O Trapalhão na Arca de Noé,
de Antonio Rangel

Brasil, 1983


Fruto de um breve divórcio na carreira dos Trapalhões, este filme marca o único esforço individual de Renato Aragão depois da marca dos Trapalhões estar concretizada como o quarteto formado com Dedé, Mussum e Zacarias. No mesmo ano, os três montaram uma produtora que realizou o filme Atrapalhando a Suate. Como nenhum dos dois filmes atingiu os resultados desejados, menos de um ano depois da briga já estariam juntos novamente realizando filmes como Os Trapalhões.

Os problemas desse Trapalhão na Arca de Noé são muitos. A começar por um enredo que tenta ser didático (sobre a importância da proteção dos animais, bem de acordo com a expansão do pensamento ecológico que marca a década de 80), mas que é incrivelmente confuso: nem os heróis nem os vilões têm exatamente um propósito claro, e a trama evolui baseada em tamanhos chutes que é incompreensível como o filme pode ter tido 5 roteiristas. No início parece querer enveredar por uma paródia (ou melhor, aclimação) de Indiana Jones. De repente, temos uma cena de perseguição de carro completamente despropositada e um bizarro corte para o Pantanal. A encadeação de cenas é caótica. Num certo momento, por exemplo, a heroína (aqui interpretada por Nádia Lippi) foge prometendo tentar libertar o mocinho (mais uma vez, Gracindo Junior). Pois bem, na cena seguinte ela está num Rolls Royce dando entrada numa pousada, onde tomará banhos de piscina como qualquer outro hóspede abastado, sem que entendamos qualquer coisa sobre suas motivações.

A única forma de entender cenas como essas é pela necessidade do merchandising da tal pousada, e aqui começam a entrar em cena questões como essa, que marcam a entrada de um novo pensamento que é o que vai dominar o cinema dos Trapalhões (e de sua sucessora Xuxa) a partir do fim dos anos 80: o primado do merchandising, o didatismo substituindo a crença na fantasia e na comédia, e a realização de um produto apressado e sem acabamento algum, seja no roteiro ou na realização. Não por acaso, o diretor deste filme (que também não por acaso só dirigiu este filme com algum dos Trapalhões) é oriundo da TV.

À parte os problemas gravíssimos de roteiro, que tornam o filme quase incompreensível e incrivelmente tedioso, a realização não ajuda. Mistura uma tentativa de cinema fantástico de fazer inveja a Ed Wood, com uma das mais bizarras "criaturas" já vistas desde o clássico Godzilla (o "dinossauro" Papangu) com uma completa inadequação a criar qualquer tipo de clima: o filme não é engraçado, não é fantasioso, não é romântico, não é de ação. Por isso mesmo, todos os atores parecem perdidos em seus registros, cambaleando em cena. O Papangu, por exemplo, só pode ser aceito em duas circunstâncias: assumido em sua precariedade e tornado parte de uma paródia de gênero; ou dedicado a um público de menos de cinco anos de idade. Nenhum dos dois é a proposta do filme, que não funciona na chave da paródia e é discursado demais para interessar um público tão jovem.

Finalmente, e é essencial apontar que, sem seus três escudeiros, Didi parece completamente fora do ambiente. Não há os companheiros de cena com os quais interagir e dar sentido ao personagem. Tenta-se colocar Sérgio Mallandro como um contraponto cômico, mas o resultado é tão desastroso que a impressão é que seu personagem foi quase todo cortado na montagem.

Um filme equivocado em quase todos os aspectos, Trapalhão ainda tem um valor histórico quase hilário que é a aparição em dois planos finais, sem falar qualquer palavra, de Xuxa (ainda) Meneghel. Mais próxima dos tempos de modelo da Playboy do que de Rainha dos Baixinhos, é interessante pensar que o filme termina com ela e Didi embarcando numa nave para povoar novos planetas. De fato, a união dos dois gerou pequenos filhos mutantes: o bisonho cinema infantil dos anos 90/2000, que enterra de vez a humanidade do cinema burlesco e de sonho dos Trapalhões.

Eduardo Valente