Entrevista com Jorge Furtado


Jorge Furtado sempre teve algo a dizer. Se existe uma força constante no seu trabalho, seja em curtas ou em longas, na TV ou no cinema, sempre foi a capacidade de criar alguns dos melhores diálogos do audiovisual nacional. Pois bem, conversamos com ele sobre sua carreira, seus primeiros dois longas lançados em cinema e sobre os 15 anos da Casa de Cinema de Porto Alegre. Convém notar que há pelo menos três ótimas entrevistas recentes com Furtado, duas acessíveis na web (no site da Casa e na Revista de Cinema), e uma na edição inaugural da revista Teorema, de Porto Alegre. Procuramos partir dessas entrevistas, repetindo assim o mínimo possível de perguntas ao realizador.

Contracampo: Seria legal você dar uma breve pincelada de como esse grupo da Casa de Cinema se forma, e pessoalmente da importância que teve, por exemplo, o Deu Pra Ti na tua decisão de fazer cinema.

Jorge Furtado: Acho que pensei em fazer cinema pela primeira vez, mais ou menos seriamente quando assisti Deu Pra Ti Anos Setenta (longa metragem em super-8, dirigido por Nelson Nadotti e Giba Assis Brasil). O filme é um retrato de uma geração (quase a minha) e falava de conflitos que eu conhecia, foi filmado nos lugares que eu conhecia e freqüentava, era falado com um vocabulário e um sotaque que era o meu. Fazer cinema, pela primeira vez, parecia possível. Eu era estudante de medicina, acabei largando o curso para estudar artes plásticas e jornalismo. Comecei a trabalhar na TV Educativa como assistente de produção, mas fazia de tudo: reportagem, roteiros, apresentação, edição, câmera. A TVE, em 1981, era a última televisão em preto-e-branco. Meu primeiro curta (dirigido em parceria com o José Pedro Goulart) é de 1984. A Casa de Cinema de Porto Alegre surgiu em 1988, eu já tinha dirigido dois curtas (Temporal e O Dia em que Dorival encarou a guarda). A Casa surgiu como uma reunião de quatro empresas produtoras que, na prática, já trabalhavam juntas. O primeiro filme produzido na nova sede foi Barbosa, ainda assinado pela Luz Produções. O primeiro filme assinado pela Casa de Cinema foi o Ilha das Flores, em 1989.

Cc: Hoje a Casa tem 15 anos de atividades e pode-se dizer que ela mudou a cara do que seja o "cinema gaúcho", e continua sendo a principal expressão quando se pensa neste. Como você traça ou vê esse caminho: de um projeto de cooperativa que se dedicaria ao cinema quando este era pouco mais de um sonho ao momento que vivem hoje, consolidados como principal nome gaúcho na área?

JF: A Casa de Cinema deixou de ser uma cooperativa de produtoras e se tornou uma única empresa, com seis sócios. Acho que o espírito inicial foi preservado: queremos fazer cinema e viver disso. Mantemos um site (www.casacinepoa.com.br) com informações sobre nossos filmes e textos sobre cinema, outro com textos sobre política, cultura e mídia (www.nao-til.com.br), e participamos, em grupo ou individualmente, de várias atividades ligadas à produção cultural. Também fazemos televisão, mas não publicidade (exceção para as campanhas eleitorais do Partido dos Trabalhadores). Em nenhum de nossos filmes existe o crédito "um filme de...", com o nome do diretor. Cinema é um trabalho de equipe.

Cc: Ampliando essa idéia: como você vê pessoalmente a passagem de um jovem que começa sua entrega ao cinema em 1984, e que hoje é uma referência local e nacional em termos de cinema. Como é criar seu próprio caminho como você (e a Casa fez), e hoje ser considerado o "establishment" do cinema gaúcho? (o que sempre significa inclusive ser igualmente admirado e fruto de oposição por muitos jovens diretores que buscam seu espaço e vêem a Casa como o "estabelecido"?)

JF: Gosto de contar histórias, escrevendo ou filmando, e vivo disso. Não pretendo ser referência para ninguém. O volume e a continuidade de produção faz da Casa de Cinema a maior produtora do cinema gaúcho, mas somos uma empresa de porte médio. É possível que as novas gerações nos vejam como o "establishment". Possível, mas não muito realista. O "establishment" é Hollywood e a telenovela, são os bancos e a indústria bélica americana. Fazemos cinema no Brasil, o que nos torna passageiros da mesma e precária canoa. Os "muitos jovens diretores" não são tantos e alguns nem são tão jovens. Sugiro que façam bons filmes, é isso que conta. Alguns já fazem.

Cc: Numa entrevista você falou que só te interessava falar daquilo que você conhecia muito bem, e que acha que todo filme deve ter algum grau de autobiografia. No caso, você falava de sua relação com Porto Alegre e com o RS. Como você vê essa questão da regionalidade como necessidade de expressão, entendido o regional não no sentido do típico-exótico, mas da relação de um artista com seu ambiente?

JF: Acredito que toda arte (e é bom não esquecer que o cinema, mesmo quando é arte, nunca é só arte) é resultado de uma visão particular da realidade transformada em obra. A realidade social onde a obra é gerada sempre a influencia. Estas influências podem ser tão específicas (sotaque, paisagens, padrões estéticos e narrativos) que uma obra pode resultar não apenas da cultura de um país, estado ou cidade, mas até mesmo da cultura de um bairro. Hollywood, por exemplo, não chega nem mesmo a ser uma cidade, é um distrito de Los Angeles. Toda obra é regional, só que algumas regiões dominam e se autoproclamam "centro". Acho engraçado quando chamam Rio e São Paulo de "centro do país". O centro do Brasil é Nova Xavantina, estado do Mato Grosso, coordenadas 14º 41’ 09" latitude sul, 52º 20’ 09" longitude oeste. Ver http://www.produsites.com.br/novaxavantina/localizacao.htm

Cc: A Casa de Cinema (como o próprio nome indica) começou com a idéia de só fazer "cinema". Essa posição se referia de fato à publicidade, em não deixar o projeto virar uma agência de publicidade. Como você vê a entrada da produção para a TV (Globo e RBS) e dos programas políticos dentro do projeto original da Casa?

JF: A idéia sempre foi, e continua sendo, fazer cinema. E nunca foi fazer cinema. Excluímos a publicidade porque, pelo volume de trabalho e dinheiro envolvido, a ela acaba tomando quase todo o tempo de uma produtora, absorvendo todas as atenções. E não queríamos competir diretamente com nossos ex-sócios, que deixaram a Casa de Cinema para abrir sua próprias produtoras de publicidade. As produções para televisão são uma batalha antiga, sempre lutamos para que as tevês se associassem às produtoras independentes. Os trabalhos para a Globo começaram em 1990, no Programa Legal e no Dóris para Maiores. Já produzimos vários programas e uma minissérie para a Globo. A parceria com a RBS é mais recente, começou com o Curta na TV , em 1997. É impossível pensar em viver só de cinema no Brasil. E ignorar os mais de cem milhões de espectadores da televisão é, além de burrice, um atestado de desprezo ao povo brasileiro. A imensa maioria da população brasileira não tem dinheiro para ir ao cinema. E não vai ao cinema. Já os programas políticos são outra coisa, uma espécie de militância audiovisual (remunerada, é claro). Os programas eleitorais são o único espaço na televisão que não é controlado pelos proprietários das redes. E, eu acho que isso é importante, nós só fazemos programas para o PT, em quem votamos. (Em 14 anos de administração petista em Porto Alegre a mortalidade infantil caiu 39%. Isso o cinema não faz.)

Cc: Ainda sobre a TV: você certa vez falou da diferença entre falar para 200 mil pessoas muito atentas e 40 milhões distraídos. Como você vê essa diferença influindo primeiro no seu processo criativo, e depois no "feedback" que você recebe de cada trabalho?

JF: É preciso considerar que entre os 40 milhões de distraídos da televisão talvez haja mais de 200 mil atentos. E que 200 mil é um público raro para o cinema brasileiro. Acho que o cinema, por ser um dos nossos últimos rituais (sair de casa, comprar ingressos e balas, suportar os trailers), é uma forma de expressão mais "nobre" que a televisão. Procuro, ao escrever ou dirigir para a televisão, considerar um espectador ideal, atento desde o começo até o fim do programa. Não é uma prática que garanta grandes audiências mas faz parte de uma estratégia deliberada para criar um espectador melhor. E procuro, quando escrevo e dirijo para o cinema, levar em conta que o espectador (que raramente sai no meio do filme) pagou ingresso e merece ter algo em troca. Uma história serve para divertir e ensinar, o espectador deve aprender algo sobre o mundo, sobre si mesmo ou ainda sobre a linguagem. Quanto ao retorno, minha experiência com cinema e televisão é bem distinta. Cada filme que faço, por mais curto que seja, é tratado (por um grupo muito pequeno de pessoas) como um grande feito: participa de festivais, é alvo de críticas e análises, viaja pelo mundo. Já passei anos viajando e falando sobre filmes de 15 minutos. Já os programas de televisão (ou séries de 3 horas de duração) são quase sempre ignorados pela crítica. Recebem, na melhor hipótese, pequenas notas nos jornais. Mas são assistidos por muitos milhões de pessoas, um público totalmente disperso e desconhecido, com uma memória impressionante. Escuto, nas horas e lugares mais estranhos, comentários detalhados sobre programas que fiz há muito tempo. Uma das vantagens da televisão sobre o cinema é que filmes demoram muito tempo para serem feitos. Não sei se alguém já fez este estudo (que tal vocês fazerem?) mas eu aposto que, entre a primeira idéia para o roteiro e o filme na tela, o tempo médio (no caso do cinema brasileiro) não é menor que cinco anos. Quem não tem novas idéias (ou mesmo muda as antigas) em cinco anos, está com problemas. No Brasil, quase todo filme nasce atrasado. Por isso os projetos "rápidos" (roteiro + filmagem digital = filme na tela < 2 anos) também me interessam.

Cc: Você também diz sempre que tanto o Anchietanos quanto o Luna Caliente são de fato frutos do mesmo processo de realização do que se fossem longas, pelo menos na filmagem: o que mudaria seria o formato de exibição. Agora com mais experiência nos dois casos (tendo a realização de Homem que Copiava e o lançamento do Houve como fatos) como você ainda enxerga a função e a diferença entre cinema e TV, sejam como realização ou exibição?

JF: Acho que já respondi esta pergunta, pelo menos em parte. Anchietanos é, para mim, meu primeiro longa. Luna Caliente é o segundo. Escrevi sobre isso no Não (www.não-til.com.br): A diferença não está na linguagem em que se constrói a narrativa no cinema ou na televisão e sim na maneira como uma e outra são apreendidas. A diferença não é como se faz mas sim como se vê. Uma sala iluminada apenas pelas imagens que por algum tempo numa grande tela se movimentam, sem que sobre elas tenhamos qualquer controle, é cinema. Uma pequena tela se esforçando para chamar atenção o tempo que for possível, sempre e enquanto nós deixarmos, é televisão. É natural que a diferença de atenção do público de cinema e de televisão provoquem diferentes usos da mesma linguagem. O cinema, como disse Jean Claude Carriére, "ama o silêncio". A sensação de ver, numa grande tela, no escuro, é mais que suficiente para causar encantamento. A televisão odeia o silêncio. A imagem na televisão precisa constantemente da muleta do som e quase sempre da palavra. Não basta mostrar a faca, é preciso dizer, "Olhe, uma faca! Aqui! Na mesinha da sala, ao lado do vaso, está vendo? É uma faca! Não mude de canal! Não desligue, por favor!" A televisão não cala a boca. Outra diferença: desde o momento em que alguém tem a idéia para um filme até que você o veja na tela de um cinema passam-se muitos anos. Tudo que chega ao filme foi visto muitas vezes por muitas pessoas e você vê um filme sabendo que nada está ali por acaso. Na televisão tudo pode acontecer. Mesmo um filme na televisão pode ser interrompido a qualquer momento pela queda de um ministro ou de um avião. Televisão é sempre ao vivo.

Cc: No caso específico do Houve você enfrenta 3 tabus do cinema brasileiro: o de não levar a sério a produção mais cômica, o do cinema para adolescentes (um dos públicos mais negligenciados) e o da produção em digital (que tem ainda sido mais usado no documentário, o que levou por exemplo a um comentário da Suzana Amaral no Ceará de que o digital era para "filminhos" e não para "cinema"). Como você olha o filme hoje, com uma distância já maior do que assim que o finalizou? Onde você acha que estão seus maiores acertos e orgulhos e onde você gostaria de ter sido mais bem sucedido?

JF: Os três tabus têm, na minha opinião, origens diferentes. O desprezo pela comédia é uma mistura de ignorância e preconceito e muitas vezes esconde o medo de enfrentar um gênero onde amadores invariavelmente fracassam. Acho que o humor é indispensável para compreender o ser humano. "O riso situa-se para além do conhecimento, para além do saber. Ele encerra uma situação extrema da atividade filosófica: permite pensar o que não pode ser pensado" (Bataille). "Ver naufragar as naturezas trágicas e ainda poder rir, apesar da mais profunda compreensão, da emoção e da compaixão, isto é divino" (Nietzsche). Aristóteles diz que a diferença entre tragédia e comédia é que a tragédia mostra o que o ser humano tem de melhor, enquanto a comédia mostra o que o ser humano tem de pior, como um espelho deformado dos parques de diversões. Não levo heróis muito a sério. A comédia, um inventário de fraquezas humanas, me interessa mais. A quem acha que a comédia é um gênero menor sugiro que leia Shakespeare, Cervantes, Moliére, Millôr e Veríssimo. Ou qualquer grande escritor.

O desprezo pelos adolescentes é quase incompreensível. É um público muito crítico, que gosta e entende de cinema. E os personagens adolescentes são muito ricos, com sua crise permanente, sua linguagem viva e sua visão crítica do mundo e de si mesmos. A narrativa na primeira pessoa simulando a fala de um adolescente em tom coloquial constitui-se mesmo num gênero literário, o skaz. Hemingway disse que a moderna literatura norte-americana foi fundada nessa tradição, através de Mark Twain, com Huckleberry Finn. Holden Caulfield, o garoto perturbado de O apanhador no campo de centeio de J. D. Salinger, ou Billy Pilgrim, de Matadouro nº5 de Kurt Vonnegut Jr, ou ainda o Alexander de Complexo de Portnoy, de Philip Roth, são exemplos brilhantes desta tradição americana. Mesmo a língua francesa, mais rígida e avessa a neologismos, recebeu talvez o seu maior sopro de renovação (no século XX) a partir de um personagem adolescente, a Zazie, de Raymond Queneau (Zazie no metrô).

Já o preconceito contra a captação em digital é, para dizer o mínimo, divertido. Os fetichistas do sal de prata, que acham que cinema tem que ser captado em película, são saudosistas, têm medo do futuro e da democratização no acesso à produção audiovisual que o digital representa. Há quem ainda defenda a montagem em moviola, as máquinas de escrever ou o fax. A essência do cinema tem muito pouco a ver com a tecnologia de captação de imagem. Obras primas foram feitas em câmeras movidas à manivela e serão feitas em processos de captação que ainda nem foram inventados. Emitir juízos de valor a partir da tecnologia de captação de imagem de um filme seria como julgar o valor da pintura pela espécie de tinta com que foi feita, óleo, têmpera ou aquarela. Esta discussão podia ser interessante há vinte e três anos, quando Antonioni fez O Mistério de Oberwald (1980) em vídeo. Hoje é uma discussão ridícula e, daqui há vinte anos, será incompreensível.

Terminando de responder: acho que meu maior acerto no Houve foi a escolha do elenco. Hoje, vendo o filme, faria algumas alterações no roteiro e mudaria algumas piadas.

Cc: Tendo a experiência agora do lançamento de um longa em cinema, como está sua expectativa com o segundo? E ainda sobre o Homem, seria legal falar um pouco da diferença entre os dois filmes, além das mais óbvias (orçamento, película/digital, elenco global, etc). Para você como realizador, de que forma cada filme te exigiu habilidades e approachs diferentes?

JF: O Houve uma vez dois verões é meu único filme realista, tem uma estrutura narrativa clássica, não tem nem mesmo um flash-back. A história tem uma estrutura cíclica e três atos perfeitamente simétricos, cada um deles terminando com o mesmo personagem dizendo a mesma frase: "estou grávida". O homem que copiava, ao contrário, é uma colagem, com muitas fontes de imagem e um fluxo narrativo muito fragmentado. É também uma colagem de gêneros, mistura romance, aventura, comédia, documentário e desenho animado. É um filme quase barroco, onde a narrativa se apoia no fluxo de consciência de um personagem que está no limite da esquizofrenia. O Homem é uma produção de dois milhões e seiscentos (até a primeira cópia), o Dois Verões custou menos de oitocentos mil, incluindo o lançamento. O elenco do Homem é de atores experientes, o de Dois Verões é de atores jovens, iniciantes. Os filmes são muito diferentes.

Cc: Você acha, tendo feito um longa em digital e um em película, que ainda há projetos em que um seja mais adequado do que o outro? Digo isso porque discutimos a questão do purismo ridículo da película, mas também pode-se pensar ao contrário que "não importa em que suporte se capte". Mas, se não importasse de fato, porque a opção por um aqui ou o outro ali? Esta opção é apenas de ordem orçamentária, ou você acha que, mesmo sem priorizações estéticas, há projetos mais adequados a um ou outro?

JF: Acho que cada projeto pede soluções técnicas específicas: tamanho de equipe, dias de filmagem, equipamentos de captação de imagem e de som, equipamento de finalização... Uma amiga (Dainara Tofolli) ia dirigir um documentário (que incluia depoimentos) na Antártica e pensava na possibilidade de captar em digital. As baixas temperaturas, que podem afetar qualquer equipamento, são mais perigosas para o digital que para as câmeras de cinema. E os grandes planos externos, principalmente num lugar onde as tonalidades às vezes variam do branco ao cinza claro passando por várias tonalidades de gelo, pedem, por enquanto, a definição do negativo. Por outro lado, não aconselho ninguém a fazer entrevistas (para documentários) em negativo. No caso de um documentário que mistura imagens grandiosas de natureza e depoimentos, talvez a melhor solução seja usar o filme 16mm para os depoimentos (já que digital e película quase sempre misturam mal) e o 35mm para os planos mais abertos em externa.

Cc: Você sempre se colocou como um "contador de histórias", antes de tudo. Tem relação forte com a literatura e com o cinema clássico, e acima de tudo uma preocupação enorme com o contato com o público. Com que olhos de espectador mesmo você enxerga o cinema de cunho mais experimental, e no que você acha que ele te acrescenta e ao cinema?

JF: Como já disse, Houve uma vez dois verões é meu único filme realista. Aceito toda forma de expressão cinematográfica e admiro o trabalho de muitos cineastas que usam o cinema para flertar com experiências sensoriais distantes da narrativa, mais próximas das artes plásticas (como Peter Greenway ou, no Brasil, Artur Omar e Joel Pizzini). Mas não aceito que o enredo seja associado automaticamente a um cinema "tradicional", "clássico", e que a "ruptura", a "invenção" e a descolonização do olhar obrigatoriamente o descartem. (Desconfio mesmo se a palavra "clássico" pode ser facilmente associada ao cinema, uma arte recente que já começou mudando e não pára de se transformar). Acredito que o cinema pode ser "invenção", pode significar "ruptura" e que podemos pulverizar estruturas narrativas sem abrir mão do enredo. Concordo com Vonnegut quando ele afirma que "se você exclui o enredo, exclui o leitor, o que é uma atitude mesquinha". Não quero fazer listas, mas pense nos grandes filmes da história do cinema e veja como eles preservam o enredo. Peço licença para uma longa citação a Umberto Eco (em Pós-Escrito a O Nome da Rosa, tradução de Letizia Zini Antunes e Álvaro Lorencini, Editora Nova Fronteira, 1985).

"Divertir não significa di-verter, desviar dos problemas. (...)O leitor ideal de Finnegans Wake deve afinal divertir-se tanto quanto o leitor de Carolina Invernizzio. Tanto quanto. Mas de maneira diversa. Ora, o conceito de divertimento é histórico. Para cada fase do romance, existem modos diferentes de divertir e de divertir-se. É indubitável que o romance moderno procurou enfraquecer o divertimento do enredo, para privilegiar outros tipos de divertimento. Eu, grande admirador da poética aristotélica, sempre pensei que, apesar de tudo, um romance deve divertir também e sobretudo através da intriga. É indubitável que, se um romance diverte, obtém o consenso do público. Ora, durante certo período, pensou-se que o consenso fosse um sinal negativo. Se um romance encontra consenso, então é porque não diz nada de novo e dá ao público aquilo que ele já esperava. Creio, porém, que não seja a mesma coisa dizer "se um romance dá ao leitor aquilo que ele esperava, encontra consenso" e "se um romance encontra consenso é porque dá ao leitor aquilo que ele esperava". A segunda afirmação nem sempre é verdadeira. Basta pensar em Defoe ou em Balzac, para chegar a O tambor ou a Cem anos de solidão. (...) A mesma dicotomia entre ordem e desordem, entre obra de consumo e obra de provocação, mesmo não perdendo sua validade, talvez deva ser examinada de outra perspectiva, isto é, penso que será possível encontrar elementos de ruptura e de contestação em obras que, aparentemente, se prestam a um consumo fácil, e perceber que, ao contrário, certas obras que se mostram provocativas e ainda fazem o público pular na cadeira não contestam coisa nenhuma. (...) Hoje, atingir um vasto público e povoar seus sonhos talvez signifique fazer vanguarda, deixando-nos ainda a liberdade de dizer que povoar os sonhos dos leitores não significa necessariamente consolá-los. Pode significar obcecá-los."

Cc: Para falar de Cinema Brasileiro, acho que seria legal você citar algumas coisas recentes, e também mais antigas que te marcaram: filmes, diretores, trabalhos em geral.

JF: O filme brasileiro que me causou maior impacto foi Cabra marcado para morrer, de Eduardo Coutinho. Conheci muito tarde o cinema brasileiro "sério". Até ver os primeiros filmes do cinema novo, já no final dos anos setenta, só conhecia Teixeirinha, Mazzaropi e Trapalhões. Glauber foi um artista genial, o maior que o cinema brasileiro já teve. Prefiro (como conjunto da obra) o trabalho do Nelson Pereira, nosso autor de "mais grandes" filmes: Vidas Secas, Memórias do Cárcere, Rio 40 Graus, Amuleto de Ogum. Mas é impossível negar o gênio criativo do Glauber, presente nos seus dois grandes filmes (Deus e o Diabo e Terra em Transe), nos seus muitos textos e, muita gente esquece, também no seu trabalho na TELEVISÃO. Glauber, com a sua participação no programa "Abertura", falando com o camera-man (Brizola) durante a gravação e misturando jornalismo com ficção, tudo embalado por falas caudalosas, anárquicas e brilhantes, abriu caminho para uma nova espécie de jornalismo. Regina Casé, Marcelo Tas (que surgiu, com o Fernando Meireles, na "Olhar Eletrônico") e muitos outros repórteres/personalidades sofreram influência direta do "Abertura". É impossível negar a importância do Glauber na cultura brasileira como um todo e especialmente no audiovisual. Mesmo quem nunca viu, sofre influências dele, por tabela. Caetano disse que Terra em Transe mudou inteiramente a sua maneira de pensar o Brasil, foi uma revolução na cabeça dele. E se foi na dele, também foi na minha, que só vi Terra em Transe no final dos anos 80 mas já ouvia Caetano desde sempre. Grandes artistas, mesmo que pouco conhecidos ou quase ignorados, mudam tudo.

Cc: Em entrevistas e debates você já afirmou que acha errado membros do próprio meio do cinema falarem mal de trabalhos de outros colegas, e que a crítica que deveria cumprir esse papel, não o faz. Queria que você explicasse e ampliasse um pouco essas posições.

JF: Meu trabalho é fazer filmes e o trabalho da crítica é criticá-los. O cinema brasileiro sempre teve mecanismos de produção muito frágeis, depende de subsídios fiscais, concursos públicos. É deprimente ver cineastas brasileiros falando mal (publicamente) de filmes brasileiros. Cada vez mais concordo com a famosa (e polêmica) frase do Paulo Emílio, "qualquer filme brasileiro merece ser visto" (ou qualquer coisa assim). Fiquei orgulhoso ao ler a lista dos dez filmes de maior bilheteria nos cinemas brasileiros em 2002 e constatar que eu só vi um, o único brasileiro, "Cidade de Deus".

Cc: Confesso que não entendi o que você quis dizer pelo orgulho de só ter visto o filme brasileiro entre os dez filmes de maior bilheteria: foi o orgulho de ter um filme brasileiro entre os dez? Ou de não ter visto os estrangeiros?

JF: Me expressei mal. Orgulho de mim mesmo por não ter visto os outro nove. Acho que me expressei mal porque é um orgulho bobo, vou acabar vendo alguns dos outros em vídeo. Tentei ver o Homem-Aranha, gostava (médio) dos quadrinhos mas o roteiro é muito fraco. Tem uma cena que o tio do Peter diz a ele: "um grande poder exige uma grande responsabilidade", isso porque o garoto vive trancado no quarto e no banheiro. Do que ele está falando? De nada, é claro, é só uma frase para voltar mais tarde, em off com reverber (!!!) quando o tio morre. É duro e não é queijo.

Cc: Concordando plenamente com sua idéia da fragilidade do cinema brasileiro perante circunstâncias de cunho governamental, etc, queria que você explicasse um pouco melhor onde a crítica entraria nisso. Você diz que o "papel dela é criticar", mas numa outra entrevista você mencionava que ela não cumpria esse papel. E mais: é possível ser criterioso e rigoroso como crítico sem ser daninho ao cinema nacional, nesse papel de muitas vezes, como você menciona "falar mal publicamente"?

JF: Sempre é complicado falar sobre a crítica. Acho que o primeiro e maior crítico de qualquer filme é o realizador. Se conhece bem o seu trabalho ele sabe onde acertou e onde errou. O ideal é aprender porque errou e, no próximo trabalho, só cometer erros novos. Ouvir a opinião dos outros pode ajudar (mas também pode astrapalhar). Todo mundo que já fez algum filme recebeu elogios sinceros de espectadores, pessoas que viram e gostaram e dizem isso pessoalmente, com entusiasmo. Mas é importante saber que quem não gostou não te procura para dizer que não gostou. E mesmo quem gostou só um pouco fala só do que gostou mais ("Ótima fotografia! Que música bacana!") e não fala do que não gostou ("Péssimo roteiro! Que direção relaxada!"). Ainda bem que é assim, São Jorge me proteja dos desconhecidos sinceros e espontâneos. As exceções deveriam ser a crítica e os amigos. A crítica porque é paga para isso, para analisar os filmes, de preferência com poucos adjetivos. A boa crítica pode chamar a atenção sobre relações sutis na narrativa, ou sobre referências que o filme faz com a realidade externa a ele, ajudando o espectador a ver melhor o filme (ou, se ele já viu, a pensar melhor o filme). Mas acho que a boa crítica deveria, a não ser em casos em que o filme mereça total desprezo, incentivar o leitor a ter a sua própria opinião VENDO o filme. Ler a crítica não deveria substituir ver o filme, mas freqüentemente o faz. Já os amigos sabem que apontar defeitos é quase sempre mais útil que elogiar. Especialmente os defeitos que ainda podem ser corrigidos, mas também os outros, que podem ser evitados no próximo filme.

Cc: Como realizador, como lida com fases como a captação de recursos, ou com a distribuição e exibição? Que modelos você acha que seriam os melhores para público e artistas nessas áreas?

JF: Me coloco a disposição da produção para fazer o que for preciso para promover ou divulgar o filme. Não entendo quase nada de distribuição e exibição.

Cc: Como foi o processo de lançamento do Houve, trabalhado junto a uma major? Você acha que o filme acabou subaproveitado nos cinemas?

JF: A estratégia de lançamento do Houve foi definida de comum acordo entre a Casa de Cinema de Porto Alegre e a Columbia. Tivemos acertos e erros de planejamento. Acertamos no lançamento no Rio e Porto Alegre e erramos em São Paulo e Salvador. Com um custo de oitocentos mil reais (incluindo lançamento) e, até agora, 50 mil espectadores nos cinemas, o Houve pode vir a se pagar, se pensarmos nas rendas adicionais dos mercados estrangeiros e também de tv, vídeo e dvd. Concordo com você quando diz que o cinema brasileiro não sabe aproveitar bem o que produz. Falta experiência, falta continuidade, faltam padrões e números confiáveis, parece que cada novo filme tem que descobrir tudo do zero. No fim, quase tudo depende da verba disponível para o lançamento, numa disputa por espaço na mídia: mais mídia, mais cópias, mais público. Mas, felizmente, a qualidade do filme também conta.

Cc: Finalmente, acho que seria legal você falar dos projetos pós -"Homem que copiava". Já há algo em vista? Quando está previsto o lançamento dele? O "O Povo e o em nome do povo" continua sendo um objetivo?

JF: Não gosto muito de falar sobre estratégias de lançamento, assunto do qual pouco entendo. Já ouvi falar que o filme será lançado em maio, um lançamento nacional, com muitas cópias. Mas quem sabe? Já o projeto do documentário está na gaveta, pode sair um dia, mas não é prioridade no momento. Escrevo todos os dias, muitas coisas podem vir a ser para o cinema, mas não quero falar sobre elas.

(Nota: Acabo de ler e revisar o texto e me lembrei de uma frase do Elias Canetti: "Não acredite em alguém que sempre diz a verdade".)