O Estranho Mundo de Zé
do Caixão,
de José Mojica Marins
Brasil, 1968
Composto por três episódios (O
Fabricante de Bonecas, Tara
e Ideologia), O Estranho Mundo de Zé do Caixão é um ensaio cinematográfico de difícil
correspondência com outros filmes brasileiros - de qualquer época. Irregular,
imprevisível, contraditório, este sétimo longa de José Mojica Marins está
mais próximo de um livro de contos fantásticos de Poe ou de Théophile
Gautier.
Possui uma qualidade genial: parece suspenso no ar, sem qualquer
compromisso com a contemporaneidade, e ao mesmo tempo sintoniza-se com
diversos aspectos de sua própria época. Esta é, aliás, a sensação que
de um modo geral os filmes de Mojica imprimem. O “estranho mundo” é realmente
um mundo à parte, um mundo imaginário, cinema puro, ilusionismo e, por
isso mesmo, mágica do real, cinema concreto. Como diz Jairo Ferreira via
Sganzerla: “somente o arqui-falso é o verdadeiro”.
Já no primeiro episódio, O
Fabricante de Bonecas, este deslocamento temporal e imaginário é posto
logo no princípio: estamos em 1967, numa espécie de boate, e um rock típico da época é dançado como mandavam os padrões de “mau-comportamento”.
Neste ambiente, um grupo de bad
boys liderados por Luís Sérgio Person vai se embriagando até sair
dali para praticar maldades. Resolvem invadir a residência/fábrica de
um velhinho barbudo, o tal fabricante de bonecas, espécie de Papai Noel,
que vive com suas quatro filhas jovens. Elas são praticamente a imagem
da pureza. Vestidas com camisolas brancas, cuidam das bonecas que, no
entanto, estão semi-prontas: faltam-lhes os olhos. Esta é a primeira nota
destoante no conjunto, uma nota que confere um ar sinistro a estas bonecas
cegas e a este estranho ateliê. Findo mais um dia de trabalho, as jovens
seguem em fila para o dormitório e vão dormir, veladas pelo olhar bondoso
do velhinho barbudo, que parece ter saído de um conto de fadas. Esta paz
é interrompida pela gang de
Person, decidida a roubar o velho indefeso. Os malfeitores acabam descobrindo
a mina de ouro: as mocinhas que dormem no quarto.
Este brutal desajuste entre o lado “contemporâneo” (simbolizado
pelo rock e pela gang) e o universo atemporal do fabricante de bonecas é justamente
o que dá ao episódio sua melhor coloração. Lembra, inversamente, a estrutura
de Simão do Deserto, de Buñuel
e, de resto, exprime com brilho a sensação do sonho. Mas O Fabricante de Bonecas é sobretudo um episódio de ação, na qual a
montagem paralela, a reviravolta de roteiro e a surpresa final atuam como
elementos de composição clássica - não significando que este “classicismo”,
aqui, seja sinônimo de obviedade ou ausência de experimentalismo da linguagem.
Radicalizando ainda mais tal “classicismo”, o segundo episódio,
Tara, recorre ao cinema mudo. O argumento
não poderia ser mais pueril: uma espécie de mendigo corcunda, curvado
pelo peso dos balões que vende nas ruas, mantém uma paixão obsessiva por
uma jovem loura e burguesa (intrepretada por Íris Bruzzi) e a acompanha
em suas peregrinações pelas ruas. Ele a vê fazendo compras, encontrando-se
com amigos e com o namorado e, por fim, assiste ao seu casamento, que
culmina com a trágica morte da jovem. Feito o enterro, o mendigo resolve
violar o túmulo e finalmente consumir sua cega paixão...
Tara é, a meu
ver, o mais fraco dos três episódios, tendo, no entanto, pelo menos um
plano excepcional, justo o que inicia a narrativa: vemos três mendigas
disputando com violência um pouco de lixo, até que, após uma delas coçar
a bunda estrategicamente diante da câmera, esta se desvia e filma o andar
gingado e sensual da loura jovem. A partir daí a contraposição lixo/luxo
se faz na mais intensa obviedade, sem qualquer preocupação em tornar menos
ridícula a figura do mendigo ou recusar os efeitos dramáticos mais toscos
na cena de necrofilia. Essa exasperação do ridículo sempre tende a ser
revalorizada à medida em que o filme envelhece: o que é interessante em
Tara é que se trata de uma espécie
de melodrama mexicano filtrado por um expressionismo de história em quadrinhos.
O mendigo banqueteia-se com os restos de sua paixão, e a jovem burguesa
é uma imagem-síntese da frustração.
Um banquete de carne humana é o prato principal do terceiro
e último “conto”, Ideologia.
Nele, Mojica atinge a abstração, e a distância estilística que separa
este episódio dos outros dois desarticula a aparência de “classicismo”
que até então o filme consolidava. Ideologia é experimentalismo puro, filme-ensaio,
espetáculo circense-televisivo-cinematográfico, agressão total à gramática
convencional e à correção coloquial do cinema corte e costura.
Mojica, Orson Welles do Brás, surge na pele de Oãxiac Odez,
misto de filósofo e professor, que dá uma entrevista ao vivo na televisão
para explicar suas teorias absurdas. O nome do programa é sugestivo: “Homens
que Fazem Notícia”. Os repórteres e debatedores, alguns indignados, outros
nem tanto, o interrogam sobre o amor, a razão e o instinto. A todos, Mojica
responde com frases dúbias e enigmáticas, construindo uma teoria da superioridade
do instinto sobre a razão através das comparações mais esdrúxulas possíveis.
Seu tom é o de um profeta diabólico, que nega o amor e reforça o caráter
animalesco do homem. Ao término do programa, um dos repórteres aceita
o convite de Odez para um jantar em sua casa.
O jantar é a oportunidade que Odez tem de provar suas teorias.
Um show de horrores se desenvolve diante dos olhos do repórter e de sua
namorada. Nada falta a este circo: nem o mordomo mudo e gigantesco, nem
as cenas de tortura e sadomasoquismo, nem o canibalismo e as chicotadas
violentas. Urros, efeitos sonoros e um discurso constante com o qual Oãxiac
Odez insiste em doutrinar suas duas vítimas, instauram a atmosfera de
trem do horror, de câmara de tortura. A ideologia de Odez/Zé do Caixão
é cruel: reduzir um homem à sua essência é torná-lo instrumento de seu
instinto animal. Tudo se resume, portanto, a uma intensa guerra contra
a Razão. Trabalhando com simbolismos e clichês falsamente intelectuais,
Mojica esvazia qualquer discurso intelectual psicologizante: “não tente
entender, não há nada para entender”. O resultado é o “horror materialista”
– as vítimas torturadas se matam para beber o próprio sangue e Odez e
seus asseclas jantam carne humana como animais.
Surpreendentemente, após o “fim” sobre a última cena deste episódio,
há um outro final. Raios xilográficos cortam o céu e Deus castiga este
microcampo de concentração que é a casa de Oãxiac Odez. Os raios fazem
a casa pegar fogo e sobre esta imagem, surge o seguinte letreiro: “... DISSE O SENHOR: ... e me provocaste a ira, eis que também eu farei
recair um raio no teu caminho sobre a tua cabeça e não fará mais tal perversidade
sobre todas as tuas abominações – Ezequiel – capítulo 16, versículo 43”.
Só então, surge, em fundo negro, a palavra FIM.
Este segundo final – digamos assim, oficial
- coroa o moralismo, que é a tônica dos filmes de Zé do Caixão. O moralismo,
a culpa e o medo encontram no gênero terror um universo propício. Aqui
no Brasil é interessante como esses três elementos ligam-se tanto ao terror
quanto ao sentido político do
terror. Mesmo Cidade de Deus é, nesse aspecto, um filme
inconsciente de terror. Tudo ali é culpa, medo e moralismo. José Mojica
Marins, de forma extremamente original, soube tornar explícito este terror,
que já não é mais tanto o sangue e os urros de mortos-vivos, mas a consciência
dominada, aprisionada, ávida pela tortura.
Luís
Alberto Rocha Melo
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