Cinderelo Trapalhão,
de Adriano Stuart

Brasil, 1979
Os
primeiros 15 minutos desse Cinderelo Trapalhão impressionam: a
quase ausência de diálogos, as longas seqüências de acrobacia, o jogo
de expressões faciais, são uma das passagens mais marcadamente circenses
do cinema brasileiro. Um narrador com ares de intertexto narrativo é a
única referência direta de trama, intercalado a esquetes de perseguição
e a primeira de uma série de cenas memoráveis: um show de touradas, onde
Cinderelo (Didi) “fila” um lanche dos outros espectadores. A liberdade
do improviso e da expressividade mímica de Didi ganham nessa cena um pequeno
momento de eternidade.
Diretamente
baseado no conto de fadas, o filme conta a história de um vagabundo que
vive junto com três nobres cavaleiros (Dedé, Mussum e Zacarias), mas que
descobre coragem ao ajudar uma família de fazendeiros ameaçados por um
poderoso coronel. Longe da alegoria, o filme é uma fábula assumida, que
brinca com seu aspecto fantasioso ao criticar o poder feudal dos grandes
fazendeiros.
A
narração nos lembra que se trata
de um reino distante, “longe daqui”, uma forma jocosa de driblar os olhares
da censura, mas também uma maneira de tratar da ganância por poder, sem
perder a doçura, marca de seus protagonistas. Ainda que heróis, os Trapalhões
aqui não são exemplos de bondade, não representam ídolos: são malandros,
palhaços, por vezes covardes e sensatos, por vezes estúpidos.
Cinderelo
é a síntese de um heroísmo que não se calca numa consciência julgadora
mas num gesto de afetividade – que quase não percebe o perigo que corre,
que não vê os limites do bom senso. Assim, funcionando entre a esperteza
de pequenos truques e as trapalhadas que quase colocam tudo a perder,
Cinderelo não tem utopias nem medo, age como que por prazer, brinca, debocha
de si mesmo. Se compara à Cinderela original, brinca ter uma fada madrinha...
mas não tem nada além de Gumercindo, um bode.
Dedé
é o cavaleiro orgulhoso de seu suposto heroísmo – vive em troca de favores
e de sua valentia, acompanhado por Mussum e Zacarias – é figura do herói
estandardizado, que treme ao pensar um enfrentamento com o coronel mas
aceita lutar em troca de terras, como um justiceiro de western.
As
esquetes do treinamento de Cinderelo junto aos capangas do coronel são
pequenos espetáculos de mímica, atrações de acrobacia que parecem se descolar
da narrativa e se entregar unicamente ao humor concreto dos picadeiros
– familiar também ao diretor Adriano Stuart. São cenas em que, como na
sequência em que Didi finge ajudar os capangas a destruir a casa dos pequenos
fazendeiros, o humor do improviso, das gags, ganha ainda mais espaço.
Perfeita,
aliás, é essa seqüência ao conseguir trabalhar dois tons de paródia numa
mesma imagem: os capangas do coronel nos remetem aos índios/mal-feitores
da estrutura do western, e Didi, por dentro da cena, brinca com seus gritos
e seus gestos de maldade, fingindo participar do quebra-quebra. Outra
pérola.
O
pastelão assumido da trilha sonora, da cena do casamento (inclusive com
a presença das tortas na cara) ou do pé gigantesco que Cinderelo finge
ter para evitar colocar a bota que o incriminaria, fazem de Cinderelo
Trapalhão um dos melhores momentos do quarteto – conjugando o improviso
dos gestos e falas à precisão de suas acrobacias. A brincadeira livre
ao encaminhamento narrativo. Didi encarna perfeitamente o herói dúbio:
impetuoso e tímido, habilidoso e atrapalhado, contido e incontrolável
(como quando, num pequeno surto de raiva, começa a destroçar o carro do
coronel ou derrama todo o sonífero no ponche da festa).
O
final feliz conquistado é coroado com a antológica imagem do petróleo
jorrando do pequeno terreno (quase uma quitinete) que cabe como recompensa
a Cinderelo e a seu bode. Essa dádiva mágica inevitável (que vem justamente
àquele que mais fez e menos pediu em troca) marca o tom desse pequeno
conto moral sobre a humildade e o heroísmo. Sem fada madrinha, sem pedidos
ou vara de condão, mas ainda um conto de fadas.
Felipe
Bragança
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