O Pagamento Final, de Brian De Palma
Carlito's Way, 1993
O Pagamento Final de Brian De Palma
Uma linha. Uma linha reta, que precisa ser
percorrida até o fim. Simetrias, geometrias, contrastes de espaços,
construções e paisagens que o tempo inteiro nos lembram
o caminho a ser traçado. O caminho de Carlito é o nosso,
mas sua maneira é a de Eddie Taylor, a de Michel Poiccard, a do
soldado Eriksson, a de Butch Haynes e também Tom Garrett, Ethan
Hunt, John 'Scottie' Ferguson, Gregory Arkadin e William Munny. Brian
De Palma, o jovem que queria ser Jean-Luc Godard, transforma-se em um
dos principais realizadores do cinema de gênero norte-americano
com este O Pagamento Final. Se Um Tiro na Noite, Scarface
e Os Intocáveis já prenunciavam uma maestria do diretor
nas maneiras em que trabalhava o filme policial, o filme de gangster
e o thriller de suspense, em O Pagamento Final temos muito
mais que a simples conjugação de gêneros, muito mais
que uma exibição de maestria estéril (algo que muitos
gostam de pensar sobre o cinema de De Palma). O Pagamento Final
é um momento de maturidade na obra do seu diretor, um filme onde
torna-se necessário rever o que já se fez e partindo disso
preparar, gradualmente e com muito trabalho, novos caminhos, novas possibilidades
para seu cinema. A sua linha, o seu caminho.
O enredo de O Pagamento Final, como
sempre com De Palma, é um já bastante difundido e conhecido
pelo público médio: após sair da prisão, ex-gangster
quer se manter "limpo" para fugir com sua amada para as Bahamas. Até
aqui nada de mais, ou melhor, apenas mais do mesmo. O que De Palma pode
tirar desta historieta, de um tema tão completamente batido? Um
mundo. E não o mundo que se imagina no cinema de De Palma, um mundo
que só pode ser construído com movimentos ensandecidos da
steadycam e um trabalho fabuloso com a câmera: é antes
de tudo o mundo que existe entre um plano e seu contraplano, o mundo que
existe quando Carlito espia do alto de um edifício, com apenas
uma tampa de lixo protegendo sua cabeça da chuva, Gail dançando
balé durante uma aula que ocorre em outro edifício; é
o mundo que existe na cena em que Carlito visita Gail de madrugada e os
dois ficam conversando, trocando sorrisos e seduções pela
brechinha aberta de uma porta, brechinha que permite De Palma filmar apenas
em extremos close-ups e extremos close-ups que permitem
De Palma filmar esta cena íntima com um máximo de encantamento
e beleza; é o mundo que existe no momento em que Carlito, hesitante
em perseguir ou não Gail no meio de uma chuva torrencial, se joga
numa porta e respira nervosamente por alguns instantes para instantes
depois sair correndo atrás de sua amada no meio da chuva; e é
o mundo que existe quando Carlito, após aceitar o favor pedido
pelo seu amigo advogado Dave Kleinfeld, é abraçado por Dave
numa das mais tocantes exibições de humanidade em todo o
cinema de De Palma. O interesse de De Palma por essas pessoas, por aquilo
que elas fazem e aquilo que elas são (nesta ordem), alcança
neste filme uma intensidade poucas vezes vista no seu cinema.
Mas Brian De Palma, bem sabemos, não
costuma fazer filmes pequenos sobre coisas pequenas. Ele se interessa
por elas, gosta de observá-las até, mas é necessário
manter a ilusão, o ilusório. O cinema é o espetáculo,
e seu Carlito Brigante é um personagem espetacular. Portanto, são
nos momentos onde o espetáculo alcança seu apogeu que De
Palma melhor nos deixa conhecer esse Carlito Brigante (não à
toa, este nos é introduzido como se estivesse recebendo um Oscar).
Os caminhos que Carlito escolhe são sempre aqueles que levam aos
momentos de cinema mais prodigiosos: a seqüência onde acompanha
seu primo para uma "entrega", por exemplo, não é apenas
um primor de realização e encenação, mas é
também o primeiro momento onde fica claro que o sonho de Carlito
de se manter limpo é uma impossibilidade, algo que seu passado,
sua história, não permitirá. E depois temos o favor
prestado a Dave (a quem havia dito em outro momento, "Um favor lhe matará
mais rápido do que uma bala"), as atribulações com
o jovem traficante Benny Blanco ("from the Bronx") e o tour
de force final, uma perseguição em estações
de metrôs que talvez seja a melhor coisa que já vimos em
um filme de Brian De Palma em termos de concepção e realização
cinematográfica.
Mas entre tudo isso, o que temos? A vida,
o cinema e o mundo. Os caminhos que as pessoas escolhem para si mesmas
e os caminhos que elas descrevem. Carlito, Gale e Dave. Minnelli (o senso
musical da câmera e a coreografia na perseguição de
Carlito pelos mafiosos no metrô, as danças de Gail, a leveza
na câmera e o El Paraiso), Welles (a estrutura que De Palma
escolhe para o filme, semelhante à de Grilhões do Passado)
e Eastwood (lançado seis meses depois, seu Um Mundo Perfeito
guarda semelhanças bastante reveladoras com o filme de De Palma).
Um inventário do cinema de gênero norte-americano? Também,
e além. Existem instantes de intimidade que De Palma insiste em
capturar – como a conversa entre Carlito e Gail após ele descobrir
que ela trabalha num strip club (e, via de regra, todos os momentos
que ambos partilham durante o filme), as primeiras cenas de Carlito e
Dave, dançantes e falantes após o sucesso no tribunal, ou
todos as cenas em que Carlito precisa entrar em choque com o seu passado
e lidar com o fato de que um passado de crimes irá uma hora alcançá-lo
– que parecem simplesmente não fazer parte do registro a que De
Palma se propõe, ou aquilo que costuma se imaginar que seria um
filme destes. Não um contraste, muito menos algo de errado: é
como se De Palma e seu roteirista David Koepp nos oferecessem o outro
lado da moeda, mostrando que um gangster do cinema norte-americano
possui uma namorada de quem gosta, amigos, metas que não o crime
e assassinatos; enfim, que um personagem como este (e todos aqueles que
estão à sua volta) possui uma vida como qualquer
outra pessoa.
A memória pede pelo John Cassavetes
de The Killing of a Chinese Bookie, mas seria um exagero, mesmo
que um plenamente aceitável (afinal, não foi Cassavetes
quem De Palma explodiu na conclusão de A Fúria?).
Não, o paralelo mais adequado é mesmo o de Samuel Fuller,
pela maneira que sempre adorou as figuras marginais e os fracassados e
por sua adoração pelos tipos cinematográficos: seu
universo é repleto de pequenos ladrões, jornalistas moribundos,
soldados ignorantes, soldados letrados, mulheres da vida, mendigos e todo
o tipo de minoria. Fuller nos mostra toda essa variedade de tipos como
invariáveis grosseiros e boçais, mas é justamente
na necessidade de se manterem vivos a qualquer custo e buscar nas limitações
de suas vidas aquilo que de melhor podem obter que reside o encanto de
Fuller por eles. De Palma também trabalha com tipos aqui, mas um
pouco mais sofisticados. Carlito Brigante é um ex-gangster
mas é também dono de um clube bastante badalado, enquanto
Dave Kleinfeld é um jovem advogado muito bem situado. Talvez a
personagem realmente mais próxima de um personagem de Fuller seja
a namorada de Carlito, Gail, mas ainda assim durante o filme ela revela
uma inocência que poucos personagens de Fuller apresentam.
E se já situamos Fuller, Cassavetes,
Eastwood, Minnelli e Welles como possíveis referências, temos
outras duas que também saltam aos olhos: Alfred Hitchcock (como
não podia deixar de ser) e principalmente Fritz Lang. De Hitchcock
obviamente os mesmos interesses de sempre: o jogo de simulações
e manipulações do olhar (no jogo de sinuca ao início
do filme ou na saída de Carlito do El Paraiso que antecede
a perseguição na estação de metrô) e
Um Corpo Que Cai (as seqüências em que um Carlito meio
perdido persegue Gail, referência clara ao clássico de Hitchcock
e uma das imagens prediletas de De Palma). A parte de Lang, porém,
é a que mais se faz notar durante o filme: como nos principais
filmes do cineasta alemão, temos em O Pagamento Final um
personagem que, com todas as suas forças, entrará em confronto
com aquele que se delineia como seu destino certo. O que Carlito talvez
possui de mais nobre é justamente essa luta, essa capacidade de
tornar possível qualquer coisa que lhe aproxime de seu sonho, Gail
e as Bahamas. Nada do pessimismo da maioria dos heróis depalmianos:
Carlito é alguém que sempre olha o que está por vir
e tenta tirar o melhor disto. Na sua luta contra o destino, Carlito mostra
esse humanismo tão maravilhoso que existe em De Palma, um humanismo
absurdo (e fantástico) por ser a morte inevitável para Carlito
(o filme já começa com ele, na Grand Central Station,
deitado numa maca, acompanhado por Gail). Talvez por isso o jogo de simetrias,
seja no El Paraiso (a trilha de metrô situada ao lado do
clube, o caminho para o "paraíso"), na mansão de Dave (o
pequeno cais que leva ao barco onde os destinos de Carlito e Dave serão
definidos) ou no seu apartamento (a ponte de Manhattan), na escada rolante
do Grand Central Station, onde De Palma cria uma das mais brilhantes
seqüências da história do cinema, ou mesmo quando já
na garagem dos metrôs Carlito corre em direção a sua
Gail, a única corrida realizada por ele no filme aliás.
A irrepreensibilidade patente nessas tão simples linhas retas,
é o tema de O Pagamento Final como o é de toda a
obra de Lang.
"Mas e quanto à crença na imagem
de Blow Out, de Dublê de Corpo ou de Olhos de Serpente?
Onde ela está em O Pagamento Final?", pergunta o leitor.
Bom, ela está na necessidade que De Palma tem de transformar o
tema do filme (o caminho de Carlito) em imagens das mais marcantes o tempo
todo, sendo que aqui essa crença adquire um contorno que poucas
vezes – em Um Tiro na Noite e Trágica Obsessão
talvez, como também em Pecados de Guerra e Olhos de Serpente
– o diretor se preocupou em apresentar com tamanho impacto: um catolicismo
resoluto, que se apresenta na própria presença de Carlito,
e que se manifesta principalmente ao final do filme, nos últimos
instantes mesmo, quando Carlito é levado baleado numa maca para
fora da Grand Central Station. Policiais o cercam, médicos
o atendem, Gail o acompanha, trabalhadores e outras pessoas observam o
seu caminho. Um outdoor surge, na parede da estação.
Nele, em letras brancas, lemos a frase "Escape to Paradise", com
ao fundo a imagem de uma praia. Preenchem o quadro o mar, a folha de uma
palmeira, o sol intenso e o perfil de uma mulher que dança ao som
executado por um grupinho de bahamenses. Campo, contracampo: no plano
fixo, o zoom nos aproxima ao olhar de Carlito; no corte, ao outdoor.
A lógica da cena é a lógica da criação
cinematográfica: a imagem imóvel no outdoor só
poderá ganhar vida a partir da morte de Carlito. No vivo olhar
de Carlito, apenas o desejo de dar movimento a esse cenário. Pouco
a pouco, quadro a quadro, as imagens vão ganhando movimento: o
sol começa a se pôr, as folhas da palmeira ganham um balanço
e sua mulher dança ao som do grupinho. É Gail quem está
no outdoor, já depois da viagem para as Bahamas. Carlito
esboça um sorriso, fala "Tired, baby. Tired", e fecha os
olhos. Neste momento, a imagem que antes estava limitada ao outdoor
já ocupa todo o quadro do Panavision de De Palma, contendo aquilo
que antes víamos apenas no olhar de Carlito: o movimento. A ascese
de Carlito só pode ocorrer através do cinema – em outras
palavras, com o cinema e como cinema. É esse momento,
esse momento de celebração da vida através do ato
de morte, que encerra tudo aquilo que é a crença de Brian
De Palma na imagem, no cinema – ou melhor, uma crença de vida que
é uma crença na imagem e no cinema.
Bruno Andrade
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