A Fúria, de Brian De Palma

The Fury, 1978


Kirk Douglas em A Fúria de Brian De Palma

O sucesso de Carrie, a Estranha foi um marco na carreira de Brian De Palma, que após este filme, passou a ser considerado como um nome com potencial comercial pelos estúdios de Hollywood. Enquanto aguardava a oportunidade de realizar o acalentado projeto de adaptar o romance de Alfred Bester The Demolished Man, que tratava de uma sociedade de telepatas, e que por sinal nunca chegou a ser realizado, De Palma associou-se ao produtor Frank Yablans para dirigir seu primeiro filme com um orçamento mais folgado e que, como prática comum na indústria americana, tenta manter o realizador no mesmo terreno que havia dado certo anteriormente , o universo do fantástico e da telepatia, contando inclusive com uma adolescente que descobre seus poderes telepáticos. O diretor, no entanto, não encarou A Fúria, baseado em um romance de John Farris, como uma repetição, mas sim como a oportunidade de mais um estudo sobre o tema antes de realizar The Demolished Man, que estava em seus planos há pelo menos cinco anos, mas também para exercitar-se de forma mais ampla pelo gênero do suspense, uma vez que A Fúria não se atém somente à história da garota, mas segue outra linha narrativa paralela.

A primeira sequência de A Fúria se passa, como informam as legendas, em 1977 numa praia do Oriente Médio, onde Peter Sandza (Kirk Douglas), agente do governo americano, despede-se de seu filho adolescente, Robin (Andrew Stevens), que está prestes a regressar aos EUA para desenvolver seus poderes paranormais em uma escola especializada, sob os cuidados do também agente e amigo da família Childress (John Cassavetes). Um ataque de terroristas (árabes?, palestinos?) é responsável pela morte dos frequentadores da praia, com Peter aparentemente sendo uma das vítimas, enquanto Childress consegue retirar Robin do local. A seguir vemos que o ataque não passou de uma farsa, coordenada por Childress, para eliminar seu colega. Mas Peter sobrevive e foge ao perceber a armadilha, não sem antes ferir Childress no braço com um tiro de metralhadora. A ação se transfere para outra praia, Chicago em 1978, onde duas jovens, uma delas Gillian (Amy Irving, emblematicamente a sobrevivente do ataque final de Carrie, a Estranha), passeiam, sendo seguidas pelo desengonçado Raymond (William Finley). Este vai para um telefone público e se comunica com Peter, dizendo ter encontrado uma moça telepata que o ajudaria a localizar seu filho. Só que a ligação é interceptada por Childress e seus homens, que descobrem Peter em um hotel e vão até ele. Peter consegue fugir, enquanto Gillian começa a descobrir seus poderes e ingressa em uma escola para paranormais. Peter, em sua fuga e eterna busca, recebe a ajuda da antiga namorada Hester (Carrie Snodgress), professora na escola de Gillian. Esta começa a desenvolver uma ligação telepática com Robin, que descobrimos haver passado anteriormente pela mesma escola, que é controlada por Childress e utilizada como fornecedora de mão-de-obra paranormal para um órgão secreto do governo americano.

Temos, então, dois protagonistas de caracteristicas distintas, cujas trajetórias irão se cruzar à medida que se desenvolve a ação. Primeiro Peter, que se encaixa como uma figura emblemática na obra de Brian De Palma, a do herói (ou anti-herói), que luta solitário contra um mundo que lhe é totalmente adverso. Neste perfil podemos encaixar o Winslow (William Finley) de O Fantasma do Paraíso, a já citada Carrie (Sissy Spacek), Jack (John Travolta) de Um Tiro na Noite, Eriksson (Michael J. Fox) de Pecados da Guerra, Carlito (Al Pacino), de O Pagamento Final, Rick Santoro (Nicholas Cage) de Olhos de Serpente e, mesmo contando com ajuda de uma equipe, Elliot Ness (Kevin Costner) de Os Intocáveis e Ethan Hunt (Tom Cruise) de Missão Impossível. Em diversos momentos do filme, De Palma acentua visualmente a solidão de Peter, quando mostra sua figura perdida em uma paisagem infinita: seja no mar, após o ataque na sequência inicial; seja sozinho nas ruas de Chicago, após fugir de hotel e se esconder no apartamento de uma família, de onde sai com um tosco disfarce de velho; seja acompanhado de Hester em uma caminhonete, parada no alto de um edifício garagem.

Já a outra protagonista, Gillian, é certamente prima-irmã de Carrie, mas guarda uma personalidade bastante diversa de sua antecessora. Ao contrário desta última, um poço de ingenuidade, criada num mundo de alienação, e discriminada pelos colegas, Gillian é uma moça inteligente, equilibrada e integrada. Procura entender e dominar seus poderes, sentindo-se torturada pela presença deles, uma vez que sempre que estes se manifestam, levam a pessoa próxima a sangrar. Curuosamante, uma das primeiras manifestações da paranormalidade de Gillian se dá, como em Carrie, a Estranha, numa retaliação a uma colega que a torna alvo de deboche. É como se , aproveitando a última sequência de Carrie, na qual a mão da protagonista puxa Amy Irving para dentro de seu túmulo, em A Fúria este momento de sonho se concretizasse, com Amy/Gillian assumindo seu lugar. Só que, enquanto Carrie acaba por executar sua retaliação utilizando seus poderes de modo instintivo e quase irracional, Gillian hesita o máximo em usá-los contra outrém, só o fazendo ao final, contra Childress, quando a premência de vingança e de sua própria sobrevivência tornam o fato inevitável.

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Mesmo sém querer reduzir Brian De Palma ao batido clichê de imitador de Alfred Hitchcock, é inegável a influência deste em sua obra, assim como de outros gigantes do cinema, como Orson Welles e Fritz Lang. Mas, principalmente neste momento da carreira de De Palma, Hitchcock se faz presente, não somente na confecção de planos e sequências, mas também na construção de climas e personagens. Seja na trajetória do personagem Peter, cujo drama pessoal torna-o inserido em um complô de proporções infinitamente maiores, como o personagem de Cary Grant em Intriga Internacional; seja na utilização do humor, notadamente nas cenas onde se dá a fuga de Peter, quando este se esconde no apartamento de uma desconfiada família, recebendo a ajuda de uma engraçada velhinha, ou quando ele sequestra um carro de polícia, levando ao desespero a dupla de guardas responsável pelo veículo. Como ocorre com frequência, De Palma retrabalha sequências emblemáticas da obra de seu mestre, seja reproduzindo o plano-clímax da Estátua da Liberdade em Sabotador, quando, ao tentar salvar seu filho, Peter o segura pela mão no alto do teto da casa onde Childress o mantinha recluso. Também vemos o aproveitamento dramático de um parque de diversões, remetendo a Pacto Sinistro, quando Robin, ao ver um grupo de árabes, leva um brinquedo ao descontrole, causando a morte desses, numa inconsciente tentativa de vingança contra o que acreditava ser a morte de seu pai.

Esta sequência do parque marca uma importante virada em A Fúria, pois se até então o filme fora marcado por um clima equilibrado de suspense, à moda de Hitchcock, passa a assumir de forma crescente as características de um terror bastante explícito, com uma narrativa cada vez mais acelerada e objetiva. O momento no qual Peter resgata Gillian do colégio é primorosa, com a útilização de slow motion, pontuada somente pela música de John Williams, cortada pelo ruído da freada de um carro, que causará a morte de Hester. De Palma acentua apartir de então o clima trágico, pelo qual vemos que Peter não consegue fugir do destino de causar destruição àqueles que mais ama. Seu filho Robin, por sua vez, havia se tornado uma máquina de destruição, uma nova Carrie, que mata irracionalmente e vingativamente, como ficou marcado na sequência do parque de diversões. A casa onde é mantido por Childress é mostrada como um cenário assustador e quase gótico e vemos o vilão como uma figura demoníaca, que vampiriza suas vítimas, fazendo delas praticamente monstros, e é um monstro, e não mais seu filho, que Peter encontra ao finalmente entrar na casa para salvá-lo. E mais uma vez o trágico se manifesta, levando a busca de Peter a uma conclusão desconcertante e inesperada, apesar de coerente. A bombástica sequência final, na qual Gillian se vinga de Childress, é de uma sanguinolência visceral e explícita, que nada fica a dever a um Lucio Fulcci, com De Palma concretizando aquilo que nosso companheiro Bruno Andrade definiu como "um cinema de exageros", acentuado pela onipresente mas nunca deslocada trilha musical.

O que torna A Fúria ainda mais assustador, apesar dos exageros, é saber que este filme de 1978 manifesta no mundo de 2003 uma atualidade impressionante, quando a "América de Bush" não parece poupar em recursos, manipulações e armas para concretizar seu domínio econômico e sua luta contra o "Império do Mal". Quém sabe quantos Childress não existirão no mundo real?

Gilberto Silva Jr.