim político
último do denuncismo visual cinemanovista, é agora agradar.
A imagem, em vez de dizer, em vez de rebelar, domestica, traz prazer,
entorpece. Não há outra coisa senão o idílico.
É o Nordeste da Conspiração, com Eu Tu Eles
ou Viva São João!, ambos de Andrucha Wadungton, ou
ainda a favela de Orfeu, de Cacá Diegues. São universos
que se dão como ocorrência pictórica.
Nesse percurso, cabe
serem destacados três filmes, como objetos e, ao mesmo tempo, marcos
de uma certa negociação dentro deste campo. O primeiro deles
é Terra Estrangeira. Foi o filme que lançou Walter
Salles como um cineasta preocupado com a autoria. Essa condição
era demarcada, sobretudo, pela fotografia em preto-e-branco de Walter
Carvalho. Carvalho, aliás, tornou-se o Deus e o Diabo na terra
do sol da fotografia atual. Antes de falar dele, entretanto (mais à
frente, chegará a oportunidade suprema), Terra Estrangeira:
o teor de "filme independente" e "artístico"
do filme aparecia sem dúvida na fotografia. O não-real demarcado
por seus contrastes de branco e preto, além de um claro desejo
de dívida com o neorealismo, abriu as portas para o cinema que
se apresentava como produtor de sentido naquele momento. Ainda que se
possa dizer que o filme seja um apanhado de posições mais
ligadas a um projeto de privatização das decisões
em uma era de não-coletividade ou um arauto primeiro da era-FHC.
Estava inscrito no sistema de imagens do filme o desejo de uma visualidade
outra, original pelo menos no sentido de ser capaz de traduzir signos
conceituais em signos visuais, uma das operações mais nobres
da fotografia. Deus e diabo porque o mesmo Walter Salles levou Carvalho
para o cinema das sensações. Há um discurso para
a fotografia de Central do Brasil: a quase nula profundidade de
campo que assola o plano nas cenas da cidade, o gradual aumento do foco
à medida que (e na medida em que) o menino e a professora adentram
no Sertão, são indícios de um desejo semiológico
na fotografia. Mas já o começo de um performatismo que incomodaria
ainda mais em Abril Despedaçado que, se pode ser elogiado
como demonstração "braçal" de um grande
câmera (a seqüência da perseguição é
espetacular), não ultrapassa uma imagem apenas formal. São
flores de plástico.
O segundo caso digno
de nota é aquele que talvez seja o filme visualmente mais expressivo
nos últimos anos. Estorvo, de Ruy Guerra, trouxe mais do
que um discurso na filmagem, mas um discurso sobre a câmera. A imagem
em cores de Marcelo Durst (Walter Carvalho faria a fotografia, mas foi
substituído pelo colega com igual brilhantismo) parecia uma filmagem
em preto-e-branco. O estatuto da visualidade estava pela primeira vez
em jogo no cinema brasileiro, desde Terra em Transe. Uma lacuna
se abria (o que é bom!). Imagem e narrativa tinham uma integração
desconstrutiva da ordem da própria definição do que
é real e o que não é. Pela primeira vez, uma visualidade
incômoda, que ultrapassou a nulidade expressiva, o "tédio
comunicacional" e, até, a semiologia artística.
O terceiro marco a
ser apontado é Madame Satã, de Karim Aïnouz,
mais um momento de Walter Carvalho. Antes, porém, é preciso
lembrar de um elemento importante: o surgimento de uma classe organizada
de fotógrafos via ABC. A Associação Brasileira de
Cinematografia finalmente conseguiu se tornar uma entidade ativa. Isso
reabriu debates sobre a imagem brasileira. Ora, esta mesma entidade também
criou o primeiro prêmio profissional importante para a área,
o Prêmio ABC. Claro, o primeiro foi vencido por Carvalho, por Lavoura
Arcaica. Este filme representa um elemento estratégico na produção
de um discurso de visualidade no cinema brasileiro. É que, com
sua maneira particular de ser produzido (o confinamento de elenco e equipe
em uma fazenda durante meses, a improvisação sem roteiro,
a partir do livro de Raduan Nassar, a constituição de uma
luz básica, que obedeceu a um princípio barroco de claro-escuro),
ele fez com que fosse permitido a Carvalho fazer o que sabe fazer melhor:
falar. É o que a fotografia dele faz quando é possível
ultrapassar o meramente pictórico. A fotografia do filme é
o próprio conflito que o filme contém.
Mas, finalmente, Satã.
A fotografia do filme impressiona a quem diante dela pare os olhos por
mais de um segundo. Por que? Pela maneira como a visualidade dialoga com
o princípio gerador do filme e, que curioso, por seu poder expressivo.
Graças ao efeito de "bleach-bypass" ou "no bleach",
ou seja, de salto de um dos banhos da revelação, o filme
adquiriu as feições de uma filmagem em ektachrome. O resultado,
entretanto, não é cosmético, é semiótico
e, mais curioso ainda, historiográfico: em cada plano de Madame
Satã mora o cinema marginal e mora o desejo de um cinema do
século 21, desejo que dialoga com um momento muito crucial por
que passa o cinema brasileiro: sua posição como cinematografia
no corpo cinematográfico mundial quer ser demarcada. Nesse sentido,
a questão que se coloca é se o cinema brasileiro faz (ou
deve fazer) parte de um "movimento" do gênero "nueva
onda", como tem sido chamada a atual fornada de filmes latino-americanos.
São filmes dotados de um padrão visual cuja única
obsessão aparente é a tal "qualidade". Filmes
como E Sua Mãe Também, Plata Quemada ou O
Crime do Padre Amaro obedecem a um mesmo sistema semiológico
que impõe às imagens apenas um compromisso com a fácil
compreensão do público e com sua diversão ou seu
agrado, bem ao estilo americano de produzir imagens. Pão e circo
em um mesmo plano. Nesse sentido, filmes como Cidade de Deus ou
Deus é Brasileiro não deixam de se inserir em um
contexto como esse, o primeiro mais do que o segundo. As imagens que giram,
que se fundem, que se sobrepõem para narrar a história da
favela carioca não servem a outra coisa senão a oferecer
ao espectador um espetáculo, espetáculo antes de tudo suportável
(já que o tema do filme seria por demais pesado para as platéias
mais habituadas com uma gramática televisiva), mas mais que suportável,
agradável.
Não entraremos
aqui nas causas profissionais ou circunstanciais que conduziram a este
quadro. O debate sobre a participação dos fotógrafos
na publicidade e no videoclipe e sobre uma suposta contaminação
da linguagem dos longas-metragens de ficção (e até
dos documentários) é sempre por demais polêmico para
ser posta unilateralmente, pelo menos em curto espaço. O que fica
como reflexão aqui é não uma origem mercadológica
das imagens produzidas pelo cinema brasileiro e também não
uma origem mercadologizóide. Fica sim uma pergunta de se queremos
imagens mais vendáveis, de fácil consumo, ou um cinema de
vigor artístico e, por que não, político.
Alexandre Werneck
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