Duas
ou três coisas que sei dele
Marie
Rivere em O Raio Verde (1987)
1) Denotação
Eric Rohmer afirma
que, assim como Godard e outros contemporâneos seus, é um
cineasta da denotação. Partindo dessa declaração
do diretor, portanto, na cena final de O Raio Verde (Le Rayon
Vert, 1987), quando o sol poente deixa escapar seu último suspiro
num tom esverdeado, fenômeno ótico raramente observável
– e que preencherá de otimismo a protagonista até então
bastante negativista – devemos ver não mais que um leve contorno
verde claro, que se dá à nossa vista por somente uma fração
de segundo, antes do sol se perder por detrás da linha do horizonte.
O próprio contexto em que a imagem aparece periga atrair uma interpretação
que a extravase: o filme todo havia trabalhado um jogo de superstições
da personagem principal (interpretada magistralmente por Marie Rivere),
jogo este que o "acaso" (as aspas se devem a um fator que será
analisado mais adiante), por sua vez, ora interrompe e outrora estimula.
Na cena final ela está ao lado do homem que conheceu na rodoviária,
talvez o futuro parceiro amoroso por quem tanto procurava (ou talvez não,
nunca saberemos). O tal raio verde, cantado em momentos anteriores do
filme e mantido em estado latente, subjacente à trama, sua aparição
comparada à possibilidade de mudança positiva na vida da
personagem, a despeito de todo poder simbólico que aparenta possuir,
não deve ser encarado como outra coisa senão ele mesmo,
isto é, nada além de seu acontecimento luminoso. O significado
não supera o significante.
Está certo
que alguns teóricos da linguagem cinematográfica, a exemplo
de Jean Mitry e Christian Metz, ressaltaram a impossibilidade de uma imagem
se comunicar única e exclusivamente por intermédio de seu
conteúdo – a leitura da imagem envolve toda uma mecânica
associativa referente especificamente ao universo ocupado por ela, havendo
um amontoado de modalidades de representação que podem ou
não constar na bagagem do espectador e a que chamaram iconologia.
É mais ou menos como André Bazin, ao comentar o efeito Kulechov,
lembrando-nos de que a imagem da mulher seminua em seguida ao sorriso
ambíguo do ator russo só pode significar lubricidade em
virtude da carga cultural, social, histórica, psicológica
e tudo mais acumulada pelo espectador usual. Tal trilha levará
Metz à constatação de que, "no cinema mais do
que em qualquer outra parte, a conotação não é
senão a forma da denotação" (A Significação
no Cinema, ed. Perspectiva, p. 140).
Mas realmente não
há espaço para simbolismo nos filmes de Rohmer, cineasta
da denotação sim, que faz cinema utilizando a "massa
do mundo", o mundo que está aí e não precisa
ser retocado antes de ir à tela – ausência de retoque cujo
exemplo mor está nos deslocamentos, na tão recorrente perambulação.
Todos os seus filmes trazem cenas em que uma ou mais personagens andam
pelas calçadas, ou se locomovem de carro, ou de metrô, ou
passeiam entre prateleiras, sobem e descem escadas, atravessam as ruas.
Essa perambulação, que fecha em si todo o significado desejado,
é praticamente transformada no tema do episódio dirigido
por ele em Paris Vue Par... (série de seis episódios,
cada um se passando em um bairro parisiense, realizados em 1965 por seis
cineastas da Nouvelle Vague – Godard, Chabrol, Jean Douchet, Jean-Daniel
Pollet e Jean Rouch completam o time). As locomoções, pura
e simplesmente, os trajetos, as andanças sem rumo estampado no
rosto, enfim, as parcelas elípticas da narrativa, outrora retidas
na peneira do cinema clássico narrativo, constituem um elemento
bastante sólido em Rohmer – nesse ponto seu cinema entrega um autêntico
traço de modernidade.
Nos anos 80, quando
o cinema francês apresentava uma nova geração encabeçada
por Leos Carax, Luc Besson e Jean-Jacques Beineix, ressurgia a tensão
entre o falso e o verdadeiro, como lembra Bernardo Carvalho num texto
de 1989 (em O Cinema dos Anos 80, ed. Brasiliense, p. 281 a 289).
Os filmes feitos por Rohmer nessa década revelam uma sobriedade
absurda, que se contrapõe rapidamente à tônica estetizante
e enaltecedora de um "artificialismo local" carreada pelos cineastas
supracitados, que se fizeram notar ao arrancar elogios e poses do visual
exagerado de uma geração caracteristicamente deprimida.
A saída encontrada por Rohmer para o impasse é bem singela:
quando o artificialismo e seus desdobramentos tendem a querer engolir
o mundo, a melhor resposta é o apego às experiências
palpáveis, a criação de personagens carentes de estabilidade
emocional, mas convictos com relação às suas vontades
– nada das veleidades reinantes no cinema moderno. Distintamente do existencialismo
nouvelle vaguiano, onde – aí sim – o acaso podia ser soberano,
os personagens das "Comédias e Provérbios" querem
achar algo de antemão definido (o casamento – Le Beau Mariage;
a estabilidade na relação presente – Noites de Lua Cheia).
A década de 80 insistia com as questões do simulacro e do
fim das aparências sensíveis na pós-modernidade –
e Rohmer insistia com um universo sólido onde pessoas de carne
e osso interpretam situações comuns.
Nada disso implica
que ele ignore o artificialismo. O Raio Verde, integrante da série
"Comédias e Provérbios", que ele conduziu ao longo
dos anos 80 – e que deu origem a obras como Le Beau Mariage (1981),
Pauline à la Plage (1982) e Noites de Lua Cheia (1984)
– traz um fator importante a ser prontamente destacado: posto que a protagonista
viva esbarrando em cartas de baralho e ouça a história sobre
o raio verde e monte um quebra-cabeça de coincidências e
inverossimilhanças, a maneira como o filme se encaminha para o
desfecho revela um compromisso ultra-sólido com o que há
de mais verossímil e incontestável à luz de um realismo
que responda não só pelo natural (verdade perante o fato
histórico) como também pelo aristotélico (verdade
perante o provável). Tão maduro como pensador do papel das
imagens no mundo contemporâneo quanto é como cineasta, Rohmer
não cai na armadilha da crença na apreensão do real
imediato. Longe de tamanha ingenuidade, constrói seus filmes com
uma consciência narrativa que, de tão clara, acaba por pressupor
uma composição bastante laboriosa. São filmes extremamente
bem construídos – matematicamente construídos, no caso das
"Comédias e Provérbios". O percurso, entretanto,
muitas vezes se inicia a partir de um artifício deslavado, nítido.
Para ele, assim como para Kiarostami, não se trata de reproduzir
a realidade, mas antes de criá-la, e para isso são necessários
os recursos artificiais que nos permitirão o retorno àquela
realidade que geralmente somos incapazes de perceber. O que o naturalismo
da maioria dos filmes de Rohmer busca não é a captação
do real, mas antes a conquista do mesmo através de situações
dramáticas absolutamente prosaicas e discretas, que escondem sob
o invólucro ludibriante da simplicidade uma densa substância
de vida e que abarcam preceitos éticos vigorosos.
Se Jean Eustache faz
o personagem de La Maman et la Putain dizer que "o falso é
o para além", Eric Rohmer parece inverter a fórmula
e afirmar: "Quanto mais parecemos naturais desse jeito, mais longe
vamos".
2) Acaso?
A última cena
de Le Beau Mariage mostra a troca de olhares entre um rapaz com
pinta de intelectual e a protagonista do filme, que passara o tempo inteiro
à procura de um marido, tendo antes decidido que um casamento era
tudo de que precisava para ser feliz. O fato de que o rapaz já
tinha aparecido no início do filme, no mesmo trem, numa ocasião
semelhante, porém sem ter sido notado pela personagem de Beatrice
Romand, demonstra uma estrutura lógica praticamente equacionada
para unir esses dois pontos, o início e o fim, seja por reta ou
por curva ou por traçado sinuoso. A grande chance da personagem
já estava lá, desde o início, ela é que não
podia ver – ou não queria, pois o destino não paira sobre
as personagens de Rohmer como algo muito maior que elas; o destino está
na altura do homem, ao alcance do livre-arbítrio – e aí
a ética realmente pesa. O que poderia parecer simples obra do acaso,
do tipo "lá ela não olhou para o lado e aqui ela finalmente
olhou", ganha outros contornos por conta do que é narrado no filme,
que na sua primeira metade revela uma protagonista que julga ser impossível
um homem não se interessar por ela, tão atraente e inteligente.
Ela conhece o primo da sua melhor amiga, um advogado bem sucedido, e se
enche de convicção com relação ao casamento,
chegando a anunciá-lo antecipadamente para a mãe, para a
ex-patroa e para a própria amiga. Só que sua visão
demasiadamente auto-centrada não lhe permite enxergar a ausência
de grandes interesses por parte dele. Ao ser dispensada, após dias
telefonando e indo atrás dele, ela responde com descontrole, insultando
e provocando o advogado, tamanha sua fragilidade frente ao inesperado
desbloqueio da principal defesa que vinha mantendo, isto é, a auto-afirmação
e a transferência dos próprios problemas para o outro. E
é somente depois de passar por esse episódio, que de certa
forma lhe devolve os pés ao chão, que ela levanta os olhos
na direção do rapaz no trem e esboça um sorriso.
Uma moral da história que desautoriza a soberania do acaso.
O acaso (ou o falso
acaso) é uma aparente ambigüidade na obra de Eric Rohmer.
A casualidade do encontro no final do Conto de Inverno esconde
a força vital que o impulsiona. Nesse filme a personagem lembra
a todo instante do amor relâmpago que havia mantido num verão
distante – e que dera origem à sua filha – sempre o afirmando como
a possibilidade de felicidade que deixara escapar por um leve descuido.
Ela errara uma palavra ao anotar seu endereço e entregá-lo
ao amante – essa assustadora leveza impingida a um gesto tão falsamente
insignificante, mas que parecia ter selado o destino da jovem (todos os
relacionamentos que manteve depois daquele deram errado). É essa
dialética entre peso e leveza que demarca a ambigüidade do
acaso na obra de Rohmer. No meio do filme ela pensa ter visto o amor de
sua vida andando pela rua. Sai ao encontro daquele vulto, embrenha-se
na multidão parisiense para nada encontrar. "Estou enlouquecendo?",
ela se pergunta e revela o martírio a que se submete toda vez que
lamenta o erro bobo na hora de escrever o endereço.
No momento em que
sobe ao ônibus, mais para o final do Conto de Inverno, escolhe
um lugar e senta, ela não espera que ele vá entrar minutos
depois, acompanhado de uma amiga, e vá sentar logo à sua
frente. Quando procurou, pensou ter visto um fantasma. E quando nada procurava,
apesar de trazê-lo no pensamento constantemente, pôde encontrá-lo.
Se tal aparição não se delineava na cabeça
da personagem, para nós espectadores, como prenunciava a peça
de Shakespeare (A Tempestade) a que ela assistira, o discurso se
encaminhava para um final feliz, tal qual ocorreu. Ao menos no plano narrativo,
o encontro não foi acidente, foi construção. Construção
que muitas vezes é indireta; está subentendida nos gestos
mais insuspeitos, que não indicam claramente uma relação
com a conquista. Merecimento? De forma alguma. A questão moral
não é assim discutida em termos de fazer o certo ou o errado
e daí obter recompensa ou punição. Os encontros fortuitos
têm mais a ver com a presença do cósmico no cotidiano,
com o poder do simples. As escolhas das personagens estão revestidas
daquele caráter anfótero já salientado aqui: de um
lado pesam uma pluma, e de outro uma tonelada.
Há o acaso,
sim, mas há também a convicção que permite
que ele faça diferença na vida das pessoas. Nos filmes em
que se vê tal interferência do acaso, alguém sempre
crê em alguma coisa como opção de vida, ou de possível
satisfação, ou até de acomodação. O
rapaz do Conto de Verão só pode ser salvo por um
telefonema, no auge de sua confusão com as três mulheres
que o dividem, porque acredita na música como sua prioridade –
do contrário, a proposta feita por telefone somente agravaria seu
estado de dúvida. Se a personagem de Conto de Inverno também
não soubesse o que queria, isto é, se não achasse
que aquele homem que ficara para trás na doce lembrança
de um verão era o homem de sua vida, o encontro no ônibus
apenas o incluiria na longa fila de pretendentes. O que os personagens
de Rohmer desconhecem é o modo exato de agir para conseguir aquilo
que desejam. Mas os desejos em si, eles conhecem muito bem – e só
assim se prepara o terreno para que o acaso "funcione".
3) Cinema de Prosa
Os filmes de Rohmer
obedecem a certos posicionamentos de autor que beiram o esquematismo.
São posicionamentos que se mostram fortes na mesma medida em que
surpreendem: não se enquadram nos modismos – muito pelo contrário,
basta ver o histórico de contracorrentes propagado pelo diretor
– nem aderem às rupturas tão facilmente – mesmo em pleno
estouro do cinema moderno nos anos 60, Rohmer saía em defesa de
um cinema narrativo, linear, de prosa (até clássico, sob
determinados aspectos). A postura impassível da câmera, sempre
rígida, dura, restrita a sutis re-enquadramentos (seja por pequenos
tilts ou pela lente zoom), quando diante de pontos dramáticos cruciais,
por exemplo, revela um olhar investigador, quase antropológico,
que não deseja introduzir na decupagem algo capaz de dispersar
o conteúdo da cena. Dessa mise en scéne parcimoniosa
– que parece aguardar pelo acontecimento ao invés de tentar antecipar-se
a ele – germinam instantes memoráveis, como o magnífico
plano-seqüência de O Raio Verde em que Marie Rivere
usa e abusa do seu talento de atriz para fazer sua personagem explicar
às demais pessoas que se encontram à mesa de almoço
(e com as quais ela tem pouquíssima ou nenhuma intimidade) o porquê
de não comer carne e ser uma vegetariana. Essa cena se desenvolve
com tamanho naturalismo que paradoxalmente suspeitamos de sua natureza
(terá sido improviso? terá constado tudo no roteiro? – os
créditos finais põem fim à dúvida, agradecendo
a Marie Rivere por sua contribuição pessoal, leia-se improvisação).
E aí está um grande dualismo (não confundir com contradição)
no trabalho de Rohmer: a encenação não esconde sua
posição para lá da realidade, ou seja, sua pertença
ao universo fílmico, e somente fílmico, porém ao
mesmo tempo ela deflagra pessoas em situações nas quais
nos vemos imediatamente. Estranha conclusão: Rohmer não
precisa botar a câmera diante do espelho nem queimar a película
para que saibamos que aquilo não passa de um filme; corre em busca
do cotidiano (mesmo nos filmes de época) e acha o cinema infiltrado
na vida, na encenação da vida, desde o eminentemente banal
até a mais inesperada obra do destino.
O apogeu dessa opção
pela prosa é a utilização abundante de intertítulos.
Ora simplesmente situando a história no tempo e no espaço
(Conto de Verão, Conto de Inverno, O Raio Verde),
ora complementando-a através de uma narração sobressalente
(como em A Marquesa d’O), que entrecorta as imagens substituindo-as
por palavras, à moda cinema mudo, os intertítulos dão
aos filmes uma literalidade altamente condizente com as intenções
do autor. É mais um recurso de que lança mão com
o objetivo de colar o significado ao enunciado, e não deixá-lo
esvoaçante e vulnerável ao simbólico; transformar
forma e conteúdo numa só coisa, mostrar que o filme se esgota
(numa acepção positiva) nele mesmo. Filmes exigentes no
seu laconismo.
Há simplicidade
narrativa, mas não há personagem simples. Economia de movimentos
de câmera, mas não economia de palavras.
Seu último
filme, A Inglesa e O Duque, revela um uso do digital extremamente
contemporâneo e inventivo. Veterano da atividade cinematográfica,
Eric Rohmer é antiquado somente para os preguiçosos ou relapsos,
que deixam de ver sua atualidade. Para todos os demais, é sempre
moderno.
Luiz Carlos Oliveira
Jr.
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