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Um travelling para a frente, do mar em direção a enormes falésias na costa grega, inicia o filme (início que Luc Besson repetiria em Nikita, com o asfalto substituindo o mar, e em O profissional, cujo primeiro plano é um sobrevôo na cidade). Grécia, 1965. Imagem em preto e branco. É um prólogo. A música mantém relação estreita com as imagens: o solo de saxofone cede espaço a uma fusão que nos aproxima da costa, agora a tomada persegue os recortes do litoral. Novas fusões, novos planos marítimos e finalmente a câmera se encontra em terra firme. Jacques Mayol, o Homo delphinus protagonista do filme, surge ainda criança e pula do alto de uma pedra, para furar a água e conferir à música novo tom, mais misterioso, circunspecto, como que estudando os sons ambientes (e será assim ao longo do filme, a música sempre perdendo a melodia e tentando se adaptar ao inescrutável das profundezas oceânicas). Jacques brinca com os peixes, oferece-lhes comida, está em casa. As imagens são indiscutivelmente belas, sem narrações fastidiosas, ou seja, valem por si mesmas, por seu apelo visual. O prólogo de Imensidão azul, que pode figurar como exemplo na cartilha de uma narrativa clássica, condensa tanto a matriz psicológica quanto o esquema de ação do filme. Nele vemos a intimidade de Jacques Mayol com o mar, a competição semi-imposta por Enzo (o italiano folgado que vive em função dessa rivalidade, ainda que Jacques pouco se importe com a disputa), a morte traumática do pai do protagonista – e a reação apavorada de Enzo ao ver o rival desesperado, o que anuncia seu sentimento ambíguo com relação a ele, que é ao mesmo tempo o grande amigo e o grande obstáculo a seu orgulho. De fato, o que o filme enfileira após o prólogo, quando há um salto para 1988 (ano de produção), não foge muito ao que se tinha prenunciado. O Mayol adulto (Jean-Marc Barr antes de ser ator de Lars Von Trier ou de dirigir seus próprios filmes em digital) se tornou um recluso, alheio a quase tudo, vivendo com o tio mas enxergando nos golfinhos sua família (sim, uma espécie de caricatura do bom selvagem transposta para o universo aquático). Enzo (Jean Reno) é campeão mundial de mergulho e ostenta o título sem comedimento (afinal, ele é o protótipo do italiano exagerado, fanfarrão – e sua família o estereótipo mais antigo da família siciliana). É claro que Enzo não se esqueceu de Jacques e, portanto, vai atrás dele para persuadi-lo a participar do campeonato mundial de mergulho – uma competição em que os mergulhadores descem em apnéia o máximo que conseguem. Se cientificamente embasado ou não, pouco importa, fingimos acreditar que aqueles homens atingem 120 metros de profundidade só no pulmão. As cenas de competição reproduzem, em certa medida, o que outros filmes realizaram em cima de esportes mais convencionais, com direito até a uma câmera lenta acompanhada de música incidental no momento do primeiro mergulho do mocinho da história, sua expressão blasé contrastando com os olhares apreensivos da namorada e dos juízes, os lábios se mexem mas as vozes não são ouvidas, uma mão gesticula uma contagem regressiva e a velocidade e o som se restabelecem quando ele já está debaixo d’água. Sensacionalmente clichê. A verdade é que os estereótipos do filme são muitos. Mas o que não se deve negar é a eficácia de alguns deles, a exemplo da cena em que um competidor japonês se dirige ao local de mergulho acompanhado de uma enorme equipe que fica gritando uma série de coisas em seu ouvido, como a mexer com seu orgulho e incitar-lhe a vontade de vencer, e o mergulhador, porém, de tanto inspirar fundo acaba hiperventilando os pulmões e desmaiando antes mesmo de descer. É hilário. O que prende no filme, portanto, não é um roteiro complexo, ou uma análise aprofundada da relação do homem com o mar, como o fizeram Melville, Hemingway e Victor Hugo. Não há nada disso. Há simplesmente leveza, tramas digeríveis facilmente, um romance que nunca dá certo entre Jacques Mayol e Joana – a personagem de Rosana Arquette (expressões exageradas, desajeitadamente encantadora) –, a inevitável simpatia do personagem de Reno, a cena deles seqüestrando um golfinho para devolvê-lo ao lar-oceano, o fundo do mar em níveis onde nem mais a luz solar consegue penetrar (originando cenas plasticamente incríveis, o mergulhador pilotando um facho de luz que ilumina muito pouco, o resto é escuridão – isso bem antes de O segredo do abismo). A amizade entre Jacques e Enzo sobressai, mesmo porque a parcela romântica não se resolve bem (Jacques não consegue se sentir completo, assim como não dá a segurança de que Joana necessita). A parte final do filme, com um esperado retorno à Grécia, reforça essa idéia de um laço afetivo que os une independente das circunstâncias, depositando na volta ao local de origem a força de aproximação definitiva. Um buddy movie. O principal ponto dramático do filme é a morte de Enzo, por teimosia, naturalmente. Não adiantaram os alertas dos médicos, ele "precisava descer para ver". Daí em diante nada é capaz de manter Jacques na superfície, nem a gravidez de Joana. Ele termina fazendo o que sempre ameaçou fazer: juntar-se aos golfinhos, perder-se naquela paz e naquele silêncio (o diretor acerta em não pôr música nessa cena final, coisa que já poderia ter feito em outros momentos do filme). O par romântico se divide, o bebê representando uma interseção remanescente: um final arriscado para uma superprodução. Vale lembrar que Imensidão azul – unanimidade entre a crítica, ou seja, bola preta – possui duas versões, uma reduzida (a que circulou pelos cinemas daqui) e outra que seria o corte original do diretor, disponível em algumas videolocadoras, com quarenta minutos a mais – justamente as cenas mais detidas no fundo do mar, com menor relevância dramática, porém donas da atmosfera que tanto seduz no filme. Luiz Carlos Oliveira Jr. |
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