Carro-Forte, de Mário Diamante

Brasil, 2002


Gracindo Jr. em Carro-Forte de Mário Diamante

"O que a gente leva da vida? O que realmente importa?" Assim começa Carro-Forte, de Mário Diamante, com a voz interior de Gracindo Jr. dentro de um carro-forte, indo realizar mais uma entrega de uma quantia maior do que jamais receberia em sua nobre carreira de homem honesto e respeitador dos códigos de sua profissão. Mas o que realmente importa para Mário Diamante? Definitivamente não são as diferenças de personalidades entre os vigias do carro-forte, pois elas jamais conseguem deixar de cair no lugar-comum, numa pintura por demais clichê para tentar criar um arremedo de ficção que porventura fosse guiar o filme. Importa mais ao diretor do filme mostrar que é arrojado ao tentar transplantar uma vida inteira e seus dilemas (os do personagem principal) e, consigo, as escolhas de outras três pessoas, seus colegas. Efeitos de dissonância moral, ambigüidade, tensão? Não. Antes uma falsa impressão de modernidade, uma tentativa abortada de agilidade no manejo, uma vontade de mostrar que domina o "modo de fazer" do cinema de ação. Ou seja: Carro-Forte é mais um exemplar de filme-portfólio que, na falta do realizador em ter alguma coisa mais honesta ou sincera para dizer, serve como exercício de mestria. Não consegue.

"O que realmente importa?" A frase se repete porque é ela que permeia a trama. Gracindo Jr. e seu amigo motorista são antigos na corporação, e carregam aquele emprego com muita dignidade, mesmo que volta e meia se sintam enganados por não participarem (senão irrisoriamente) do dinheiro que carregam. Os outros dois, os seguranças, não pensam a mesma coisa. Um, negro, pensa em ficar rico pra ter "muita mulé", enquanto o outro, mais velho e aparentemente mais sereno que o colega, revela-se um traidor e apronta um golpe para ficar com todos os milhões que eles carregam. Naturalmente, como em qualquer filme-portfólio, onde a ambição e a vaidade conduzem a vontade de fazer o filme, a situação não pode ficar ali. Ela volta e meia sai do carro-forte: a) em pequenas mesagens de "bip" que são mandadas para Gracindo Jr., dizendo simplesmente "TESTE 1", "TESTE 2", etc. (Vê-se logo que o autor consultou alguns manuais de roteiro para construir um suspense desnecessário à trama); e b) nos pequenos flashbacks que partem da personagem de Gracindo Jr., pequenos flashes de vida em família, momentos em comum onde reina a felicidade e, como não podia deixar de ser, motivados a partir da frase... "O que realmente importa?" Será que de fato temos uma aproximação de tamanho poder literário quando estamos diante de decisões importantes na vida. Ou será que o que realmente importou ao realizador foi a pompa de parecer filosófico sem necessariamente ter que sê-lo?

"O que realmente importa?" Sem precisar ter o dom da predestinação, podemos já imaginar o que acontecerá: o segurança malvado mata um, mata dois, e quando vai matar o terceiro (o Gracindo Jr., como não poderia deixar de ser) dá uma de vilão de Batman, fica batendo papo até que o mocinho consiga aproveitar-se de uma desatenção do inimigo e assim ganhar sua luta de homem leal a seus princípios. Santa honradez, menino prodígio! Depois, ganha a luta de dentro do carro, o homem arma-se e abre a porta. O filme acaba. Suspense. Teria ele, num mirabolante jogo de roteiro, sido mais malandro que o malandro? Ou não, iria ele debater-se numa luta suicida contra os comparsas de seu ex-colega. Cada um que jogue suas fichas, mas aparentemente o final em aberto mais parece inabilidade do que malandragem no relato. Filme-narciso, fascinado por sua própria astúcia dramatúrgica e técnica, Carro-Forte nunca deixa de parecer estar dentro de um aquário todo tampado e cheio de água velha, onde não existe mais ar para respirar. Esse ar, a realidade e seu vigor, estão sempre longe demais. E onde não tem realidade é necessário ao menos que a ficção nos faça vê-la, o que não acontece. Mas será que ao realizador do filme isso realmente importa?

Ruy Gardnier