Idéias
e sugestões
Tempos de transformações, estamos em tempos de transformações
no cinema brasileiro, este parece ser o mote do momento. Talvez sempre
seja o mote do momento afinal, como se sabe, a produção
de cinema tupiniquim ainda não se caracteriza por ser estável,
em inúmeros aspectos. Mas, decerto por conta do início do
novo governo, há uma velha disposição que ganha força
no momento: a de reformular as políticas de apoio, de modo bastante
amplo. Tanto é assim que no momento há uma comissão
recém-formada pelo CBC para revisar a MP do Audiovisual, a que
criou a Ancine (é sabido, de todo modo, que este grupo, formado
por profissionais reconhecidos, já vinha trabalhando de modo informal
antes da assembléia do CBC). Outro indício está nas
consultas públicas que vem fazendo a Ancine em seu site, e já
são conhecidos também relatórios produzidos por Luiz
Carlos Barreto, que fez diversas sugestões para alterações
na legislação. Pode-se ver outro indício ainda na
entrevista de Orlando Senna desta edição, quando reconhece
a já sabida disposição do novo governo em revisar
os mecanismos de apoio das leis de incentivo ("para um segundo momento").
Em suma, daqui pra frente tudo vai ser diferente.
Certo. "Ótimo,
ótimo", diria um antigo cronista. Então cabe a qualquer
cidadão o direito de manifestar opiniões e sugestões
acerca destas bem-vindas mudanças, assim como o fez legitimamente
o mais célebre produtor de cinema do Brasil. Este artigo, portanto,
se destina a isso, fazer propostas ou melhor, a esclarecer, já
que as proposições que seguem já estão sugeridas
em certos momentos na entrevista que eu e o amigo e editor Ruy fizemos
com Orlando Senna. Para esclarecer, então, volto ao Relatório
do Seminário de Audiovisual, que foi produzido e coordenado pelo
atual Secretário do Audiovisual quando fazia parte do governo do
Estado do Rio, chefiado por Benedita da Silva.
***
Há um ponto
levantado pelo Ruy na entrevista que nos parece o de resolução
mais simples. Trata-se da exibição na Rede Pública
de Televisão de filmes produzidos através de leis de incentivo.
Sem sombra de dúvida o relatório produzido é fabuloso
como ponto de partida, mas é o caso de lamentar este esquecimento.
Na mesa que analisou as leis de incentivo, chegou-se às propostas
de "Criação de mecanismos de incentivo que estimulem
as emissoras de televisão, tanto as de sinal aberto quanto os canais
pagos, a exibirem filmes brasileiros" e de "Adoção
legal de ações educacionais e mediáticas objetivando
o aumento progressivo do público de filmes brasileiros"
enquanto na mesa que tratou do assunto Televisão propõe-se
claramente a "Instalação e operação
de uma Rede Pública de Televisão, lastreada em cerca de
mil canais culturais, educativos, universitários e comunitários
existentes no país. A rede pública deve ser operada com
participação e co-responsabilidade da sociedade".
Todas são propostas inteligentes e necessárias. Mas as pontas
dos fios, por alguma razão, não são amarradas. Chega-se
a propor em seguida a "Criação de mecanismos de
fomento para a produção audiovisual independente, seja originalmente
feita para cinema ou para televisão, e que visem a veiculação
nas TVs abertas", como se o Estado brasileiro não tivesse
ainda mecanismos de fomento à produção audiovisual.
Se o Estado indiretamente
dá recursos à produção audiovisual (através
das leis de incentivo) e tem uma Rede Pública de Televisão
(a Rede Brasil, que todos sabem ter uma série de problemas técnicos
e orçamentários), não é justo que ele venha
a ter o direito de exibir, cedo ou tarde, os filmes que patrocina? Será
que é complicado estabelecer esta regra? Talvez não seja
preciso mais do que adicionar um simples parágrafo aos textos das
leis que seria o seguinte: passado um determinado período após
a entrega da cópia final de um filme à Ancine (quatro anos,
digamos), a rede Brasil terá o direito de exibição
do produto audiovisual feito majoritariamente com recursos incentivados,
em contrapartida ao uso dos tais recursos.
Acreditando na proposta
de uma rede pública de televisão que realmente alcance todo
o território nacional (o que próprio Orlando admite ser
um grande desafio, cuja superação é imprescindível,
no entanto), basta que esta resolução seja tomada para que
caia por terra a questão ética que se levanta para o incentivo
à produção cinematográfica em geral (talvez
a principal) por que patrocinar filmes aos quais a maior parte da população
não tem acesso? Ainda que uma série de argumentos possa
ser desfiada para a questão, é evidente que é preciso
tornar acessíveis os filmes. Muito se fala no fechamento dos cinemas
e na elevação do preço dos ingressos. Certo, não
há dúvida. Mas também não há dúvida
de que, tendo aumentado a população do país, aumentou
o número de possíveis espectadores. Embora todos saibamos
que boa parte destes espectadores já se satisfaz com as novelas
televisivas (e outra parte da população ignora a produção
audiovisual por razões diversas), uma coisa parece ser deixada
de lado em todos estes belos estudos acerca do mercado e do número
de espectadores em salas de cinema não há menos gente
vendo filmes, o que há é menos gente indo às salas
de cinema.
Então, sem
dúvida é uma bela iniciativa apoiar a abertura de novas
salas de cinema e sem dúvida é preciso formular um projeto
para estimular que estas salas sejam abertas também em localidades
comercialmente pouco atraentes. Mas isto não basta. Há pessoas
que gostam de ir ao cinema, mas há outras que preferem ter seu
audiovisual de cada dia dentro do lar e não são poucas.
São pessoas que vêem filmes em vídeo ou, principalmente,
na televisão, seja aberta ou a cabo. É preciso ter filmes
brasileiros na televisão aberta e não só num canal
que só é apresentado no pacote mais caro de uma rede a cabo.
E é preciso existir uma boa rede pública de televisão.
Se o Estado patrocina filmes e patrocina uma rede, beira o irracional
que ele não tenha o direito de passar uns na outra. Se recebessem
a sugestão de patrocinar filmes a que não teriam nenhum
direito posterior, não acredito que se interessassem pela proposta
os conhecidos donos de redes da televisão brasileira.
Isto, é claro,
deve ser regra apenas para filmes bancados majoritariamente por incentivos
fiscais, e é preciso que seja dado período posterior à
cópia final para que o projeto seja lançado em cinema, vídeo
e redes de televisão privadas, para que haja o possível
retorno comercial. Se ao produtor não interessar ceder o filme,
basta que não utilize as leis de incentivo e pode buscar apoio
através de empréstimos do BNDES, que precisa apoiar também
pequenos produtores. Por outro lado, à Rede Brasil não deve
caber restrições estéticas ou quaisquer outras
se o filme foi produzido com recursos públicos, é preciso
que seja apresentado para quem o pagou, ainda que com as possíveis
restrições de horário necessárias à
programação televisiva. Não cabe a servidores públicos
pautar seu trabalho por julgamentos estéticos.
***
Julgamentos estéticos.
Há um outro ponto no referido relatório que mereceu um comentário
do Ruy. É uma sugestão da mesa que discutiu incentivos fiscais,
propõe o seguinte: "Adoção de um conceito
que determine quais os projetos que devem, ou não, ser incentivados.
Tal conceito deverá estar estribado na qualidade do projeto e na
sua função social". Isso é bastante complicado,
se um filme tem uma função social primeira, acredito que
seja a de ser visto. E qualidade do projeto depende de uma avaliação
subjetiva sempre discutível e problemática, que não
cabe ao Estado fazer é preciso apoiar toda sorte de filmes, cada
formato de forma diversa, sem julgamentos estéticos. Se o problema
é que é preciso filtrar os concorrentes ao apoio fiscal,
então segue uma sugestão polêmica: os que já
tiverem utilizado vão para o final da fila, e depois de um certo
número de filmes incentivados o realizador perde o direito de apresentar
novos projetos para usar recursos públicos que trate então
de realizar seus filmes com o lucro dos que foram incentivados. Bem, isso
talvez fosse injusto. Impediria que certas estruturas de incentivo fossem
criadas em favor de uns poucos, mas penaliza quem trabalha.
Então façamos
o seguinte, já que os recursos sobram: podemos esquecer as restrições
para quem já utilizou as leis do audiovisual e Rouanet em larga
escala, mas também tratamos de esquecer qualquer possibilidade
de julgamento estético, não é o melhor a fazer? É
preciso que valham tanto projetos de Neville DAlmeida quanto de Sérgio
Resende, tanto projetos de L.C. Barreto quanto de Mojica Marins, ainda
que isto possa desagradar a ambos os lados. Quem exerce função
burocrática deve se abster de julgamentos estéticos.
***
Por outro lado, julgamentos
sempre precisam ser feitos em concursos. Cabe então facilitá-los
através de critérios que os tornem justos e claros, isso
todos haverão de concordar. Daí vale lembrar um ponto problemático,
o da comparação de projetos diversos: como julgar num mesmo
concurso (o de Baixo Orçamento, por exemplo) um projeto de um cineasta
consagrado e o de um estreante? Como comparar um projeto de um cidadão
que tenha feito dois ou três curtas (ou mesmo já tenha feito
um longa) com um outro de um Nelson Pereira da vida? E mesmo se tratando
de cineastas com larga experiência: como comparar projetos de cineastas
com carreiras totalmente diversas? Como comparar projetos de um Mojica
Marins ou de um Luiz Rosemberg com o de um Sérgio Rezende ou um
Murilo Sales?
Mais sensato será
subdividir os prêmios. Um número X deve ser de estreantes,
um número X deve ser de profissionais experientes um não
pode concorrer com outro. E as exigências devem ser diferentes também.
Currículos não devem ser um critério de peso para
estreantes ou quase-estreantes, assim como a apresentação
de um roteiro de cem páginas não é o fator mais importante
para avaliar um projeto de um profissional renomado. O roteiro de um filme
de Ozualdo Candeias pode ter oito páginas, e isso não será
um indício adequado para avaliar o projeto. Mesmo que este tipo
de análise de concurso sermpre seja problemático (mexe com
dinheiro...), estes critérios são evidentes: análises
de projetos de estreantes não devem dar grande peso ao currículo
(em concursos de curta-metragem isso se torna ainda mais problemático)
e análises de projetos de profissionais experientes precisam uma
análise de viabilidade feita de forma mais cuidadosa e específica.
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Um ponto comentado
por Orlando Senna precisa ser lembrado, o de criar pequenos núcleos
ligados ao CTAv em diferentes regiões do país. O CTAv/Funarte
empresta equipamentos, através de co-produção ou
apoio, para diversas produções culturais de poucos recursos
financeiros de toda parte do país, mas sobretudo do Rio de Janeiro,
pois é aqui que está sediada a autarquia. O custo da implementação
de pequenos núcleos em outras regiões, que possam apoiar
com equipamentos projetos de baixo orçamento, se justifica plenamente
pelo estímulo à produção (que, afinal, produz
bens) que pode ser dado nestas regiões.
***
Ainda com relação
à expansão das atividades do MinC através destes
núcleos, pode-se chegar a uma pequena solução para
um grande problema, o da distribuição de filmes. Decerto
não é simples a idéia do Estado recriar uma distribuidora
nacional de longa-metragens para competir no mercado, mas não é
exatamente isto que se sugere aqui. O caso é que, se a alguém
pode caber o trabalho de organizar secretarias de cultura (e educação!)
municipais e estaduais em todo país, certamente será ao
MinC que caberá. E, estruturando uma rede simples de distribuição
de filmes culturais com as secretarias (aqueles que não interessam
às distribuidoras, curta-metragens, por exemplo), pode-se fazer
com que circulem nacionalmente filmes em 16mm, DVD ou mesmo VHS. Não
é preciso criar uma repartição basta alguns funcionários
em algumas capitais e uma boa rede de contatos com funcionários
estaduais e municipais.
***
Vale a pena lembrar
aqui também do comentário do colega Cléber, quando
nos lembra no Cinema Falado que é preciso considerar um problema
político a inflação de orçamentos. Acerca
disto Orlando Senna também marca posição, ao definir
que não interessa ao novo governo aumentar o teto de captação
dos projetos. Pois bem, este teto de captação hoje é
de três milhões de reais por lei, como nos contou Assunção
Hernandes. São duas as leis, Rouanet e Audiovisual e, não
havendo determinação oficial acerca do acúmulo de
leis, o entendimento tradicional é de que elas podem se acumular
sim, ou seja, pode-se captar para um mesmo projeto três milhões
de reais em cada lei. Considerando que a empresa patrocinadora precisa
dar uma contrapartida ao apoio descontado (95% na Audiovisual e 80% na
Rouanet), a situação existente é que um projeto pode
custar seis milhões de reais e ser feito descontando pouco mais
de cinco milhões de reais de imposto de renda devido. Isso fora
os descontos em leis estaduais e municipais.
Certo, até
aí todo mundo já sabe. Sugestão: define-se que não
será mais permitido o acúmulo de leis de incentivo ou
melhor, só será permitido até o teto estabelecido
de três milhões de reais (excetuando-se, é claro,
projetos já aprovados...). Por uma ou mais leis, não importa,
mas o desconto máximo de cada projeto pode ser definido em três
milhões de reais, uma grana que não é pequena, ao
contrário do que parecem pensar alguns.
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Para não dizer
que não falei de flores, há uma experiência muito
feliz da prefeitura carioca, já posta em prática há
algum tempo, que vale a pena ser estudada para uma possível recriação
em outras regiões: são as Lonas Culturais que a prefeitura
sustenta em bairros do subúrbio, distantes do centro e das possibilidades
oferecidas pelo mercado de entretenimento. Estas Lonas (cuja estrutura
o nome indica) funcionam apresentando cursos, shows, teatro e também
filmes (em vídeo, é claro). Funcionam bem, em maior ou menor
escala, oferecendo diversão e arte para a população
local. Espalhadas em torno de diferentes regiões, podem funcionar
como uma boa estrutura de difusão cultural (embora a experiência
seja bem-sucedida, cabe à prefeitura do Rio expandir o projeto,
que no momento conta somente com seis Lonas e deve vir a contar com mais
dez, segundo a proposta original).
***
São estas as
soluções definitivas dos problemas mais importantes para
a produção de cinema no Brasil? Não, com certeza
não são. Os maiores problemas são os suspeitos de
sempre: limitar a entrada da produção americana e democratizar
a programação e a produção televisivas. E
resolvê-los, todo mundo sabe, é dose pra leão. Tampouco
são as atitudes mais urgentes. Estas são apontadas tanto
por Orlando Senna quanto por Assunção Hernandes: Reformular
a Ancine (para reforçá-la), recriar a desmantelada SAV e
constituir de fato o Conselho de Cinema no Ministério da Casa Civil.
Mas logo será preciso seguir em frente, como manda o bom senso.
Ficam aqui registradas então, com petulância cidadã,
estas sugestões para alguns passos adiante.
Daniel Caetano
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