Os Trapalhões na Serra
Pelada, de J. B. Tanko

Brasil, 1982
Serra
Pelada representa um desafio especialmente interessante ao crítico,
porque parte de tantas premissas e possibilidades diferentes que é
difícil saber exatamente qual delas é a idéia predominante
por trás do filme, aquela sobre a qual devemos nos debruçar
antes de todas.
De início, parece que
teremos um filme que tenta partir do Brasil existente, do panorama social,
para fazer com ele uma comédia de tons mais líricos (no
sempre inocente humor burlesco e físico dos Trapalhões,
ou mesmo nas "one-liners" que Didi não cansa de criar
- e que são filhas inegáveis, ainda que em outro registro,
daquelas que Groucho Marx mandava nos seus filmes). Impressiona nesse
início a captação quase documental do ambiente opressivo
de Serra Pelada, com seu formigueiro humano (e, na entrevista existente
no DVD, Renato Aragão revela que foram imagens como aquelas que
fizeram com que eles tivessem a idéia de realizar o filme). Os
Trapalhões aparecem, então, "integrados" nesse
ambiente, em belas tomadas em zoom, subindo e descendo as precárias
escadas de madeira.
No entanto, o ambiente é
logo abandonado em prol de uma narrativa mais aventuresca que antagoniza
vilões que desejam se apossar e criar um porto para exportar o
ouro brasileiro, e um mocinho igualmente abastado (interessantemente interpretado
por Gracindo Junior, que nunca chega a parecer adequado) que quer promover
a justiça social em suas terras. Claramente, o paradigma visual
usado é o do western, o que não deixa de ser peculiar, resultando
em figurinos especialmente ridículos no caso do mocinho interpretado
por Gracindo - por outro lado permite uma cena genial de "duelo ao
sol" entre Didi e um tanque de guerra. Nesta trama, como de costume,
os Trapalhões entram como os "intermediários"
do mocinho, quase os "sidekicks", que enfrentam um exército
de capangas no melhor estilo dos Keystone Cops. Esta
trama dá vazão ao método quase cartunesco de lidar
com sequências de ação, onde a lógica é
a da implausibilidade sempre, e onde armas de fogo abundam mas nunca causam
ferimentos.
Como se não bastassem
as personas pré-marcadas dos próprios Trapalhões,
eles se apropriam de algumas outras caras muito conhecidas em seus filmes,
como Wilson Grey, Eduardo Conde, mas também renovam algumas de
suas peças, com a entrada por exemplo de Louise Cardoso e Ana Maria
Magalhães no rol das "mocinhas" (e é interessante
que Didi não chega a ter um envolvimento, nem mesmo platônico,
com nenhuma delas). Nesse sentido, os filmes do grupo pode-se dizer que
se aproximam bastante da série de 007: renovando sempre suas "Didi
girls", colocando alguns vilões novos, mas sempre entrando
também com caras conhecidas, tanto entre inimigos quanto entre
aliados. E as tramas mesmo se assemelham à lógica de James
Bond: ninguém nunca entende muito bem qual o plano dos vilões
ou a lógica da vitória dos mocinhos, mas o que importa é
que está bem claro quais são uns e outros. Enquanto no 007
a idéia é nos impressionar com a eficiência, o charme
e a tecnologia usada pelo mocinho, aqui inverte-se: o divertido é
ver o caos, o improviso e a inadequação dos heróis,
ainda assim sempre vitoriosos. Embora não haja uma paródia
específica de James Bond nos Trapalhões, essa comparação
parece muito rica porque mostra uma apropriação autenticamente
brasileira de uma forma de narrar, e acima de tudo, de interessar o público
ao longo de anos numa mesma série de aventuras que, como o ensinamento
de O Leopardo, muda para permanecer a mesma.
Mas o fato é que, depois
da saída do ambiente de Serra Pelada, o filme parece por demais
vítima da mesma fórmula vitoriosa, executada com uma certa
preguiça, tanto narrativa quanto cômica. A trama se desenvolve
aos borbotões, e as piadas entram quase que mecanicamente. Talvez
resultado de um certo cansaço do próprio diretor, afinal
J. B. Tanko assina aqui seu décimo filme com o grupo - o pé
nas costas com que domina o formato deles é tanto confortável
quanto pode resultar nesta tal preguiça. (Diga-se, aliás,
que Tanko precisa ser reconsiderado pois é, certamente, um dos
cineastas mais prolíficos do Brasil tendo realizado, ao longo de
quase 40 anos, 37 longa-metragens, dos quais apenas 11 com os Trapalhões,
que afinal foi o trabalho que mais o fez conhecido)
Além dessa preguiça,
deve-se observar por fim um paradoxo bastante complicado da realização
do filme. Ao mesmo tempo em que deseja denunciar a situação
dos garimpeiros, e sua exploração pelos mais ricos (numa
cena uma personagem grita por "Justiça social! Queremos a
nossa terra!"), o filme (possivelmente até por motivos práticos)
exime o Governo da sua parte no latifúndio. Logo no primeiro plano,
aparece a legenda da tela: "Serra Pelada antes da intervenção
federal". Se isso podia ser visto até mesmo como uma senhora
ironia, que até possui efeito corrosivo, nada justifica da mesma
forma que a grande vitória do filme seja conseguida pelo exército,
em cenas de "movimentação de batalha" filmadas
com um certo fetiche belicista desinteressante ao trabalho do grupo. Eram
tempos difíceis ainda, sem dúvida, mas será que essa
inserção era de fato necessária? Certamente diminui
o impacto final que o filme podia ter, e se não tem é em
parte por sua realização burocrática, em parte por
essa resolução complicada. Ficam momentos de maior interesse
(especialmente o início), e as observações mais gerais
do trabalho do grupo, mas este em si não é um exemplar especialmente
inspirador, ainda que bem melhor do que tudo aquilo que viria no fim dos
anos 80 e anos 90.
Eduardo
Valente
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