Dublê de Corpo, de Brian De Palma

Body Double, EUA, 1984


Dublê de Corpo de Brian De Palma

"O mestre moderno do suspense te convida...": assim o trailer de Dublê de Corpo procurava seduzir o espectador, entre imagens do corpo de uma lânguida senhorita nua sendo acariciado com um colar de pérolas e retalhado por linhas verticais e horizontais, à maneira dos créditos de Psicose. Ao cabo da sequência, o colar se fecha violentamente sobre o pescoço da mulher, enquanto o locutor anuncia: "não acredite em tudo que você vê".

Poucas vezes se viu um trailer tão coerente e sensível à proposta do filme que anuncia. Sexo e violência, sedução e assassinato, até mesmo a alusão paródica a Hitchcock está presente no anúncio, uma pequena pérola que pode ser encontrada na edição em DVD (atualmente fora de catálogo -- o filme deve ganhar uma das tais "edições especiais" num futuro não muito distante).

Que Brian DePalma é de fato um mestre, como diz o anúncio, poucos têm a audácia de duvidar. No entanto, a conquista desta posição privilegiada se deve menos ao seu manejo -- sem dúvida, notável -- do suspense (e muito menos à mágica de publicitários) do que ao controle quase perfeito que ele impõe sobre a construção dos tempos da narrativa. DePalma é um dos grandes mestres do ritmo -- ele demonstra em cada um de seus filmes a capacidade nada comum de articular os planos com tal precisão, que pode se dar o luxo de interromper uma sequência grandiloquente com forte carga dramática (os movimentos operísticos que são sua marca registrada) para se prender a uma nuance qualquer, retornando novamente ao tempo forte sem que o espectador sequer pisque.

O suspense preconizado por Hitchcock é um dispositivo que exige, de fato, engrenagens muito bem polidas para que funcione a contento; seu objetivo maior é alçar o espectador a um estado de total envolvimento emocional em relação ao filme. DePalma, com tudo o que contribui para sua genialidade, é um cineasta por demais preocupado com as mecânicas da forma para provocar tal arrebatamento; pelo contrário, sua obsessão em descontruir sistematicamente o olhar do espectador é a base de uma operação inversa. Em outras palavras, o jogo que DePalma propõe em seus filmes é de ordem estritamente intelectual (com exceções, é evidente), em que cabe ao espectador a tarefa de remontar, como estrutura, o que deveria, em tese, ter provocado catarse. O suspense é um artifício e faz questão de se mostrar como tal.

Para que esta estratégia funcione, é necessário nos deixarmos enganar por uma imagem que se assume já num primeiro momento como falsa. Nos deixamos envolver no mistério de Dublê de Corpo, não porque suas imagens trazem qualquer índice de realidade, não há qualquer verossimilhança -- posto de outra maneira, não há verdade a ser revelada; nos deixamos envolver porque somos, tal como o protagonista, seduzidos. Uma imagem-fetiche (que vai reaparecer transmutada na última imagem, belíssima, de O Pagamento Final) faz as honras: um corpo feminino em movimento, numa dança sensual.

Dublê de Corpo é um filme que se ampara nesta imagem poderosa, uma imagem que revela, em sua construção meticulosa, o centro geométrico da obra de DePalma: a narrativa construída pelo olhar não é tão importante, como em Vertigo ou Janela Indiscreta, quanto a obsessão em reconstruir aquela imagem única, cuja artificialidade é em última instância sua verdade última. Revisto sob a ótica de Femme Fatale, Dublê de Corpo revela antes um cineasta da sedução que da manipulação

 

Fernando Verissimo