Tolerância e o noir: o gaúcho sob assédio



O cinema do Rio Grande do Sul vive o auge de um momento privilegiado de renascimento, que se iniciou com Anahy de las Misiones, de Sérgio Silva, e se prolonga com a filmagem e lançamento de uma série de longas-metragens, entre eles Houve Uma Vez Dois Verões e O Homem que Copiava, de Jorge Furtado, e Concerto Campestre, de Henrique de Freitas Lima. Neste processo de ressurgimento, Tolerância, de Carlos Gerbase, é um marco não só pelo fechamento de um ciclo maior aberto há quinze anos por Verdes Anos, co-dirigido por ele e Giba Assis Brasil, como pela conquista até então inédita do apoio da máquina de distribuição da americana Columbia. No entanto, em contraste com o cenário auspicioso no segmento produtivo, se assistiu com Tolerância a uma preocupante omissão da crítica cinematográfica e cultural local no sentido de uma investigação mais detida dos seus ricos significados sócio-culturais. Caberia indagar, no caso, se tem sentido uma produção cinematográfica forte e competente se a sociedade não repercute adequadamente as suas realizações. É neste contexto que eu gostaria de prestar uma pequena contribuição para a diminuição do verdadeiro silêncio crítico que se instituiu em torno ao filme.

O que eu pretendo esboçar, em linhas bastante gerais, são algumas possibilidades de interpretação de Tolerância enquanto exemplar gaúcho de film noir do final de século. Dissimulado sob a temática mais superficial dos limites do casamento semi-aberto em sua relação com a resignação contra-cultural ao status quo, creio que o tema central que se revela, no filme, é o do sitiamento da masculinidade frente a uma mulher emancipada profissional e sexualmente. Esta temática é um dos elementos fundamentais do "cinema negro" americano dos anos 40 e 50 e de seu revival a partir da década de 70. Ao mesmo tempo, é evidente que Tolerância faz uso explícito das convenções do policial e do thriller. Tudo isso não somente autoriza, mas verdadeiramente recomenda, o apelo à reflexão sobre a representação da ameaça à masculinidade no film noir para forjar uma chave de acesso ao longa de Gerbase. É no seu diálogo com a estética noir, nas suas aproximações ou afastamentos para com ela, que o filme produz alguns de seus sentidos mais instigantes. E estes dizem respeito direto a um dos mitos locais mais caros: o da hombridade do gaúcho.

Tolerância articula esta sua temática central, a de sitiamento ou assédio da identidade masculina pela feminilidade, por meio da cuidadosa caracterização de seus personagens principais. O filme opera uma flagrante inversão dos papéis masculinos e femininos legitimados pelo patriarcado, destinando os homens à ocupação do pólo negativo dos pares atividade/passividade, realidade/fantasia, controle/submissão, decisão/incerteza, fala/escuta e outros. Esta reorganização psíquica é sintetizada na figura do protagonista, o porto-alegrense Júlio. Já ao princípio do filme, ela é introduzida pela oposição entre os mundos profissionais de marido e mulher. Júlio, como editor fotográfico, manipula, no recolhimento do lar, imagens fetichísticas do corpo feminino, revelando um simultâneo deleite e pudor indicativos de uma infantilização de seu comportamento. Em contraste, Márcia, a esposa advogada, atua no espaço público da lei, onde produz versões da História que intervêm sobre o destino de homens reais, sendo o seu modo psíquico o da segurança, da imposição.

O enfraquecimento da masculinidade introduzido pelo universo do trabalho é adensado, ao longo do filme, no plano afetivo e sexual, o que se dá nas relações de Júlio com a mulher, com a amante Anamaria e com a filha Guida. Assim, na investigação matrimonial dos limites da tolerância à traição, Júlio se enreda na hesitação para transar com Anamaria, ocupando por isso o espaço feminino patriarcal da sensibilidade. Cabe a Márcia, que trepa utilitariamente com o cliente Teodoro, a habitação do lugar de pragmatismo tradicionalmente reservado ao homem. A fala dela, ao expulsar o marido de casa, resume o assédio ao masculino: "Seja homem, Júlio!", ou seja, vá lá e coma a menina. Ao cumprir as instruções da esposa, a própria assunção por Júlio da condição masculina do adultério se dá sob a égide da submissão. A bem da verdade, todo o lento processo do ato da traição mostra um Júlio fragilizado, tomado pela culpa e pela insegurança. Os pedidos de desculpa a Anamaria repetem-se à exaustão, e novamente a figura feminina é quem lidera as funções.

O sitiamento à masculinidade de Júlio ainda é complementado, surpreendentemente, pelo desabrochar da sexualidade da própria filha Guida, frente ao qual ele se vê totalmente acuado. E não por acaso, é justamente o personagem de Guida que constrói a mais perfeita metáfora do assédio em Tolerância, no disciplinamento do corpo imposto pela filha ao pai, na sessão de ginástica, no sítio, ao princípio da história.

Para apreciar, à luz do noir, este verdadeiro assalto à masculinidade do gaúcho Júlio (e também de Teodoro) em Tolerância, é necessário ter em mente algumas das idéias-chave levantadas a respeito da sexualidade no cinema negro. O film noir é apontado como veículo de representação dos temores masculinos americanos no pós-guerra, decorrentes da disputa pelo mercado de trabalho, em um cenário recessivo, entre os contingentes retornados do front e a mão-de-obra feminina treinada para substituí-los durante o conflito. É neste contexto que deve ser entendida a figura noir mítica da mulher fatal. Um dos temas mais recorrentes na história da arte, no cinema negro a femme fatale metaforiza, do ponto de vista masculino, a independização alcançada pela mulher no momento histórico do pós-guerra. Ao operar a transformação desta em uma sedutora malévola passível de punição, o noir reforça a masculinidade ameaçada e reestabelece o equilíbrio perdido.

Alguns autores sustentam, no entanto, que o revigoramento noir do masculino é construído não apenas pela representação da metáfora da femme fatale, mas também pela transgressão da construção clássica do próprio herói que a enfrenta. No western ou no filme de ação, o herói funciona como uma figura idealizada de identificação narcisista, promotora da ideologia da onipotência e da invulnerabilidade masculinas. Já o herói (ou anti-herói) noir, mesmo no caso do detetive hard-boiled, constitui uma inversão deste ego ideal, por suas notórias características de ambigüidade, derrotismo, isolamento e auto-centramento. Neste sentido, o freqüente exacerbamento da masculinidade dos personagens negros pode-se considerar uma marca daquilo que, justamente, se faz ausente. O resultado é que o film noir reconhece e enfrenta a crise de confiança na masculinidade, mas sempre associando-a às formas como o masculino é arregimentado pelo patriarcado, reclamando a exploração de novas fronteiras para o redimensionamento da identidade do homem.

Esta dinâmica noir de revigoramento/redimensionamento da masculinidade é curiosamente retomada, em Tolerância, por sua própria e particular dialética de aproximação/afastamento para com a estética negra. O distanciamento do longa de Gerbase para com o noir é flagrante, em primeiro lugar, em termos fotográficos e cenográficos. Os elementos expressionistas de chiaroscuro típicos do cinema negro não marcam presença no filme, mesmo nas poucas situações narrativas propícias. E os ícones noir como espelhos, janelas, escadas, ruas desertas, são praticamente ignorados.

Mas é a própria construção dos personagens - elemento responsável pelo vínculo temático ao film noir – que, paradoxalmente, consolida um jogo sutil de aproximação e de afastamento. Além da inversão dos pólos psíquicos legitimados pelo patriarcado, antes mencionada, Tolerância ainda reproduz do cinema negro uma de suas configurações narrativas típicas, a da vitimização de personagens masculinas fracas pela femme fatale. Assim, Júlio é incriminado por um assassinato que não cometeu, e Teodoro levado ingenuamente ao encontro da morte. Ao mesmo tempo, porém, esta opção pelo personagem do trouxa enganado – uma das três figuras masculinas básicas do noir, junto com o detetive durão e o criminoso cruel – é efetivada no terreno do exagero. Há uma excessiva naturalização do enfraquecimento da masculinidade, ao contrário do que ocorre na estética negra, onde este é, acima de tudo, aviltante, sinalizador de um desvio.

Com as figuras femininas se verifica uma dinâmica correspondente. Mesmo compondo uma ameaça permanente à identidade masculina, elas permanecem distantes da spider woman arquetípica, que usa a sexualidade de modo frio e calculista para a obtenção de fins escusos. A atração de Anamaria se justifica em si mesma, as decisões de Márcia a configuram como femme fatale redimida, e a atitude de Guida nem sequer lembra a das adolescentes ninfomaníacas do noir.

No fim das contas, o que resume o distanciamento de Tolerância para com o film noir é um sutil processo de parodização da masculinidade e da feminilidade negras. O excessivo enfraquecimento da masculinidade é mobilizado, por exemplo, para a obtenção de efeitos cômicos, e a caracterização da mulher fatal apela ao clichê: as estatuetas de gata no cio no apartamento de Anamaria, o preparo de sua vitamina de morangos, etc. Esta parodização tanto da ameaça (a figura da mulher fatal) como de seus efeitos (a resignação ao enfraquecimento da masculinidade) tem como interessante resultado final a mitigação dos sentidos originais do embate entre os sexos veiculado pelo cinema negro.

Nesta mitigação, Tolerância produz um redimensionamento do assédio noir à masculinidade, em sintonia, provavelmente, com a reconfiguração das posições relativas de cada um dos sexos ao longo de cinco décadas de história. É certo que a mulher atinge, ao longo deste período, sua efetiva emancipação, concretizando muitos dos temores masculinos do pós-guerra. Mas também o homem tem a possibilidade de empreender sua reestruturação identitária. Por um lado, portanto, Márcia, Anamaria e Guida não mais metaforizam uma ameaça, elas a consumam. Mas as figuras de Júlio e Teodoro também já não refletem o antigo desequilíbrio e ansiedade: eles são os homens agora transformados, a quem se impôs a reelaboração. A resignação frente a uma masculinidade enfraquecida não vem, pois, configurar um desequilíbrio e patologização fundamentais, mas tão somente residuais.

A cuidada problematização do tema do sitiamento da masculinidade elaborada por Tolerância requer, sem dúvida, um maior aprofundamento analítico. O que não pode passar despercebido, no entanto, é o fato de ser gaúcho o único filme da produção nacional recente a empreender uma tal tarefa de reflexão. Isso adquire ganha uma ainda maior dimensão quando pensado no horizonte da cisão local entre o urbano e o rural, que se reproduz com determinação na própria cinematografia do estado. Mais importante que tudo, porém, é constatar que a hombridade gaúcha, no frigir dos (seus) ovos, serve de modelo até mesmo na representação de seu próprio assédio.

Fernando Mascarello
Texto originalmente publicado no jornal Zero Hora e na revista Sinopse, número 8.