Anchietanos



Tive a oportunidade de colocar Anchietanos – episódio de Comédia da vida privada que Jorge Furtado dirigiu para Globo – em duas listas de maiores filmes dos anos 90 (uma, inclusive, aqui na Contracampo). Hoje, após a vitória de Lula nas urnas, as razões ficam ainda mais claras para mim. Em certa medida, para felicidade geral da democracia brasileira, podemos dizer que o alvo específico desse filme-episódio para a tevê ficou datado. Isso não diminui em nada o valor desse trabalho; apenas reflete meu otimismo quanto às futuras relações entre mídia e poder no País.

Até onde sei, o episódio foi levado ao ar sem passar pela direção da Rede Globo. E quando a emissora viu, indo ao ar, já era tarde. Tudo estava muito claro. Não entendia quem não queria o processo de invenção mediática de um candidato de direita (sem base social para que possa surgir de outra forma) e a destruição televisiva do esquerdista (na chave moralista, como Lula em 1989): o papel da mídia ficava ainda mais evidente para um País que viu Fernando Collor ser inventado pela tevê nativa e, mais tarde, depois de uma minissérie de Gilberto Braga (falo de Anos Rebeldes), assistir esse mesmo presidente conduzir Roseane pela mão até o helicóptero. O problema está, como sempre, em aceitar como normal a idéia de que podemos "assistir" a política: uma idéia muito presente em nossa cultura liberal, e lida de forma positiva em bons jornais e revistas semanais. O povo assiste a política, ele não a faz: se ele assiste, há uma imagem. E, se há uma imagem, há quem a manipule por um bom cachê. Eis o centro de Anchietanos, de Jorge Furtado.

De um lado, Murilo Benício como o publicitário gente boa, humanista (talvez até vote no PT) mas que, movido por um senso de competição e profissionalismo (para mostrar como essas categorias não são isentas) faz a campanha do direitista Davi interpretado Luiz Fernando Guimarães. Não bastasse ser um cara legal e sacana ao mesmo tempo, Benício é um sujeito boa pinta por quem Andréa Beltrão se apaixona. E mais: ele é narrador do episódio e irá, no fim, reencontrar o velho colega de juventude (dos tempos do abastado colégio Anchieta), o esquerdista opositor de David nas eleições (Matheus Nastergale).

Ao contrário do cinema brasileiro anos 90 (pré - Cidade de Deus), Anchietanos é um filme (permitem chamá-lo de filme?) oportunista - no bom sentido. Há um senso daquilo que importa filmar, como raramente sentimos nas "pesquisas estéticas" do cinema nacional. E esse senso não é temático como os antagonistas do realismo socialista (espécie de viúvas de um debate morto) iriam logo acusar, mas um avanço formal, profundamente formal. Sentimos aqui a influência do cinema italiano, vindo mais pelo roteiro que pela direção. A direção de atores ainda é um pouco dura, como sempre em Furtado, mas o desempenho de todo o elenco é notável. A narrativa é um ponto alto: ágil, dinâmica (pleonasmos...). O final – em deslize de melodrama – "pune" Benício através do amor perdido. Mas Furtado é sutil o suficiente para deixar no ar o verdadeiro julgamento do caráter do personagem. Afinal, além de narrar o filme e convidar a identificar-nos com ele, Benício foi capaz de decidir as eleições de Porto Alegre através de um PLAY-REC na ilha de edição. A democracia mediática é muito frágil, tão frágil quanto o caráter desse personagem de Benício.

Quando assisti ao episódio fui pego – talvez como a Globo – desprevenido. Nos quarenta minutos ou mais desse "telefilme" – que Furtado um dia teve a sorte de ver recusado num concurso de longas para cinema – entendi bem rápido que certos sentimentos graves podem ser transmitidos mesmo numa montagem ligeira, que a manipulação é uma realidade revoltante (mas um tema adequado para a própria TV abordar), e que a democracia televisiva é uma idéia realmente fundamental para o futuro. Ouvir esse idéia é uma coisa: vê-la, é outra completamente diferente.

Às vezes, a intuição geral de um povo precisa ser representada, precisa ser levada às telas, aos livros, às narrativas, para que esse mesmo povo possa reviver tudo através da ficção. E, se possível, que essa expurgação coletiva seja transmitida para 30 milhões de pessoas na Rede Globo. Perdoem meu otimismo de começo de janeiro (e de mandato do PT)....

Alfredo Manevy