E se o cinema de autor?


O amigo Daniel Caetano já deve estar pensando, "lá vem o Furtado falando de autores de novo". Pois bem, acho que vale deixar desde já claro os objetivos do artigo que segue. Se retomo novamente a questão do autor, a preocupação principal não é nem de longe aqueles que fazem os filmes, mas os filmes em si – e, em especial, os filmes que ainda estão por vir. O que me parece tornar bastante válido ao relançar a questão é a constatação de que se 2002 foi um excelente ano para o cinema brasileiro, não há nada que indique que 2003 necessariamente vai apresentar a continuidade disso. Fica uma sensação de que talvez tenhamos simplesmente dado sorte de uma série de filmes fortes calhar de sair no mesmo ano. A partir de Ônibus 174, para ficar num dos filmes mais elogiados no ano, cria-se que tipo de expectativa sobre o próximo trabalho do José Padilha? Não sei, mas não me parece que o próximo filme do Padilha vá ser esperado da forma como o próximo documentário do Eduardo Coutinho será, apesar de toda a recepção que Ônibus 174 teve.

Algo que me impressiona ao dar uma olhada por cima, na lista de filmes lançados durante o ano, é exatamente a crise de autoria que se apresenta nela. Mais ainda quando se pensa especificamente nos diretores que começaram a filmar na década de 90, já que entre os veteranos (Coutinho, Domingos, Giorgetti), de forma mais ou menos bem sucedida, ainda é possível se pensar num projeto de obra. Não que não seja possível traçar paralelos entre os filmes dos cineastas mais jovens, a questão nem é bem essa. È fácil detectar uma freqüência de determinadas situações e temas nos filmes do Walter Salles, mesmo quer ocasionalmente eles pareçam meramente emprestados da melhor fase de Wim Wenders. Da mesma forma que é fácil localizar a maior parte dos problemas de Cidade de Deus em Domésticas. O que falta é menos uma seqüência de temas, é mais uma urgência e/ou necessidade autoral, aquele algo mais difícil de definir, que torna vez ou outra um filme claramente menos bem sucedido, com sérios problemas, mas ainda assim capaz de despertar a paixão, a necessidade de defesa por parte do cinéfilo. Não se enxerga isso nestes filmes, salvo raríssimas exceções (Através da Janela, da Tata Amaral, me vem à cabeça) não se sente este tipo de projeto autoral sendo desenvolvido.

Dois pontos me parecem essenciais na hora de apontar as razões dessa crise: a balela da diversidade e uma crise mais ampla no conceito de cinema autoral que se pode sentir em todo cinema contemporâneo. Não se tratam em si de novidades, e elas já foram discutidas na Contracampo em algumas oportunidades, mas ainda assim acho que é preciso continuar retornando a elas para abranger melhor o assunto.

Primeiro a diversidade, uma desculpa esfarrapada que se criou para se explicar justamente a ausência de qualquer tipo de projeto seja, seja coletivo, e a que a mídia comprou e propagou a tal ponto que parece ter tornado uma verdade inquestionável. Diversidade sempre houve em qualquer época e em qualquer cinema nacional, ou será que todos os filmes italianos do pós guerra eram neo-realistas? Ou toda a produção francesa da década de 60 podia ser jogada sobre o rotulo de nouvelle vague? Ou ainda, retornando ao Brasil, que todos os filmes brasileiros produzidos em 1964 seriam parte do cinema novo? Qualquer cinéfilo com a curiosidade de querer conhecer mais do que os dois ou três filmes mais famosos do período sabe que não é bem assim, que muitos outros filmes se faziam, muitas vezes completamente antagônicos aos filmes mais celebrados. Se a tal diversidade fosse apenas um aleijão para critico ruim na hora de tratar de cinema nacional, tudo bem. Mas o termo já se tornou de tal forma desculpa para encobrir qualquer tentativa de discutir a estética e as propostas da produção atual, que parece muito valido repetir que a produção do cinema brasileiro sempre foi diversa e isto é muito bom, mas não quer dizer nada.

Que desde que o circuitinho se tornou um mercado bem organizado, menor, mas pouco diferente do circuitão, a noção de cinema autoral está em crise, é algo repetido aqui várias vezes. Vale a pena, no entanto, ressaltar o quanto boa parte do que se produziu de menos autoral no cinema brasileiro em 2002 veio justamente dos filmes mais claramente pensados em razão do circuitinho. O Poeta de Sete Faces, Janela da Alma, As Três Marias não são só o que de pior o cinema brasileiro fez este ano, mas são tão ou mais construídos a partir de uma série de idéias prontas de como agradar um público quanto Avassaladoras. Há nesses filmes um ar de embuste, uma completa falta de idéias, de um projeto de cinema, que chega a assustar. Basta comparar o Nietzsche do Julio Bressane com o Drummond do Paulo Thiago para se entender a diferença entre ter um ponto de vista sobre algo que organiza o seu filme, e simplesmente se apoiar em um personalidade de renome.

Já que citei Avassaladoras, acho valido dizer que não existe nada de errado com filmes mais essencialmente comerciais como o próprio Avassaladoras ou Bellini e a Esfinge, apesar de que estes filmes me pareçam carecer um pouco de falta de uma ambição além da de se resolverem (melhor ou pior) como narrativa. Talvez isto venha inclusive como uma reação em relação a tentativas mal sucedidas de cinemão que pareciam envergonhadas de sê-lo (A Hora Marcada, Bufo & Spalanzani). Mesmo assim, filmes como Houve uma vez Dois Verões mostram que dá para se construir um filme comercial de forma melhor trabalhada, sem abrir mão de um ponto de vista sobre o que está sendo narrado.

Para não dizer que não há algo de positivo a falar, dois filmes: Madame Satã e Rocha que Voa. Ambos (mesmo que Madame Satã com muito mais sucesso) têm uma proposta pessoal de cinema, ambos parecem nascer de uma vontade de dizer algo muito mais do que ganhar prêmio em festival internacional ou agradar a um público especifico. Ou seja, são filmes que têm aquele "algo mais" mencionado no começo deste artigo. São filmes que me fazem esperar mais ansioso por 2003 ou 2004. Mas do que outros filmes, mesmo melhores resolvidos.

Filipe Furtado