Veneno, de Todd Haynes

Poison, EUA, 1991, 91', p&b/cor


Veneno de Todd Haynes

Todd Haynes, Veneno e o cinema da contaminação

Um certo dia, Todd Haynes fazia uma conferência sobre seu cinema. Karim Aïnouz, assistente de Haynes naquela época e hoje mais famoso como o realizador de Madame Satã, estava presente. Ouviu de seu empregador uma frase que iria modificá-lo definitivamente: "Um filme sempre parte de um único conceito". Haynes falava isso a propósito de Superstar – The Karen Carpenter Story, um média metragem que encena somente através de Barbies o percurso de paranóia social e excesso de autocontrole que leva uma talentosa intérprete a sofrer de anorexia. Um filme biográfico, então? Nada disso: antes um filme que fala da América, fala das preocupações com cosmética, fala da introjeção dos postulados sociais mais fúteis passados de mãe para filha – o filme é implacável com as críticas que a mãe faz à filha, caracterizando-a como possível origem do nascimento da doença na filha Karen –, como num infinito fluxo de contaminação de valores e códigos distorcidos de uma classe média abastada e que, na falta de ter problemas materiais graves, inventa seus próprios problemas (de psicologia, de convívio) e contraditoriamente vem a padecer deles mais à frente.

O cinema de Todd Haynes está repleto de contaminados, de sujeitos patológicos que respondem anti-socialmente aos estímulos do meio em que vivem. Mas ali onde a maior parte dos cineastas insiste em ver um caso isolado, individual de patologia, e explorar ao máximo os clichês e efeitos melodramáticos da penúria dessas pessoas (Uma Mente Brilhante é um excelente exemplo desse tipo de cinema), Todd Haynes faz desses personagens um questionamento para além deles: mais do que casos específicos, individuais, eles são um caso. E, como em todo caso, é a sociedade inteira que está envolvida, que precisa ser engajada para que se chegue à origem do problema (A Salvo, primeiro episódio de Veneno) ou para que se descubra que, no fundo, não há problema (os desejos homossexuais em Velvet Goldmine e no terceiro episódio de Veneno).

Em todo o caso, os filmes de Todd Haynes são motivados por fluxos incontornáveis de desejo, num primeiro momento, e pela transmissão desses fluxos entre os indivíduos, transformando aquilo que seria considerado uma simples questão individual numa densa teia de relações onde o que passa a ser questionado não são mais as pessoas por terem agido da forma que agiram, mas todo o conjunto de relações e instituições que se constróem entre os sujeitos patológicos. Ao invés de perguntar "Por quê?" e "De quem é a culpa?", Haynes está muito mais interessado em perguntar "Como isso foi possível?".

Mas não há nada de moralizante em seu cinema. Moral implica uma norma aceitável e moderada de conduta e moralizantes são os filmes que tentam transformar personagens desviantes em notáveis exemplos de polidez e honradez social. Os hegelianos – e, entre eles, os marxistas e os psicanalistas – acreditam que o desvio, como forma de fugir à norma, ratifica e comprova a moral. Todd Haynes inverte a questão: é a imposição de uma dada norma moral que cria a figura do desviante e que pretende justificar sua perseguição. Foucault não está tão longe.

Se filmes como Superstar e A Salvo são mais analíticos, devendo muito ao cinema de Rainer Werner Fassbinder (e Haynes faz questão de citá-lo entre as suas influências), no sentido em que constróem muito bem o meio social a partir do qual seu personagem padece – e não seria nenhum exagero dizer que tanto a Barbie de Karen Carpenter quanto Julianne Moore padecem de sociedade –, filmes como Veneno estão muito mais próximos da fascinação pela contaminação à maneira dos filmes de David Cronenberg (Rabid, Videodrome, Crash), cineasta com quem Haynes partilha uma incrível vontade de esmiuçar a atração de seus personagens por afecções anti-sociais, excessivas e/ou autodestrutivas. Em Haynes, a perturbação pode vir através do corpo (como o cientista do segundo episódio de Veneno, a primeira parte de A Salvo) mas se dá principalmente no mental (a segunda parte de A Salvo, os outros episódios de Veneno, Velvet Goldmine). Em Cronenberg, ao contrário, o corpo costuma falar muito mais rápido do que a mente.

A Salvo, segundo longa-metragem de Todd Haynes e considerado numa enquete do Village Voice o melhor filme dos anos 90, separa o filme em duas partes muito diversas para colocar em questão o modo de vida formatado da sociedade americana. Num primeiro momento, a personagem de Julianne Moore começa a sofrer de vertigens, desmaios, acessos de vômito, etc. Um périplo pela sociedade médica não adianta muito, pois ninguém consegue identificar o que há de errado com ela. Até que, por acaso, ela observa um vídeo institucional de uma comunidade alternativa localizada num rincão verde, longe de todo convívio da sociedade e suas impurezas (tabaco, álcool, fumaça de carro...). Imediatamente fascinada, ela passa a fazer parte daquele grupo, que de são não tem nada: é, ao contrário, uma projeção new age da paranóia americana e apenas mais uma modulação desse modo de vida formatado.

A formatação também está no pano de fundo de Velvet Goldmine, viagem de imersão no cenário glam inglês de meados dos anos 70. O glam é, duas vezes (uma real, física, e outra psicológica, rememorada), motivo para o jrnalista Arthur Stuart sair do marasmo de sua vida comum e entrar no mundo de ficção desse movimento de comportamento onde ambigüidade sexual, androginia e dar vazão aos próprios desejos são as palavras de ordem. Mesmo que o filme seja um mergulho no delírio, o pano-de-fundo não poderia ser mais desanimador: os pais de Arthur adolescente assistindo a medíocres programas na televisão, o ídolo juvenil transformado em palhaço visual dos anos 80, quando o rock vira arena e megaestrelato. A cena em que o jornalista entra nos camarins de Tommy Stone, aliás, poderia tranqüilamente ter saído de um filme de terror, tamanho o desencantamento que Haynes, através de seu personagem principal, mostra com a maneira histérica e patética através da qual as tietes seguem apenas um ídolo, e não um modo de vida.

Longe do Paraíso, que estréia em março, revive dois filmes de Douglas Sirk, diretor por excelência dos melodramas americanos, Tudo Que o Céu Permite (All That Heaven Allows, 56) e Imitação da Vida (Immitation Of Life, 59). Com Sirk, Todd Haynes partilha o gosto pelo melodrama como forma de explicitação da hipocrisia da sociedade. Mas o que Sirk tem de emocional, Haynes tem de analítico. É esperar pra ver.

Ruy Gardnier

Apresentação: Eduardo Valente e Ruy Gardnier. Convidado: Alexandre Werneck (crítico de cinema do Jornal do Brasil)

Veneno
Poison, 1991, EUA, cor/p&b, 85’
Direção: Todd Haynes
Roteiro: Todd Haynes, sendo uma das histórias adaptada de Jean Genet
Produção: Chrtistine Vachon
Música: James Bennett
Fotografia: Maryse Alberti (cor), Barry Ellsworth (p&b)
Montagem: Todd Haynes e James Lyons
Chefia de elenco e assistência de montagem: Karim Aïnouz
Elenco: Edith Meeks (Felicia Beacon), Millie White (Millie Sklar), Buck Smith (Gregory Lazar), Anne Giotta (Evelyn McAlpert), Lydia Lafleur (Sylvia Manning), Ian Nemser (Sean White), Rob LaBelle (Jay Wete), Evan Dunsky (Dr. MacArthur), Marina Lutz (Hazel Lamprecht), Barry Cassidy (Officer Rilt)

Em "Herói", Richie tem sete anos, mata o pai e desaparece no mundo. Depois do acontecimento, um documentário pastiche em cores esquisitas questiona quais teriam sido as motivações do menino para cometer o assassinato. "Horror", filmado em preto e branco, é a história de um cientista que isola o elixir da sexualidade humana e, quando testa a invenção em si mesmo, transforma-se num inflamado assassino. Uma colega sua tenta salvá-lo, mesmo sob risco de vida. "Homo" mostra a atração de um preso na penitenciária Fontenal por um homem, outro detento, a quem ele tinha conhecido em sua juventude, num reformatório.

Filmografia de Todd Haynes
1985 Assassins: A Film Concerning Rimbaud (média)
1987 Superstar: The Karen Carpenter Story (média)
1991 Poison (Veneno)
1993 Dottie Gets Spanked (média para TV)
1995 Safe (A Salvo/Mal do Século)
1998 Velvet Goldmine
2002 Far From Heaven (Longe do Paraíso)

Citações de Todd Haynes:

O COMEÇO E A IDÉIA DE FAZER “VENENO”
“Quando começávamos, o filme que nos impressionava mais era Veludo Azul de David Lynch. Porque ele era experimental mas ao mesmo tempo se baseava nas formas narrativas tradicionais. Tenho uma lembrança extraordinária da criação [da produtora] Apparatus. Além de Barry [Ellsworth, diretor de fotografia e amigo] e eu, outra pessoa teve também uma importância fundamental: Christine Vachon. Nós éramos no começo cineastas que desejavam fazer produção. No mesmo período, Superstar conseguia tanto sucesso que eu acreditava que seria possível trabalhar com Barry e Christine num projeto de longa-metragem. Foi aí que me veio a idéia de um tema inspirado em Jean Genet. Comecei a trabalhar em Veneno e ao mesmo tempo dirigia todas as atividades da Apparatus. Eu não imaginava viver da profissão de diretor de cinema. Achava que ia seguir uma carreira de professor e volta e meia fazer filmes um pouco esquisitos paralelamente. Para mim, era difícil aceitar a lógica da direção totalmente sem mostrar ceticismo, e até inquietude. Assim perde-se a liberdade. Tive a sorte de lançar meus filmes com boas críticas e sem ter precisado fazer concessões a ninguém”

ESTILO, EMOÇÃO E INFLUÊNCIAS
“Acredito que todo artista tem uma ‘voz’ dentro dele, um estilo que lhe é próprio. Mas a maravilha no cinema diz respeito a seu grau de artifício. Quando se está consciente disso, não nos sentimos mais livres. Podemos jogar com o público e torná-lo consciente desse aspecto (de artifício) do cinema. Mas não se deve fazer isso em detrimento da emoção. Eu não queria renunciar à emoção passando por uma distanciação intelectual à maneira de Bertolt Brecht. Eu me reconheço mais no cinema de Douglas Sirk e de Fassbinder. Eles utilizavam as formas populares – como o melodrama – para desencadear no espectador emoções, mas ao mesmo tempo interrogando a maneira com a qual o cinema trata disso. Um filme induz uma relação com o espectador que pode reforçar sua visão de mundo, ou colocá-la em questão. Nos dois casos, tudo passa pela identificação. Não conheço, sinceramente, um outro meio de comunicação moderno que possa se defrontar tão diretamente com essas questões. Cada filme é uma experiência, e acredito que o estilo deve seguir um filme, e não determiná-lo”