Do
inocente prazer de ver gente morrendo afogada

O Destino do Poseidon (The Poseidon adventure), de Ronald
Neame (EUA,1972)
Minha primeira
dificuldade com esta pauta, na qual discutiríamos filmes "ruins"
que, apesar de seus defeitos, apreciamos ou permanecem de certa forma
em nossa memória afetiva, podemos estabelecer uma série
de questionamentos. O principal deles vem da dificuldade em se definir
o que é realmente "ruim" e da diferente percepção
deste conceito. Por exemplo, ao comentar sobre a idéia em um grupo
de amigos não-cinéfilos, estes citaram como filmes "ruins"
de seu agrado Aventureiros do bairro proibido, de John Carpenter
ou Gatinhas e gatões, de John Hughes, já discutidos
com seriedade pela Contracampo e apreciados por boa parte de seus redatores.
Por outro lado, também causou espécie o fato de que Grease
ou O destino do Poseidon, cercados de um certo sucesso popular,
pudessem ser considerados "ruins". Podemos concluir que, para
muitos, os méritos de um filme seriam respaldados por um certo
êxito comercial, aliado a uma "seriedade temática"
ou uma produção dentro do padrão milionário
hollywoodiano. Da mesma forma, ao apontarmos determinados filmes como
"ruins", poderíamos reproduzir uma série de pré-conceitos
reinantes em parcelas da crítica, os quais nossa revista quase
sempre procura evitar. Então, ao invés de falarmos em filmes
"ruins", me parece mais interessante pensar em filmes que não
costumam ser apreciados como objeto sério de estudo ou análise
crítica.
Caímos, então,
num curioso mergulho no tempo, retornando a um passado (distante ou não),
no qual éramos capazes de apreciar um filme com uma certa inocência,
nos preocupando apenas com sua capacidade de nos manter atentos por cerca
de duas horas, contando uma história envolvente ou despertando
emoções. É certo que este mergulho, para várias
gerações de brasileiros, inevitavelmente trará à
tona a memória dos filmes dos Trapalhões. Mas como estes
merecem ser discutidos à parte, vamos um pouco mais fundo. O mergulho
acabou por me levar ao cineclube do Colégio Militar do Rio de Janeiro,
vizinho à minha casa, onde, lá pelos idos de 1977 ou 1978,
eu, então com 12, 13 anos, e a garotada da minha rua, íamos
nas tardes de sábado assistir filmes que já se encontravam
fora de circulação no circuito (lembrando que naquela época
não existia vídeo-cassete e os filmes demoravam pelo menos
cinco anos para chegar à TV), muitas vezes com censura 14, 16 ou
até 18 anos (curioso pelo fato de estarmos em um órgão
militar, em plena ditadura, e não haver fiscalização
etária). Não eram exibidos filmes do chamado circuito de
arte, mas produções americanas em cópias 35 mm. Mesmo
assim, rolava muita coisa legal, e me lembro de lá ter assistido
Os três dias do Condor, Jovem Frankenstein e Irma
la Douce (este último numa cópia em cinemascope). Ou
o horror dos horrores, sério candidato a pior filme da história,
a refilmagem musical de Horizonte perdido, na qual Peter Finch
e Liv Ullman dublam canções de Burt Bacarach. Confesso que
na ignorância pré adolescente, até gostei um pouco
deste, mas não dá para enquadrá-lo na pauta, pois
tempos depois revi na televisão, me apercebendo de sua total podridão.
Mas o que mais gostei na época e que até hoje me desperta
um certo prazer foi uma fita que, por sinal, se encaixa mais que perfeitamente
na metáfora do mergulho: O destino do Poseidon.
O chamado cinema-catástrofe
(ressuscitado nos anos 90), era um dos baluartes do cinema americano da
época e as pessoas lotavam cinemas para ver gente morrendo em incêndios,
desastres aéreos ou terremotos enquanto uns poucos justos eram
salvos por astros de carisma inquestionável (Steve McQueen, Paul
Newman, Charlton Heston), em filmes quase sempre sob a chancela do produtor
Irwin Allen. Dirigido em 1972 por Ronald Neame, O destino do Poseidon
é hoje considerado o melhor exemplar do gênero. O Poseidon,
no caso, é um transatlântico que, atingido por uma onda gigante
durante a festa de reveillon, vira de cabeça para baixo e, os sobreviventes,
para se salvar, procuram atingir a superfície, percorrendo o navio
revirado. E o que me fez realmente gostar do filme então foi o
permanente estado de tensão em que me deixou durante toda a projeção
perguntando: "Porra, mas o que é que vai acontecer agora?!".
Confesso que não me esqueço de sequências que me provocaram
um suspense genuíno, de acelerar o coração, como
a na qual a senhora idosa e obesa vivida por Shelley Winters (em todos
os sentidos uma grande atriz, numa atuação genial, que lhe
rendeu indicação ao Oscar), prende a respiração
e nada em um compartimento submerso para descobrir a próxima porta
a ser atravessada por seus companheiros, o que acaba por lhe custar a
vida. Ou aquela no qual o herói-astro em questão (Gene Hackman,
vivendo um padre desencantado) abre, em meio a chamas e também
com o sacrifício da própria vida, a última comporta,
o que levará o restante do grupo à esperada salvação.
É lógico que, vistas hoje sob a ótica da "seriedade",
tais situações se tratam de uma enxurrada de clichês,
apresentadas em um roteiro episódico. Mas orquestradas com bastante
competência.
Que me perdoem os
fãs de James Cameron, mas, em se falando de filme de naufrágio,
Titanic, com todo o seu gigantismo, sequer chega perto de O
destino do Poseidon. O namoro babado entre DiCaprio e Winslet nem
se compara ao tumultuado romance quebra-quebra entre um policial (Ernest
Borgnine) e a esposa que ele havia tirado da zona (Stella Stevens). As
mais de três horas de Titanic acabam por diluir as emoções
do naufrágio. Os "mudernos" efeitos especiais computadorizados
do filme de 1997 parecem fake perto dos efeitos mecânicos
que retraram a virada do navio em 1972. No quesito cenografia, todo o
luxo da reconstrução do Titanic não impressiona
nem metade dos sets que apresentam o navio virado de ponta-cabeça.
A trilha redundante de James Horner é nada comparada aos eficientes
sons criados para o filme de Neame por um John Williams qua ainda não
havia se transformado numa espécie de compositor oficial de Hollywood.
Somente as canções românticas dos dois filmes, ambas
premiadas pela Academia, se equiparam em ruindade; The morning after
é tão chata e açucarada quanto My heart will go
on, mas leva a vantagem de não trazer a grotesca Celine Dion
no pacote.
Pouca gente se deu
conta do fato, mas O destino do Poseidon teve uma refilmagem não
creditada em 1996: Daylight, estrelado por Sylvester Stallone.
Este filme, no qual um túnel submerso ligando as cidades de New
York e New Jersey é inundado, repete praticamente todas as situações
do filme de 1972, inclusive a da coroa ex-campeã de natação,
no caso Claire Bloom, que atravessa um recinto alagado. Mas mesmo trabalhando
com os mesmos clichês, não consegue repetir a eficiência
de seu filme-matriz, e acredito que dificilmente será um espetáculo
a ser lembrado 30 anos após seu lançamento. Entretanto não
podemos esquecer que gostos e juízos de valor se alteram com o
tempo. E por mais improvável que seja, não é de todo
impossível que dentro de décadas os valores sobre a análise
de filmes se vejam de tal modo invertidos, a ponto de alguém, ao
escrever sobre um filme "ruim" de sua predileção,
pense em Fale com ela ou Cidade dos sonhos . E que Casamento
grego seja visto como o grande filme de 2002. Deus nos livre e guarde!
Gilberto Silva Jr.
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