O
caso Deus ex-machina e o cinema de Carlos Gerbase

Quando Deus ex-machina
foi exibido, houve espanto e curiosidade. Do título estranho –
todos ficavam felizes quando descobriam que a tal "expressão esquisita"
está ligada ao fato de que no teatro grego havia um deus que aparecia
em cena para dar uma solução arbitrária para os problemas
dos personagens – até a forma narrativa – flashbacks, uso de primeiros
planos –, tudo contribuía para criar uma aura em torno do filme.
Em 1995, o curta de Gerbase levou quase todos os prêmios para curta
em 35mm em Gramado e, a partir dali, se tornou o grande recordista em
número de kikitos recebidos. À parte toda a badalação
festivalesca, o que se viu foi um filme que, sem dúvida, foi um
divisor de águas no cinema gaúcho (quiçá brasileiro)
e, também, um dos trabalhos em que Gerbase mais conseguiu adequar
seus temas a uma proposta cinematográfica consistente.
Antes de pensar no
filme propriamente dito, é necessário contextualizar Deus
ex-machina no cinema gaúcho dos anos 90. Depois do arrasa-quarteirão
Ilha das Flores (1989), de Jorge Furtado, uma grande parcela dos
curtas produzidos no estado do Rio Grande do Sul foi formada por filmes
que, de uma maneira ou de outra, dialogavam com a forma ‘"ensaística"
do Ilha. Longe de tentar reduzir esforços valiosos que garantiram
diversidade estilística para o período (haja visto os trabalhos
de Fernando Mantelli, Sérgio Silva, Otto Guerra, entre outros),
o que faço aqui é também chamar a atenção
para a impressionante quantidade de películas que encontraram no
curta de Furtado uma matriz, uma inspiração ou até
um ponto de conflito. Por exemplo: Memória (Roberto Henkin,
1990) também prepara um discurso para demonstrar uma situação
social absurda, no caso o apoio dos brasileiros a Collor; Esta não
é sua vida (Jorge Furtado, 1991) é, apesar da sua introdução,
a tentativa de fazer um anti-Ilha, uma negação do documentário
construído; Batalha Naval (Liliana Sulzbach, 1992) caminha
pelas ondas da ficção, mas não deixa de ser uma demonstração
sobre a burocracia e a ignorância; Ventre Livre (Ana Luíza
Azevedo, 1994) mergulha no documentário mais cru, porém
acaba, talvez pela postura humanista, lembrando o curta de 1989. Obviamente
seria necessário pensar melhor cada uma dessas ligações
apresentadas, porém elas servem para justificar porque todo mundo
que queria fazer um filme em Porto Alegre na metade da década de
90 tinha que responder a pergunta fatídica: É documentário?
E onde andava Gerbase?
Egresso da geração de superoitistas do final dos anos setenta,
o cineasta já chamara a atenção com filmes feitos
na bitola nanica: se Meu primo (1979) e Sexo e Bethoven
(1980), apesar do "sucesso" feito na época, não
chegaram à memória dos realizadores mais jovens, Inverno
(1983), é considerado até hoje o cult dos cults do cinema
gaúcho. Nestes filmes, Gerbase já apresentava alguns dos
seus temas, que ganhariam eco na produção em 35mm. Por exemplo,
a crônica nostálgica da adolescência exibida com inventividade
em Inverno aparece (com menos frescor) em Verdes anos (1984,
co-dirigido por Giba Assis Brasil). Já o sexo, elemento caro desde
sempre ao cinema de Gerbase, aparece nas produções posteriores
ora ligado à transgressão cinematográfica (a gratuidade
de Aulas muito particulares –1988 – será sempre um insulto)
ora como elemento deflagrador de um conflito moral (o pai de O corpo
de Flávia – 1990 - quer punir a filha porque ela transa com
o namorado, mas sente desejo pela amiguinha da mesma). Além da
nostalgia adolescente e do sexo, podemos detectar no cinema de Gerbase
um olhar poético para a classe média (Interlúdio,
1983, co-dirigido com Giba Assis Brasil) e uma radiografia da violência
surgida pelo apartheid social (Passageiros, 1987, co-dirigido com
Glênio Póvoas).
Uma postura comum
entre todos esses filmes variados talvez seja a busca por um discurso
direto, sem rodeios nem experimentalismos (Inverno é exceção).
Um pouco como nos filmes de Nelson Nadotti, o negócio é
ir lá e contar a história. Nos primeiros planos de cada
filme, quase podemos ouvir Gerbase dizer: "olha, gente, eu acho legal
falar sobre isso aqui". Já quando os créditos finais
rolam, o espectador deglute, meio de roldão, o que apareceu na
tela. Talvez por essa sinceridade bruta, a chatice passe longe do cinema
de Gerbase.
Em termos de temática,
Deus ex-machina funde um pouco os temas acima expostos (deixando
de lado apenas a nostalgia) e amplia o espectro de preocupações
no que diz respeito às problemáticas humanas, examinando
questões como incomunicabilidade, mentira, religião e morte.
Já no que diz respeito à forma cinematográfica, o
estilo despojado dá lugar a um requinte formal onde os acontecimentos
são embaralhados, formando uma espécie de "quebra-cabeça".
Nesse processo, é principalmente a montagem precisa e complexa
que aparece como grande diferencial das realizações anteriores.
Um dos primeiros fatores
que chama a atenção em Deus ex-machina é que
grande parte do filme é feita em "primeiro plano". Como
são raros os enquadramentos que mostram mais de um personagem,
o que vemos, quase sempre, é um dos protagonistas sozinho. É
interessante perceber que essa espécie de isolamento ou separação
do outro está ligada, em primeiro lugar, aos personagens do filme.
Dolores (Luciene Adami)
é aquela que tem dor: conheceu Inácio (Werner Schünemann)
no confessionário, casou com ele, mas acabou paraplégica
depois de um acidente de carro, de onde seu marido saiu ileso. Nunca mais
teve carinho (nem sexo) de Inácio. Após isso, ela pede a
uma amiga, Alice, que se aproxime dele, pois quer comprovar a impotência
do marido. Como Alice (Daniela Schmitz) diz que Inácio não
quer saber de transar, Dolores – desconfiada – contrata um detetive. Nestes
dois casos lança mão de dinheiro: com o detetive, a relação
monetária é óbvia, porém como ela lhe entrega
o cartão do banco, o que vemos é uma metáfora da
forma com que ela trata as pessoas. Já com Alice a situação
é diferente: elas se conheceram no hospital e Dolores acabou pagando
a operação da nova amiga. Assim, quando ela pede para Alice
se aproximar de Inácio, não deixa de haver aí uma
cobrança. Uma das imagens mais emblemáticas da personagem
é um momento em que ela aparece com grandes óculos, como
que sinalizando o seu não-olhar para o outro.
Já Alice é
o contrário de Dolores (não por acaso tem cabelos loiros;
em oposição aos cabelos negros da outra). Sonhadora - até
por isso seu nome alude ao famoso personagem de Lewis Carroll –, ela atende
o pedido da "amiga" sem fazer perguntas. Porém, ela acaba
enganada por Dolores, pelo detetive, por Inácio (que sabe da combinação
das amigas) e também pelo seu próprio desejo. Apaixonada
pelo personagem de Werner Schunemann, Alice mergulha em culpas sem desconfiar
do mundo a sua volta. Esse ato de acreditar nos outros, bem característico
de Alice, é condenado pelo filme. E isso é metaforizado
pelo estupro que a personagem sofre antes de parar no hospital: a carona
com um desconhecido pode representar a relação que ela terá
tanto com Inácio quanto com Dolores, embarcando na conversa de
duas pessoas que, de fato, ela não conhece.
Inácio, que
de santo não tem nada, tem uma trajetória sui generis no
filme. Abandona a vida religiosa para se juntar a Dolores, mas depois
– como se tivesse descoberto os prazeres da carne – abandona a mulher
que fica paraplégica. Esperto, ele monitora toda a situação,
através de escutas telefônicas e grampos. Inácio é
o personagem que mais demora a se mostrar para o público, que só
percebe o seu plano – como sabia das intenções da esposa,
não faz nada com Alice – quase no final do filme. Por isso, Inácio
é a dissimulação, o fingimento (mais do que qualquer
outro personagem). Nesse sentido, toda a sua ligação com
a igreja parece transmitir, por um lado, uma certa crítica aos
dogmas religiosos, e, por outro, um discurso de que a religião
está intimamente ligada às fraquezas humanas, da solidão
à hipocrisia.
No meio desse triângulo
amoroso, está Otávio (Leverdógil de Freitas), o detetive
contratado por Dolores. De certa forma, ele aparece como um personagem
contrário aos outros, porque é um estranho vindo de outra
classe social, com atitudes que parecem displicentes (simbolizadas pelo
indefectível palito que carrega na boca e pelo ato contínuo
de tomar cerveja). Só que durante o filme, o personagem vai ganhando
força e simpatia do espectador, pois ele começa a refletir
sobre o caso e sobre a vida - e aqui o recurso da voz over é muito
bem usado. Aliás, o interessante é que ele pensa coisas
díspares como: "Se o mundo fosse justo não precisava
ter padre nem polícia" e "não tem nada mais chato
que tomar cerveja choca". Além da simpatia que o personagem
traz em si, muitas vezes temos a sensação que é ele
que está contando o filme; afinal, o curta inicia e termina com
frases dele. Outro elemento que diferencia Otávio dos outros é
que duas vezes vemos o personagem em plongée. Só que nesse
caso, a câmera de cima para baixo não parece explicitar a
diminuição do personagem; muito pelo contrário, o
plongée mostra que o detetive está sendo observado de perto
por uma instância maior, um deus ou quem sabe até pelo próprio
diretor do filme. Então, a câmera em plongée parece
ser o emblema da simpatia que o realizador tem por este personagem autêntico
– não sem problemas de moral - que estampa uma das posturas do
filme: seriedade ma non troppo
Voltando à
questão da utilização do primeiro plano, é
interessante lembrar que uma das implicações que ela traz
é o fato de raras vezes podermos ver as pernas dos personagens.
Se pensarmos que Dolores está paralisada em uma cama, podemos entender
que a estratégia do primeiro plano iguala todos os personagens
no que diz respeito às imagens deles da cintura para baixo. Assim,
podemos pensar que os primeiros planos criam a idéia de que todos
personagens estão paralisados, todos eles estão mergulhados
na forma como são. Apesar de todas as peripécias do filme,
nenhum personagem mudará – e isso está estampado no uso
de primeiros planos.
Além da solidão
e da imutabilidade dos personagens, o primeiro plano passa outras sensações,
principalmente quando pensamos na montagem dos mesmos; afinal, um dos
procedimentos mais característicos de Deus ex-machina é
a "omissão do contraplano". Explicando melhor: em uma
cena, vemos um personagem falar com o outro (que está no espaço
off). Só que o plano seguinte não mostra a resposta, mas
sim outra seqüência, com outro personagem falando. Inclusive,
essa fala quase sempre responde de alguma forma o que foi dito antes.
Por exemplo, Alice conta ao analista (que está fora de quadro)
sobre Inácio: "Ele disse que tinha tomado uma decisão".
Então, corta para um flashback de Inácio falando para Alice
(que está fora de quadro): "Eu não quero mais te ver,
Alice". Assim, quando essas frases se unem, temos a sensação
nítida de que aqueles personagens não se entendem, não
se vêem e são bem individualistas com seus problemas. Esta
espécie de incomunicabilidade é ressaltada não só
pelos equipamentos de escuta que aparecem no filme, mas também
pelos telefones, usados o tempo todo.
A montagem também
é responsável por enfatizar um clima de absurdo quando,
ao invés de criar diálogos entre cenas diferentes, alinha
frases repetidas. Por exemplo: Alice vai visitar Dolores já no
final do filme, e a dona da casa diz: "Que bom que tu veio".
Então, corta para Inácio encontrando a amante e repetindo
a mesma frase. Esse tipo de reincidência exalta que o casal desfeito
– Inácio e Dolores – poderia, em outra circunstância, ter
prazer em seus encontros. Por outro lado, essa repetição
sugere um lado maquinal nas relações que o filme apresenta.
Nesse sentido, a repetição de frases é mais interessante
quando dita pelo mesmo personagem em momentos diferentes do filme: Inácio
sempre que chega em casa, vai para o banho e diz o tradicional "dorme
bem" para Dolores. Não por acaso, quando a esposa traída
mata o marido, ela diz: "Dorme bem, Inácio".
Junto com estes aspectos
– incomunicabilidade, imutabilidade, solidão, absurdo – aparece
a mentira. Se pela quantidade de vezes que os personagens enganam uns
aos outros, pode-se pensar que há um discurso do filme mostrando
o homem como um ser mentiroso patológico, é interessante
perceber também que a organização narrativa ajuda
na confusão criada pelas diversas inverdades que aparecem no filme.
Num sentido macro, todas as elipses do filme - relativas à construção
temporal ou à sonegação de informações
– ajudam a criar um clima de desconfiança e uma sensação
de que estamos num mundo fragmentado, sem muitas certezas. Inclusive,
essa espécie de instabilidade é exaltada pelo flerte com
o cinema policial, pela mistura de texturas (cinema e vídeo) e
pela utilização de uma trilha sonora que oscila entre sons
religiosos e guitarras pesadas. Pensando em procedimentos mais específicos,
existem algumas cenas que aparecem para fundamentalmente "enganar"
o espectador. Por exemplo, em um determinado momento, quando ainda julgamos
que Inácio trai Dolores com Alice, vemos o ex-padre se confessando.
Tudo leva a crer que ele está ali pedindo perdão por tal
ato, mas depois vemos que fomos enganados: ou ele está se referindo
a sua outra amante ou ele confessa sentimentos contraditórios.
Enfim, os seres de
Deus ex-machina vivem num mundo de incomunicabilidade, cercados
de mentiras e mergulhados na solidão. Mas não podemos esquecer
que, como lembram as estátuas que aparecem no filme, a vida foi
sempre assim.
Já o cinema
gaúcho mudou muito. Além do amadurecimento de outros cineastas
já citados neste texto, vale lembrar que foi justamente a partir
daquele ano de 1995 que uma nova leva de realizadores começou a
fazer filmes. Não se sabe se foi exatamente por causa do curta
de Gerbase, mas é incrível o fato de que a grande maioria
desses diretores optou pela ficção, se afastando do modelo
Ilha das Flores. Por isso, quando vemos os personagens bem construídos
de Até (Gilson Vargas, 1999) ou a eficiência da manipulação
do tempo de Domingo (Gustavo Spolidoro, 2002) não podemos
esquecer que o paradigma do curta com história, com presente-passado-futuro,
continua sendo Deus ex-machina.
Fabiano de Souza
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