Missão Impossível,
de Brian De Palma

Mission: Impossible, EUA, 1996

Tom Cruise em Missão Impossível
de Brian De Palma
A
carreira de Brian De Palma costuma ser considerada, principalmente pela
crítica norte-americana, sob o viés tão batido quanto
inesgotável (e de modo algum obsoleto) da dicotomia "independência
/ integração" ao sistema de estúdios. Em que
pese a importância fundamental deste tema na formulação
de toda abordagem crítica derivada direta ou indiretamente das
teses expressas na politique des auteurs (tendo constituído
o grande ponto de ruptura entre André Bazin e os jovens turcos
do Cahiers du Cinéma), dificilmente encontramos na literatura
norte-americana -- ao menos, fora dos círculos acadêmicos
-- uma voz que tenha sido razoavelmente bem-sucedida na tentativa de equacionar
os diversos dados que o problema apresenta.
À
parte alguns esforços dignos de nota -- a "teoria do autor"
de Andrew Sarris parece servir até hoje de baliza para a discussão
--, o que se vê (ou melhor, o que se lê) esbarra invariavelmente
na simplificação grosseira do polêmico debate que
orienta a politique, ou ainda descamba miseravelmente para o gosto
pela fofoca da falsa-crítica idiotizante de butique. Quase sempre,
a maneira de articular os dados levantados para apreciação
(custo vs. receita da produção, disputa pelo controle criativo,
etc.) constituem uma fórmula a ser aplicada a priori às
trajetórias de figuras tão díspares quanto Scorsese
e Altman, Coppola e Lucas ou Spielberg e De Palma.
O
problema maior em tentar aplicar uma tal fórmula à carreira
de Brian De Palma é levar em conta como, ao contrário de
seus colegas de geração, ele parece muito pouco preocupado
em elaborar uma estratégia coerente de integração
ao sistema. O significativo número de filmes realizados para os
grandes estúdios pode, à primeira vista, dizer o contrário;
uma observação mais atenta (centrada na apreciação
individual destes filmes) revela, porém, uma tática de infiltração,
muito em compasso com o passado de cineasta guerrilheiro e subversivo
do início de carreira. A tão almejada sintonia entre impressão
da marca autoral e responsabilidade comercial, o sétimo céu
sonhado por todos e alcançado por tão poucos de seus companheiros
de geração, não parece ser, para ele, uma ambição
legítima; na verdade, De Palma, mais que qualquer outro, parece
preocupado em redefinir esta relação em seus próprios
termos, com um cinismo de fazer inveja à sua Femme Fatale.
Dobrar
os interesses comerciais à vontade do realizador é um jogo
perigoso e muito pouco passível de redenção num campo
minado como Hollywood (que o diga Michael Cimino), mas De Palma parece
ter feito disto seu passatempo predileto, à maneira dos jogos de
tensão que ele propõe ao espectador. Para cada Os Intocáveis,
há um Síndrome de Caim e um Missão Marte;
para cada Carrie, um Fogueira das Vaidades e um Pecados
de Guerra.
Ninguém
melhor que o próprio Brian De Palma, portanto, para expor a seu
modo as regras do jogo, com o fino senso de ironia que lhe é peculiar.
Missão Impossível, seu maior sucesso de público,
é um filme escandalosamente subversivo, que tematiza sem qualquer
pudor sua relação com a indústria.
Uma
imagem singular, das mais poderosas que o cinema de De Palma já
nos presentou, vem à mente de imediato: Tom Cruise suspenso por
cabos flutuando, envolvido numa difícil luta para manter o equilíbrio.
A genial arquitetura da sequência, manejada com perfeição
para articular a construção de seus tempos e espaço
num delírio de pura abstração formal, revela com
um golpe de mestre seu subtexto.
Procurar
os demais indícios, mais ou menos aparentes, deste subtexto é
uma tarefa prazerosa, de fruição estritamente em acordo
com a natureza dos exercícios intelectuais que De Palma propicia
em todos os seus filmes. Nestes exercícios, sempre coube à
trama um papel secundário, até mesmo desimportante; e Missão
Impossível está muito longe de ser a exceção:
ela é confusa, inconsistente, absurda -- um acessório quase
dispensável.
Aqui,
a apropriação do modelo hitchcockiano foge do habitual;
praticamente inexiste o retorno obsessivo a Psicose, Vertigo
ou Janela Indiscreta. É o Hitchcock do thriller, da investigação
formal (Os 39 Degraus) e plástica (Intriga Internacional),
estrutural enfim, da paranóia, que se apresenta. A relação
não é, porém, menos complexa: se em Hitch, a paranóia
é uma função direta da culpabilidade e sua expressão
máxima é o relato em torno da figura do "homem errado",
De Palma explora a questão da identidade como um infindável
jogo de espelhos e máscaras, deliberadamente pensado para desorientar.
Junte-se
à máscara o mural (Femme Fatale) e o grito (Blow
Out) e o que temos senão as três metáforas mais
perspicazes do cinema por/de Brian De Palma? Missão Impossível
se revela, por detrás da aparência de um trabalho de rotina
ou reconciliação comercial, uma das expressões máximas
do cinema de De Palma: ele nos faz lembrar que o rebelde é antes
de tudo um ilusionista.
Fernando
Verissimo
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