Os Intocáveis, de Brian De Palma

The Untouchables, 1989


Os Intocáveis de Brian De Palma

Vendo a versão cinematográfica de Os Intocáveis se percebe com certa emoção indulgente a grande dificuldade que é transpor um seriado televisivo para a tela grande. Ainda mais quando se trata da turma de Eliott Ness, atração principal de uma série que permaneceu quase cinco anos no ar, invadindo semanalmente o aconchego dos lares. Em casos como esse, há todo um imaginário estabelecido, um código já familiar ao espectador, fetiches que ligam o universo dos personagens à rotina popular e que dificultam uma, digamos, "reinterpretação".

Nada surpreendente, portanto, que o roteirista David Mamet tenha se encarregado de matar a maioria de seus heróis ao longo do filme – o projeto de Mamet e De Palma tem a obrigação de reciclar toda essa identificação, propondo uma visão nova e particular, como se a necessidade de artista os obrigasse a transformar aquilo que é de domínio publico em espetáculo confidencial – ou, dizendo melhor, o que é quase instituição da cultura de massas em projeto autoral . Velha questão, claro, de acrescentar alguma coisa...

A grande dificuldade (ao menos a mais visível) parece estar no roteiro: Mamet tem dificuldade em condensar o universo da série em meros 115 minutos. Há um acumulo de seqüências fortes, de grande valor visual, onde De Palma pode exibir seu talento artesanal, mas que cortam o desenvolvimento correto dos personagens. Vendo e revendo o filme(nas madrugadas da Globo) percebe-se claramente como fazem falta as "transições", aqueles momentos que normalmente são usados para dar um certo rigor narrativo e consolidar a personalidade dos protagonistas e suas funções na trama. O caso é que algumas coisas acontecem muito rápido, principalmente o laço de amizade entre Kevin Costner/Ness e Sean Connery/Jim Mallone, tão pouco gradual que, sem mesmo que a gente perceba, os dois passem de simples colegas de combate a amigos inseparáveis (o que faz com que a penúltima cena, em que Ness admira nostalgicamente a foto de Mallone, fique particularmente patética). Do ponto de vista narrativo, a dupla De Palma/Mamet não domina totalmente seu filme, contando mal essa história que, além de confusa, parece curta demais – é provável que os produtores tenham cortado uma meia-hora que faria toda a diferença, não se sabe.

Todos esses desacertos, porém, não diminuem a força desse filme "grande estúdio" que muitos julgam de encomenda (é preciso lembrar que The Intouchables interrompeu uma série de obras altamente experimentais feitas pelo diretor nos anos 80) – pelo contrário, até, já que as elipses, voluntárias ou não, ajudam a torná-lo uma obra realmente intensa onde, para o bem ou para o mal, se vai sempre direto ao assunto. E o assunto em questão é uma tradicional obsessão de De Palma: a violência. Ela está por tudo no filme, seja a violência física ou a psicológica, a concreta ou a ameaça, oprimindo a velha Chicago hostil da Lei Seca, dominada pelo contrabando e pelo tirano Al Capone. Uma cidade sem justiça, onde ninguém se sente seguro e onde nunca se sabe quando vai ser preciso encomendar seu caixão. De Palma consegue transmitir com emoção incomum o clima de instabilidade que, afinal, é o universo mesmo dos Intocáveis : a situação foi longe demais e alguém precisa acabar com isso. Mesmo sem personagens consistentes, fica claro o efeito da violência sobre todos aqueles que são suas vitimas(ou que temem sê-lo, no caso todo mundo, já que, como indica a sangrenta e cínica introdução, em que Capone "brinca" com seu taco entre sócios puxa-sacos, ninguém está a salvo) contrapondo o ideal de paz familiar e de amizade ao caos revoltante da carnificina de Chicago.

É verdade que o tom "urgente" e grave do filme, aliado a um De Niro altamente caricatural na pele de um Capone malvado ao extremo, pode realmente nos fazer crer diante de uma obra moralista e preconceituosa. Vale lembrar, no entanto, que o excesso, no que diz respeito à interpretação e até a outras questões estéticas, sempre foi uma das características mais interessantes de De Palma, o surjeu dos atores moldando sempre o aspecto cínico da sua obra. Por mais que exista uma demonização da figura de Capone (e ela existe), fica difícil ver no filme qualquer moralismo ou apologia simplista a ordem e ao Estado (a última fala de Ness é emblemática: "agora talvez eu vá tomar um drinque") . Se o seriado original dos anos 60, pela própria armadilha de seu maniqueísmo, provocou a ira da comunidade ítalo-americana, o mesmo não se aplica aqui: não é guerra do Estado Moral sobre a violência ítalo-americana (e o fato de um descendente de italianos dirigir o filme é uma particularidade interessante), mas de uma guerra da consciência humana, um pacto paralelo entre pessoas de todas as descendências (Andy Garcia/Stone, Connery/Mallone), que, para acabar com a sujeira que lhes cercam, terão que fazer uso dos mesmos métodos sujos – afinal, o próprio Estado Moral está corrompido. De Palma não é o mais sutil dos cineastas (e isso não é um defeito), sua proposta não é a do distanciamento sereno, e sim a da participação absoluta – ele nos leva na dor profunda do cotidiano insuportável, da ameaça constante, da instabilidade de uma sociedade em pleno estado insustentável de ebulição. Como sempre em sua obra a violência é inexorável e a tristeza da perda (de um próximo ou de si mesmo) assombra todos seus personagens. Assim, as mortes de cada intocável se sucedem como numa epopéia sangrenta, os corpos caindo um a um, sem que o determinado Eliott Ness possa evitar (De Palma, por sinal, retoma o mesmo principio no início de Missão Impossível, curiosamente outra adaptação de um seriado estrelado por um grupo de personagens familiares do grande público). Entre todas essas cenas, talvez a mais comovente seja a do assassinato de Oscar Wallace, o contador interpretado por Charles Martin Smith; De Palma filma com incrível precisão sua morte no elevador, usando poucos planos numa seqüência extremamente seca e direta. Só em seguida iremos descobrir junto com Ness, num momento de emoção incomparável, o corpo expirado estendido no chão, seu sangue decorando a parede com ameaças... Os Intocáveis é repleto de cenas assim, em que o grande De Palma insiste, com rara inventividade, em nos contar histórias unicamente pelo plano, pela sua crença no poder da imagem.

Pois se o fraco de Os Intocáveis é sua história, então que se diga que ao menos temos o grande prazer de vê-la contada por um diretor que acredita numa linguagem puramente visual. Usando a revolucionária steadycam, câmera que lhe permite fazer todo tipo de composição, esse homem sabe, como poucos de sua geração (e como digno herdeiro de Robert Aldrich), interpretar visualmente as situações, nos envolvendo energicamente com seu prodigioso senso dramático. É uma maravilha nos deixarmos levar pela loucura de sua audácia visual, a malícia que busca sempre o movimento mais imprevisível, o plano mais ousado... Quem não se arrepia com o contra-plongée no tribunal, onde Kevin Costner percebe a identidade do assassino quando acende o fósforo? Ou com a famosa cena do carrinho de bebê caindo da escada, mistura insana de zooms irresponsáveis e slow-motions delirantes?... Cenas como essas podem se repetir dez, cem, mil vezes, sem nunca cansar os olhos de um espectador embasbacado, um espectador a cada momento mais convicto de que é para cenas como essas que o próprio cinema foi inventado.

Bolívar Torres