Delírios de um Anormal,
de José Mojica Marins

Brasil, 1978

Realizado em 1978, Delírios de Um Anormal pode ser comparado, em sua concepção de montagem, a dois gêneros: o filme musical e o filme pornô. A ação que faz avançar a narrativa é mínima, sintética, resolve-se em poucos planos e pouquíssimas seqüências, e a maior parte do filme (uns 70%) é reservada à orgia de imagens de terror típicas de Zé do Caixão. Delírios de Um Anormal é, vamos dizer, uma espécie de cruzamento entre Busby Berkeley e Ody Fraga.

“Que seus olhos não vejam o que a sua mente não está à altura de conceber”: antecipando Freddy Krueger, Zé do Caixão ressurge aqui nos pesadelos de Hamilton, um psiquiatra apaixonado pelo fantástico e que acaba enlouquecendo com suas fantasias. Em seus pesadelos, Zé do Caixão rouba sua esposa, Tânia, para com ela ter o “filho perfeito” e, assim dar continuidade à sua “linhagem superior”.

O tema da busca pela mulher perfeita está presente desde o primeiro filme da série, À Meia Noite Levarei Sua Alma (1964). Neste Delírios de Um Anormal, esta busca assume de vez um caráter totalmente paródico, pois se trata de uma alucinação de um marido muito desconfiado. Nos sonhos, Tânia é seduzida por Zé do Caixão, mas na realidade ela tenta salvar seu marido da paranóia, e procura ajuda entre os colegas de clínica de Hamilton, um grupo de psiquiatras dos mais curiosos. Férteis em imaginação, chegam à conclusão de que ninguém melhor do que o cineasta José Mojica Marins, criador do Zé do Caixão, para livrar Hamilton da assombração.

Mais uma vez, Mojica saboreia o seu discurso predileto: tudo se resume à mente do ser humano; o terror está dentro de nós porque nós podemos crer em tudo, já que não compreendemos nada... Em Delírios de Um Anormal a estrutura metalingüística aplica-se aos sonhos de Hamilton, que são justamente compostos de fragmentos de diversos filmes de Mojica, entre eles extratos retrabalhados de Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver, Ritual dos Sádicos (O Despertar da Besta) e O Estranho Mundo de Zé do Caixão. Complementam este mosaico as imagens filmadas especialmente para Delírios..., nas quais o fotógrafo habitual de Mojica, Giorgio Attili, usa e abusa das grande-angulares, no melhor estilo final dos anos 70.

Tudo isto é perfeitamente justificável do ponto de vista narrativo: impressionado com a figura de Zé do Caixão, Hamilton mistura imagens que ficaram gravadas em sua memória (dos filmes anteriores que já viu) e cria outras (as imagens feitas em 1978). A montagem de Nilcemar Leyart trata de estabelecer novas relações entre elas, de forma a criar um universo de campos e contracampos absolutamente livre e poético.

As cenas sucedem-se, então, embaladas por gritos e uivos de terror. Numa fotografia caleidoscópica, vemos pernas de mulheres em perspectiva, por entre as quais passa Zé do Caixão; vemos também rostos humanos desfigurados e incrustrados em uma espécie de ventre diabólico de onde nascem as imagens fantásticas do Inferno Branco de Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver, mitologia artesanal de um Nero cinematográfico.

Truques e fumaças, corpos que aparecem e somem repentinamente, bundas que se transformam em rostos, máscaras e caveiras que riem, ratos, cobras e aranhas, mãos amputadas, línguas arrancadas, sangue e muitos gritos. Todo este conjunto de sensações é contraposto por cenas que mostram Hamilton sonhando e acordando desesperado. As cenas de colagem de terror são por vezes muito longas e a sua estrutura um tanto repetitiva, mas a caracterização dos tipos por Mojica (em especial a dos psiquiatras) não deixa desaparecer o interesse do espectador. No entanto, nada supera a forma como José Mojica Marins se apresenta no interior da narrativa.

A representação que ele faz de si mesmo é das mais interessantes: Mojica, o cineasta procurado pelos psiquiatras, é quase uma figura perfeita do empresário bem-sucedido. Vive numa mansão, cercado por empregadas louras de uniforme azul, que lhe servem uísque e estão sempre à disposição para qualquer pedido. Sua fala é de uma amabilidade total, aveludada e educada. Simpático, é o próprio patrão liberal e generoso: como a família está viajando, de férias, ele deixa livres a área externa e a piscina de sua mansão para que todos os seus empregados se divirtam – e são vários, entre homens e mulheres. Ele mesmo, no entanto, após tomar o seu uísque debaixo de um guarda-sol, precisa recolher-se ao seu escritório, para tratar da psicose de Hamilton, assunto que muito lhe interessa. Como um daqueles cientistas exóticos, vai consultar seus compêndios: os roteiros de filmes de terror.

A missão de Mojica é convencer Hamilton de que Zé do Caixão é unicamente um fruto da imaginação doentia do psiquiatra. Durante uma hipnose, Mojica repete seguidas vezes ao doente: “Zé do Caixão não existe!” Mas Zé do Caixão sempre invade a mente de Hamilton e teima em continuar a existir, roubando-lhe Tânia para o bem de sua linhagem...

É então que o tema da perpetuação, caro ao personagem de Mojica, ganha uma especial significação neste filme-colagem. Tal como Zé do Caixão, que busca na mulher perfeita sua continuidade, Mojica realiza este trabalho de auto-compilação, buscando a perpetuação de seu próprio personagem na releitura de seus filmes e no diálogo direto com o espectador. Curador de si próprio, Mojica realiza em filme aquilo que em O Despertar da Besta ele próprio já havia gritado na extraordinária seqüência em que é entrevistado na TV: o cineasta no Brasil precisa inventar um personagem para poder sobreviver. Esplêndida auto-ironia.

Luís Alberto Rocha Melo