Um Mundo Perfeito, de Clint Eastwood

A Perfect World, EUA, 1993

Há uma cena de Um Mundo Perfeito que talvez resuma toda o espírito da obra de Clint Eastwood. É no final, quando, depois de ver o “bom bandido” Butch ser atingido por uma bala, o xerife interpretado por Eastwood avança firme no policial autor do disparo e o acerta em cheio com uma direita irretocável. Esse é Clint, aquele cara bacana que faz tudo aquilo que sempre desejamos e que por pureza ou conveniência nos impedimos de fazer: esmurrar na frente de todo mundo um idiota, dar um soco na cara da injustiça, reparar com os próprios punhos o que a sociedade e a vida tem de mais revoltante. Melhor ainda: completar a ação com tanta graça e estilo que acabe provocando simultaneamente no público da sala, como por milagre, emoção e humor, identificação e paródia, admiração e riso. Acima de tudo, assumir a demagogia sem ser demagógico, assumir o maniqueísmo sem ser simplista. Isso tudo é Clint e seu personagem, o mais carismático do cinema atual, um personagem repleto de espírito auto-irrisório e sempre disposto a revisar sua imagem e representação.

Sim, revisão parece ser a palavra-chave. Quando Eastwood lançou Bird em 1989, uma obra sensível sobre a criação artística, foi mais ou menos como se, hoje, um cara como Shwarzenegger fizesse um filme de autor. A imagem que se tinha do ator-cineasta era de um fascista viril, quase debilóide. Talvez a necessidade de quebrar essa associação tenha feito com que Eastwood exacerbasse um pouco demais seu esquerdismo ou sua veia libertária (no lado esquerdo de sua testa) e muita gente comentou, na época de seu lançamento, que Um Mundo Perfeito seria um produto dessa necessidade. Mas nada nesse “road-movie de seqüestro”, ou “rapt-movie” parece desonesto, ou forçado.

Um Mundo Perfeito entrou em cartaz em 1993, logo após a consagração de Eastwood com Unforgiven. Foi um fracasso de bilheteria, o que é muito estranho, contando todo o apelo popular que o filme tinha, com um diretor e ator oscarizado, uma estrela (Kevin Costner) e um tema para lá de americano. Então, por que o fracasso? Talvez a resposta mais razoável seja justamente o que o filme tem de melhor, além do frescor suave e das cores de verão da América camponesa, que é a complexidade dos personagens.

Uma das maiores acusações contra o filme é a pretensa mitificação de Butch, o ladrão galã. Quem viu o filme sabe que Butch é um ladrão que fugiu do presídio de uma cidadezinha americana em pleno Halloween e que, por tentar impedir o estupro de uma dona de casa pelo seu companheiro psicopata, vai ser obrigado a seqüestrar o filho dessa mesma para garantir a sua fuga. Além de ter bons sentimentos, ele possui uma inteligência incomum e um bom-humor e simpatia admiráveis, apesar do seu olhar constantemente distanciado e de seu jeito de falar calmo demais e às vezes esquisito. Dá para adivinhar que não vai demorar muito para que o vilão boa-praça e o pequeno garotinho (que não tem pai e está no momento de certas “descobertas” da infância) vão se tornar grandes amigos. A acusação se agrava quando vemos que o personagem é interpretado por Kevin Costner, líder incontestável do sentimentalismo convencional de Dança com Lobos e do bom-mocismo à la Robin Hood. Claro que uma observação precipitada pode nos fazer pensar que Eastwood se corrompeu com o que há de pior, mas não – é preciso ter muita má vontade para não ver em Costner um bom ator (mesmo nos projetos mais insípidos) e em Butch um personagem ambíguo. O personagem de Costner é um homem bom (no sentido americano clássico da palavra), isso não há duvida, ainda mais quando uma moça agradável como Laura Dern, que interpreta uma especialista criminal que aterrissa na cidadezinha para ajudar no caso, afirma o fato a cada instante do filme. No entanto, Butch tem um passado complicado que o persegue, transformando-o nesse personagem meio fantasmagórico que acompanhamos perplexos e fascinados. O talento do diretor Eastwood vai balançar com elegância para o público essa esquizofrenia: de um lado o homem enigmático de olhar inumano, do outro, a figura humana, com suas fraquezas e virtudes. Esse é o personagem que salva uma mãe e um filho do estupro e que pretende matar um pai por não aguentar vê-lo bater no filho. O bandido tem bons sentimentos, mas quando as visões do passado traumático lhe assaltam, ele perde o controle de si. É com o mesmo medo e espanto do garotinho e dos outros personagens amarrados que acompanhamos a cena maravilhosa em que Butch, inebriado pela música calma e dançante, fecha os olhos se preparando para matar. Nessa hora, Butch e seu companheiro psicopata se equivalem - ele é um “homem mal” novamente. É o transe sublime: seu olhar está irreconhecível, concentrado em não se sabe o que, invadido por um sentimento incontrolável. A sensação é que nada, nem ninguém, poderá detê-lo. O garotinho que tanto aprendeu com ele está chorando atônito, a mulher com quem acabou de dançar reza desesperada pela vida do marido. Impossível não lembrar a antológica cena final de Unforgiven – ponto para Eastwood, e também para Costner. São sutilezas como essa, realizadas pelos dois, que fazem de Um Mundo Perfeito, por mais que a palavra possa parecer batida, um filme naturalista.

Nesse pedaço de mundo todos parecem ser fruto do ambiente. O garotinho é o filho certinho de uma mãe religiosa. De certa forma, a curta estadia com o bandido vai ser uma lição de vida, ou de uma vida, onde ele vai aprender, entre outras coisas, a roubar. Com a maior naturalidade (olha a palavra de novo) Butch vai proclamar a ele em tom sábio: “se existe algo que você deseja muito e não pode comprar, não existe outra solução senão roubar.” São dois mundos se tocando, dois universos convergindo e trocando experiências, em duas idades diferentes. O xerife, interpretado por Eastwood, e seus companheiros, são caipirões de um lugar onde a palavra t-bone move montanhas e até decide julgamentos (o que se aprende num dialogo genial). Mas cabe ao detetive do FBI dar uma de machista bagaceiro para cima de Laura Dern. Na verdade, o personagem de Eastwood é uma tremenda paródia dele mesmo, paródia da imagem viril pela qual a maior parte do público o conhece. É o eterno processo de revisão que Eastwood propõe ao publico e que confunde os críticos. Não há paradoxo equivalente no cinema mundial - uma imagem que ele ao mesmo tempo edifica e subverte, ou solidifica destruindo. Eastwood, como nenhum outro, sabe jogar o duro e o sensível.

Eastwood organiza seu filme como organizou Unforgiven, com dois núcleos de personagens – a van da equipe de policiais e o carro do bandido e da criança - rodando por espaços diferentes. Aqui um está perseguindo o outro. Na metade do filme os dois se cruzam uma vez, mas vai haver, como no filme precedente, um apoteótico encontro final. Não é preciso ser um gênio para entender que a cena inicial, exatamente como nesse texto, é na verdade a cena final, o filme funcionando em círculo. E, nesse círculo, fica uma terna paródia da América profunda dos anos 60. Fica a brisa de verão fazendo voar uma mascara de Gasparzinho. E, só para Eastwood não perder o hábito, uma irônica visão da representatividade regada por sua doce e convicta apologia da individualidade.

Bolivar Torres