Carrie, a Estranha, de Brian De Palma

Carrie, 1977


Sissy Spacek em Carrie, a Estranha

Carrie me chocou agora, quando fui pegar a fita na locadora. Estava preparado para ter que subir no sótão e procurar uma velharia na prateleira mais empoeirada reservada aos filmes esquecidos. Perguntei por ele e me apontaram uma estante logo atrás de mim, bem perto do lugar onde ficam os lançamentos. Estranho Carrie estar ali, em lugar tão nobre. Perguntei o motivo e para minha surpresa a resposta foi que ele ainda "sai muito".

Mas como um filme de 1976 ainda sai muito se temos uma variedade enorme de filminhos do gênero com caras mais conhecidas e efeitos especiais mais bonitos? Vai ver Carrie não é um filminho do gênero. Tem vários elementos que podem ser encontrados nos suspenses adolescentes, mas paira acima deles. Melhor dizer que ele não se resume a inventar ou recriar qualquer gênero.

Já no início fica claro o que Brian De Palma é capaz de fazer para envolver o público no seu universo e expor a índole de seus personagens. Ele fecha a seqüência de extrema beleza plástica do vestiário feminino, aliás, com nus frontais que não passam em nenhum canal aberto de TV, com uma mistura de raiva, medo, desamparo e egoísmo. Está tudo pronto para todo o resto do filme. Aos poucos vamos sendo conduzidos com capricho pela realidade da pequena cidade onde Carrie mora, conhecemos sua mãe, a paranóica religiosa, os professores, namorados de suas colegas e o tipo de vida de uma cidade pequena americana. Mas não temos uma visão muito clara. O que nos é exposto são as pessoas interagindo umas com as outras. De Palma não forma apenas todo o ambiente intrincado de seu filme, mas também parece justificar os atos dos personagens. Eles agem como se algo maior os obrigasse, como se não tivessem controle sobre o meio, como se essa fosse a única maneira se comportar já que se encontram naquele lugar, naquela escola, com aquelas pessoas. Todos têm seus motivos mas Carrie tem poderes telecinéticos.

O suspense do filme é previsível, o que não o faz menos pesado. Juntando a vida miserável de Carrie, suas colegas sádicas, sua criação limitada pela crença de sua mãe pode-se adivinhar o que vai acontecer quando se acrescenta poder sobrenatural a esse caldeirão. De Palma trabalha com a antecipação mostrando os detalhes dormentes da situação que vai transbordar. É a espera acompanhada da música hitchcockiana que nos agonia.

Carrie, a desajeitada, rejeitada, estranha vai sofrer no final. Tudo vai aos poucos convergindo para a grande humilhação que ela terá que enfrentar na já clássica seqüência do baile de formatura. Já sabemos de antemão o que acontecerá com Carrie, qual é o plano de vingança de sua colega de escola, mas não estávamos de modo algum preparados para a maravilhosa câmera lenta que constrói a imensa felicidade da menina com sutileza e nos leva para perto de uma atmosfera de sonho. A ruptura é brutal. São extremos de sentimentos que se completam e ali fazem parte da mesma situação, são um só. A tensão criada pela montagem intercalada, antecipando a tragédia, ganha alívio quando ela acontece para logo depois ser novamente atiçada com a explosão da fúria e da vingança de Carrie. Sobra para todos. Todos merecem sua parte de sofrimento. Sem efeitos especiais mirabolantes De Palma arma uma confusão assassina. Difícil de esquecer.

Todos são culpados. Se a estranha Carrie é tratada com desprezo e não é aceita talvez também seja culpa dela. E nem a extinção de todos os seres que agiram para que tudo terminasse dessa maneira pode trazer tranqüilidade à cidade. No final ainda estão lá a raiva e o preconceito que fizeram e continuarão fazendo os cidadãos pacatos odiarem outras Carries.

João Mors Cabral