Nostalgia do não-vivido



Nos Tempos da Brilhantina
(Grease), de Randal Kleiser (EUA,1978)


Antes uma breve introdução sobre aquilo que pretendemos com esta pauta. Na edição 38, criamos uma pauta chamada de "A Primeira Vez que me Apaixonei", onde propúnhamos aos redatores o desafio de narrar a sessão de cinema na qual se viram descobrindo a sua paixão pelo cinema como algo que os levaria adiante no caminho que hoje os coloca escrevendo sobre cinema. A tentativa principal naquele momento era justamente tentar quebrar um pouco com a tal "aura de seriedade" que uma revista de crítica geralmente possui. Se levamos sim o cinema a sério, não quer dizer que não podemos curti-lo tanto quanto nossos leitores, ou qualquer outro espectador. Achamos que pautas como essas permitem ao leitor entender de uma forma mais próxima a formação do pensamento e do sentimento dos críticos e a sua relação com o cinema. Queríamos poder escrever em primeiríssima pessoa, acreditando ser sim interessante ao leitor saber detalhes e impressões tão pessoais dos que escrevem na revista. A principal motivação, como a de tantas coisas que fazemos aqui, é a de tornar mais próximos leitores e redatores.

Pois bem, dando continuidade, surgimos com mais uma proposta de pauta altamente pessoal e subjetivíssima. A idéia aqui foi a de buscar algo que em inglês costuma ser chamado de "guilty pleasure", literalmente um prazer culpado. A expressão refere-se a coisas que gostamos de fazer, mesmo tendo uma certa vergonha de admitir que fazemos. Bastante usada para se falar de filmes, adaptamos aqui para o nosso bom e velho "Gosto não se discute", que é uma piada de duplo sentido visto que tantas vezes surge esta frase em discussões sobre filmes, em especial com relação aos críticos. A idéia, que já deve estar meio explicada agora, é a de ver os críticos escrevendo sobre filmes que, mesmo reconhecendo no mínimo como "menores" (na verdade a palavra "ruins", apesar de forte e altamente não objetiva, foi a que usamos quando conceituamos a pauta entre nós), ainda causam algum tipo de prazer ao serem assistidos. Cabe a cada um tentar explicar e dividir um pouco deste prazer, e da mesma forma, porque acha este um filme "menor". Nem todos puderam participar, mas os que puderam certamente se divertiram, e esperamos voltar com alguma frequência a pautas pessoais como estas.

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Como proponente principal desta pauta, eu preciso partir de uma palavra que, na verdade, para mim é a única que pode explicar o fato de se gostar de algo que se reconhece como "ruim": nostalgia. Sim, porque na imensa maioria destes textos o que se verá é uma lembrança que ultrapassa tão somente o filme, e fala de um momento de vida. Quando resolvemos evocar estes filmes certamente não será pela imagem que eles deixaram por si em nossas memórias, e sim pelo momento que eles nos fazem reviver de nós mesmos como espectadores de filmes, como pessoas.

A partir deste ponto é muito interessante para mim falar de Grease que, sem dúvida, era o primeiro filme que me vinha sempre à cabeça ao pensar nesta pauta, embora eu não revisse o filme já há algum tempo. Estava longe, portanto, de conseguir racionalizar o porquê desta escolha, e para isso precisei voltar ao filme. Ao começar a revê-lo, passei a notar esta fascinante semelhança: Grease é, em si, um filme nostálgico, que parece estar lidando com a saudade de um outro tempo, um pouco como eu queria retomar com esta pauta. Um tempo mais inocente, talvez mais simples, certamente mais feliz na memória. Mas, afinal, a memória sempre encontra no passado uma alegria que de fato não estava lá quando este era o presente. E, além disso, Grease é um filme de "high school", e estes filmes são, por sua natureza, nostálgicos. Afinal, a escola é o inferno enquanto se está nela, e o paraíso quando vira lembrança. Por isso mesmo que filmes de escola fazem muito mais sucesso com aqueles que já saíram dela.

Mas, mais do que isso, tanto o filme para mim quanto dentro da sua estrutura, possuem uma noção que muito tem me interessado: a da nostalgia do não-vivido. Uma "saudade" inexplicável, porque se refere a algo que, de fato, não se viveu. Podemos ver um pouco desta semelhança se pensamos numa comparação: quando o filme foi lançado nos cinemas eu tinha 3 anos de idade. Portanto, certamente ele não fez parte da minha memória afetiva ao passar nos cinemas, ou como fenômeno de mídia. Pelo contrário, meu contato com ele sempre foi televisivo, e a partir de uns 10 anos de idade meus, e pelo menos 7 do filme. Portanto, eu me relacionava com o filme sem ele ser, de fato, parte da minha formação de geração (em oposição, por exemplo, a Goonies, Ladyhawke, Karate Kid, De Volta para o Futuro, que são filmes que me formaram e que eu vivi como fenômenos). Minha relação com ele é mais parecida com a que eu tinha com Os Embalos de Sábado à Noite ou Warriors, por exemplo: misturava uma identificação, com um enorme desejo de ser outra pessoa, de ter vivido em outra época. Ora, se pensamos no filme (que é a adaptação de um musical da Broadway, como reforçaremos mais adiante), ele também se passa num momento diferente (anos 50) daquele em que é lançado (1978). A idéia, portanto, é trazer aos jovens dos anos 70 uma certa nostalgia deste momento também não vivido, desta juventude que não foi a deles. Sobre as repercussões desta questão eu tratarei mais tarde.

Mas, além desta primeira semelhança, existe uma outra, ainda que menos direta: a história do filme nada mais é do que a de um casal de jovens que tenta reviver um "momento mágico" vivido durante férias de verão, que são as cenas que abrem o filme como um idílio. Pois bem, meu contato com Grease é muito semelhante: a primeira vez que eu o vi na TV foi numa das minhas férias de verão, no meu local "sagrado" de infância, onde o mundo sempre pareceu melhor do que em qualquer outro lugar. Por isso, pensar no filme hoje é tentar retomar esta sensação idílica destas minhas férias de verão. Foi legal descobrir isso apenas hoje ao olhar o filme, quase 20 anos depois.

Porque num primeiro momento eu pensava em duas outras coisas, que eu também retomei agora: a força da trilha sonora, com suas canções tão ao mesmo tempo kitsch e impossíveis de esquecer, canções que marcaram toda a minha pré-adolescência e que eu tenho até hoje aqui em LP. Em segundo lugar, o filme tratava de um amor jovem do surgimento até sua consolidação. E, naquela tenra idade, nada nos fascinava mais do que imaginar quando, afinal, viveríamos os nossos próprios amores, e se eles seriam como nos filmes.

Pensando por este prisma do filme romântico, ele tem um terceiro inesperado paralelo com minha vida, que pode explicar um pouco sua permanência na minha memória: o fato é que é um filme "de menina". Se lembramos da juventude, havia os filmes que fascinavam meninos e meninas (como os que já citei lá em cima), aqueles que eram certamente para os "meninos" (os de Stallone, Schwarzenegger, Willis), e os de meninas. Grease talvez escape um pouco a simplificação deste rótulo, mas se tivesse que pensar hoje onde ele se coloca, ele está mais para o lado das meninas. Neste sentido, gostar do filme representava para mim um "guilty pleasure" desde aqueles tempos. E, assim como para Danny (personagem de John Travolta) assumir seu amor por Sandy (Olivia Newton-John) ele precisa passar por cima do que acha que vai contra sua imagem perante os amigos, eu precisava passar um pouco pelo mesmo processo para ser um "fã" de Grease.

Revendo hoje o filme são estes os principais motivos afetivos que me fazem entender porque ele me é especial, porque ele me lembra de tanta coisa sobre minha vida, a maioria delas muito felizes. Mais do que o prazer das cenas musicais, ou das piadas e da atuação efetivamente emocionante de Stockard Channing, Grease é, acima de tudo, um filme que me lembra de mim mesmo, muito tempo depois, um dos maiores poderes afetivos da arte.

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Se esta descrição dá uma boa idéia de porque eu escolheria este filme como meu "pleasure", fica faltando explicar melhor afinal porque este tal prazer é culpado. Afinal, seria Grease um filme ruim? Tendo assistido novamente após tantos anos, afirmo: sem dúvida.

Antes da explicação, uma observação: um dos primeiros pontos interessantes foi ver que o filme foi realizado em "widescreen", e eu certamente nunca o vi neste formato, tendo visto algumas vezes na TV, e agora em uma gravação de VHS que não tinha o formato da tela larga. Porque isso é interessante? Porque sou um obcecado com a questão de não ver filmes fora de seu formato original, desde que comecei a levar o cinema mais a sério. E, no entanto, uma das minhas mais fortes memórias cinematográficas nunca foi vista na forma correta.

Mas nem vê-lo com as imagens como foram feitas mudaria o fato de que é um mau filme. A começar pela sua estrutura, emprestada do musical da Broadway. Ao precisar dar uma forma narrativa ao que era antes uma sequência de canções que remetia ao clima dos musicais e dos anos 50 como um todo, o filme nunca consegue este transporte de "sonho" e irrealidade (que marca um musical da Broadway) para um ambiente mais naturalista do cinema. Nem ele assume este ambiente de sonho totalmente (apenas em alguns números, que são talvez o melhor do filme todo), nem um realismo mais cinematográfico. Com isso, as cenas de transição entre as canções parecem muitas vezes forçadas, cansativas, desinteressantes, tirando muito do timing do filme, que nunca chega a tomar de assalto o espectador.

Uma das maiores provas desta contradição total que é o filme está na escalação do elenco: John Travolta era o mais jovem entre os principais atores envolvidos, e ele tinha 24 anos. Newton-John tinha 30, e Stockard Channing, independente de sua atuação excepcional, tinha 34 anos. Lembrem-se: estão todos interpretando alunos do último ano do colegial! Realmente é bastante impossível "passar por cima" desta discrepância se você tem mais do que 10 anos de idade como espectador. Este tipo de escalação pode até funcionar no teatro, com a distância platéia-palco, e com a suspensão de realidade do ambiente. Mas, no cinema, fica difícil acreditar nos pequenos "dramas juvenis" destas pessoas de 30 anos. Primeiro amor? Difícil de crer...

Outro problema do filme é a falta de imaginação do seu diretor, que não fez qualquer outro filme que seja lembrado além deste (apenas, talvez, Lagoa azul que, cá entre nós, deve estar na mesma categoria de prazer culpado de alguém...). As cenas musicais têm a força das canções, mas pouco, muito pouco na sua encenação. Assim como acontece com a maioria das interpretações, que nunca chegam a ser mais do que o clichê esperado. Em termos visuais, os clichês abundam ainda mais, como nas cenas de abertura do tal "verão perfeito" (parecendo quase uma paródia à la Corra que a polícia vem aí), ou como numa fusão entre Newton-John e Travolta que é ainda mais inacreditável. Pode haver dúvidas sobre o que for, menos sobre isso: Randal Kleiser certamente não é um cineasta a ser lembrado.

Mas há um elemento do filme que é muito mais grave do que todos estes juntos. É verdade que este elemento realmente só o olhar de 20 anos depois poderia perceber, e talvez seja o mais próximo de uma crítica que se verá aqui. Mas, o fato é que pensar a ingenuidade quase maldosa deste filme em pleno 1978 é quase inacreditável. Afinal, a volta a uma série de ideais e imagens destes tais anos 50, desta inocência juvenil, desta América tão típica, é bastante complicado de se olhar após os anos 60/70 e seus protestos, suas revoluções, e principalmente dentro do mesmo cinema americano que havia feito um Taxi Driver, um Noivo Neurótico Noiva Nervosa, ou que filmava um All That Jazz ou um Apocalypse Now. Não cabe aqui comparar as intenções destes filmes, tão distantes. Mas sim pensar neste retrato de juventude dourada, pela década tão evocada pelos americanos mais conservadores quando querem ser nostálgicos, de uma "inocência da América" que é quase enjoativa. Este esquematismo que acaba sendo bem mais do que isso, e que não deixa de ser uma antecipação da contra-revolução conservadora que se veria nos anos 80, tanto na política quanto no cinema americano.

Mas, afinal, eu não ficaria feliz com o meu pecado se ele não tivesse uma culpa realmente enorme por trás dele. Gostar de um filme que é, em última instância, reacionário, é tudo que eu não posso me pedir de evitar. Afinal, se a América certamente não era assim tão inocente quanto o filme quer fazer ver, eu nos meus 10 anos de idade certamente era. E tenho direito, então, de simplesmente curtir um filme ruim, mas que marcou tanto a minha memória.

Eduardo Valente