O cinema nosso de cada dia


Pedro Santos e Ceres Victora em Deu Pra Ti, Anos 70


Assim como Houve uma vez dois verões, duas outras produções anteriores fundamentais na história da Casa de Cinema eram comédias de costumes centradas nas histórias de amor de jovens gaúchos: o longa-metragem em super-8 Deu Pra Ti Anos Setenta, dirigido por Nelson Nadotti e Giba Assis Brasil, e o também longa, mas já em 35mm, Verdes Anos, dirigido por Carlos Gerbase. A influência desses dois filmes em Houve uma vez... foi sinalizada pelo próprio Jorge Furtado em diversas entrevistas (inclusive na presente nesta edição, no caso de Deu Pra Ti) – e já motivou uma série de artigos por aí afora. Todos estes são tomados pela agradável surpresa de que está se firmando no Sul do país – a partir da produção da Casa de Cinema – uma tradição de excelentes comédias de costumes centradas em personagens recém-saídos da adolescência.

Curiosamente, grande parte das opiniões veiculadas parece pressupor que comédias de costumes encantam o público por serem comunicativas, simpáticas e descompromissadas. Bem, comunicativas com certeza podem ser, se o pretenderem e forem bem-sucedidas – mas daí a descompromissadas vai longa estrada, dependendo do conceito que se depreende do termo. Nossos problemas diários podem definir quem somos, podem definir nossos rumos, e não é difícil notar que os retratos cotidianos destas comédias por vezes sintetizam idéias e objetivos comuns de diversas pessoas da mesma geração. Uma comédia de costumes tem um compromisso, do qual não pode escapar, com um certo olhar do dia-a-dia – poucos gêneros têm tamanho comprometimento com a vida cotidiana. Por trás do lugar-comum imediatista do "amor que tudo vence", temos escolhas éticas vitais na opção pelo amor teimoso e monogâmico de Houve Uma Vez Dois Verões – fazendo uma analogia com a tradição carioca de crônicas de costumes, tivemos escolhas assim na identificação plena de Todas as Mulheres do Mundo, na ironia de El Justicero, na opção de viver a vida dos filmes do Carvana dos anos ‘70 ou mesmo nas decisões inseguras de Amores Possíveis. Esse retrato é parte da regra do jogo do gênero. Desinteresse pela realidade, idealização de ambientes e nostalgia de uma época que nunca existiu são armadilhas mortais para o gênero – Bossa Nova que o diga. O amor teimoso de Chico por Roza em Houve Uma Vez Dois Verões ou as idas e vindas de Nando e Soninha em Verdes Anos remetem a uma realidade e apresentam personagens que interessam de fato aos seus realizadores, tendo decerto uma forte influência do cinema de gênero (tendo o exemplo evidente de American Graffiti) mas tendo também uma ligação afetiva direta pelo mundo que querem retratar, mesmo que já não façam mais parte dele.

Sendo assim, vale ressaltar a pepita originária desta nova tradição gaúcha, a que os outros filmes parecem sempre se remeter – porque compreendendo o que ela tem de especial podemos talvez perceber até que ponto o retrato do cotidiano no cinema, mesmo que imperfeito, pode ser deflagrador. O que há de especial em Deu Pra Ti Anos 70? Talvez seja esse momento inexplicável em que caímos no truque do mágico, em que a suspensão da descrença se dá de forma mais aguda, esse ponto em que acreditamos na verdade da mentira e nos parece que a ficção encontrou a realidade – ou melhor, faz parte dela integralmente. Como umas poucas crônicas de costumes, algumas já citadas, Deu Pra Ti não parece ser apenas um retrato de vidas – mais do que a história do amor de Ceres e Marcelo ao longo de dez anos, Deu Pra Ti pretender olhar para toda a década que os personagens viveram. Dessa forma, o filme nos transmite a sensação de ser parte integrante do momento que retrata e consegue manter deste momento uma atmosfera e um calor únicos. Se há algo que o filme nos deixa, é essa convicção de que o cinema precisa se arriscar a ver e fazer parte da vida cotidiana, essa convicção de que os frutos valerão a pena, de que a colheita sempre vem.

Depois de semear, a colheita acaba vindo. Veio no próprio Deu Pra Ti e veio de novo nos olhares – já nostálgicos, mas ainda curiosos – dos filmes que se seguiram. Na visão dos muitos personagens de uma geração que amadurecia em Verdes Anos, feito pouco tempo depois (três anos), na revisão do cotidiano adolescente gaúcho dos personagens Chico, Roza, Juca, Carmem e Violeta de Houve Uma vez.

É melhor então manter um olhar desconfiado para os elogios caretas a Houve Uma Vez Dois Verões. Decerto é muito bacana que tenhamos um filme tão agradável, com uma estrutura tão eficiente e uma delicadeza tão grande com seus personagens – mas o mais importante nisso não é o fato de que o filme se comunica bem com sua platéia, é o fato de que ele tem o que comunicar, ao contrário do que pensam alguns. Se a narrativa usa esquemas de estrutura de roteiro com naturalidade e inteligência, sem parecer engessada ou programada, não é isso que torna o filme rico, é seu interesse pelos dramas dos seus personagens – e a origem disto não está nos manuais de roteiro.

Daniel Caetano