Jorge Furtado e o cinema construtivo



Ilha das Flores, de Jorge Furtado


Em sua monumental e já célebre dissertação sobre o cinema documentário brasileiro1, Sílvio Da-rin analisa os documentários de Jorge Furtado no mesmo capítulo dedicado a Arthur Omar, e os dois sob a égide do cinema reflexivo. Cinema reflexivo seria aquela espécie de documentário que não considera mais a câmera como espelho privilegiado da realidade, mas como objeto problemático, frágil, que merece que se mergulhe por um tempo no problema da representação documentária. Exemplo típico é Congo, de Arthur Omar que, ao invés de ser o documentário etnográfico que todo mundo espera de um filme com esse nome, não nos dá nenhuma imagem desse ritual folclórico, mas antes enche a tela de questionamentos a respeito da representabilidade de um movimento vivo para a tela. Se inserem, então, na categoria de filmes reflexivos aquelas obras que problematizam pela própria linguagem do documentário as "verdades" e os "documentos" que elas estão trazendo à luz (do público, da tela).

Ora, compreende-se que Jorge Furtado, elogiado e premiadíssimo a partir de Ilha das Flores, um filme que não foi filmado na verdadeira Ilha das Flores, seja colocado ao lado de Arthur Omar nessa luta pela desmistificação da idéia de documentário como verdade e no uso maroto dos artifícios de linguagem do documentário para produzir signos ficcionais, clichês que nos fazem suspeitar da plácida idéia de documentário como voz da verdade e do civismo. Sem dúvida seu cinema não se deixa fascinar pela imagem documental, sem dúvida seu cinema se aproveita da linguagem documental para fazer duvidar dela, mas não seria um pouco cômodo demais situar seus filmes na esfera do "documentário reflexivo"?

Vejamos. Quando se fala em filme reflexivo, a primeira coisa que vem à cabeça são os fins do documentário: um filme reflexivo não teria, assim, por finalidade mais do que colocar em questão os procedimentos, práticas e códigos de linguagem do chamado cinema documentário, através de estratégias como produção de discursos off falsos (como em Ilha das Flores), mise-en-scène fictícia imitando depoimentos de documentários, intervenção nos códigos da "filmabilidade" do objeto (como em Essa Não É a Sua Vida, filme sobre uma pessoa "comum"). Sem dúvida Jorge Furtado parte de um ponto de vista semelhante aos "anti-documentários" de Arthur Omar – o documentário não é um espelho da realidade, é um determinado conjunto de códigos utilizados que podem ser manipulados à exaustão para dar impressão de verdade –, mas será que os objetivos desses cineastas com seus respectivos filmes seriam parecidos? Nada leva muito a crer.

Enquanto os filmes de Arthur Omar como Congo, Tesouro da Juventude e Música Barroca Mineira questionam diretamente e com essa finalidade conceitos-chave do documentário, como verdade, memória, história, objeto de estudo, o cinema de Jorge Furtado sem dúvida aproveita-se desse recorte mas para construir outro tipo de filme, que desenvolve outro tipo de relação com o espectador. Acima de tudo, nos curtas documentais de Jorge Furtado não existe a noção de que o documentário, reflexivo ou não, se fecha sobre si e questiona sua própria feitura. Ao contrário do projeto de negatividade de princípio do cinema reflexivo, filmes como Ilha das Flores ou A Matadeira não são antes de tudo filmes sobre documentários, mas filmes que retrabalham certos clichês em forma paródica, auto-consciente sim, mas jamais tendo na explicitação dos dispositivos do cinema documentário seu fim.

Podemos ver isso a propósito de A Matadeira, último curta documental de Jorge Furtado, e provavelmente o filme que mais se aproximaria a um questionamento dos procedimentos do filme documentário. O filme é composto de diversos depoimentos sobre o acontecimento Canudos, incluindo o do historiador, o da população carente, as testeumnhas oculares... Em paralelo, uma reconstituição em estúdio, francamente hiper-realista, anti-naturalista, da "matadeira", canhão que destruirá com o acampamento-cidade de Canudos. Vemos aí o filme mais se fechando na possibilidade de contar uma história (em sua "contabilidade"?) ou mais se abrindo para o objeto a ser deslindado? A briga é boa: por mais que os depoimentos – e em especial o do historiador/sujeito-suiposto-saber – nos remetam para a banalidade que é qualquer discurso diante de um acontecimento decisivo (no caso, a morte de centenas de camponeses em Canudos), há de outra parte o texto literário, em off, de Kurt Vonnegut Jr. (influência, aliás, muito maior em Jorge Furtado do que qualquer cineasta documentarista, brasileiro ou não) que, mesmo não sendo sobre o acontecimento narrado – aí a parte de auto-consciência sempre cara a Furtado –, o espelha e revela seus reflexos. Aí reside um ponto decisivo: o cinema reflexivo, pelo próprio nome que tem, deve basear na disjunção o seu discurso, enquanto os filmes de Jorge Furtado, mesmo que partam de princípios semelhantes ao do cinema reflexivo, constitui por si só um jogo completamente diferente, uma estética e um jogo retórico que também inclui sínteses possíveis (a veemência de pobres comerem comida que é recusada aos porcos, mesmo que não seja na Ilha das Flores; o massacre de Canudos, mesmo que seja impossível convertê-lo num discurso).

Por isso, provisoriamente, pede-se aos filmes documentais de Jorge Furtado um outro estatuto, o de cineasta pós-reflexivo. Ou talvez, ainda melhor, uma vez que realiza um cinema auto-consciente da representação e dos códigos, mas ainda assim busca pontos fixos para poder realizar sínteses e novos pontos de contato com o mundo, melhor seria dizer que ele realiza (e isso não ficaria restrito a ele, podendo igualmente o título ser atribuído a Eduardo Coutinho, que também não encara a câmera como um espelho mas nem por isso faz filmes sobre isso) documentários construtivos, à maneira do movimento de pintura que levou esse nome. Ciente de que a representação pode ser uma cilada, ele ao mesmo tempo faz questão em problematizá-la e retrabalha os conceitos de seu objeto, extraindo sínteses, ou seja, dados positivos. Duplo trabalho que naturalmente tem semelhanças com a obra ficcional de Furtado (o roteiro sempre auto-consciente e trabalhado referencialmente, à maneira, digamos, dos irmãos Coen), mas que no documentário aparece como um conjunto de filmes únicos em suas propostas no território brasileiro. E, não custa dizer, absolutamente estimulantes.

Ruy Gardnier


1. Sílvio Da-rin,
O Espelho Partido – Tradição e transformação do documentário cinematográfico
. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro, ECO/UFRJ, 1995.