Viola Chinesa, meu encontro
com o cinema brasileiro


Grande Otelo e Julio Bressane em Viola Chinesa

Embora não tenha sido produzido entre janeiro e março de 1970, período de existência da efêmera e mitológica produtora de Julio Bressane e Rogério Sganzerla, a Belair filmes, Viola chinesa é considerado o ultimo fruto dessa experiência. Após dois anos de exílio em Londres, o diretor através desse pequeno filme-manifesto tenta reavaliar e examinar a ocorrência e as conseqüências provocadas pelo fenômeno Belair.

Definida por Haroldo de Campos como um terremoto clandestino que na encolha, na surdina abalou as velhas e carcomidas estruturas do cinema nacional permeadas pelo convencionalismo, a produtora ainda hoje é considerada um marco na historia do cinema brasileiro. Além de umas poucas sessões na cinemateca do MAM os seus filmes quase não foram exibidos, não chegaram ao publico porem deixaram rastros, pistas de uma nova forma de se produzir e viver cinema.

Essa nova forma é investigada por Bressane e por Grande Otelo que carrega em sua figura um grandioso painel, um quase infinito arquivo visual de nosso passado cinematográfico. Otelo, o mito, o símbolo, perambula com o diretor por um mirante vislumbrando a paisagem e tentando visualizar caminhos, estradas, saídas. O discurso emanado pela boca dos personagens se relaciona intimamente com os espaços da locação. A cidade contemplada do alto, o Rio de Janeiro, foi cenário vivo e pulsante dos filmes da Belair assim como foi palco e personagem da Cinédia e da Atlândida.

A interação com a cidade é ativa e fecundante, vista de cima, enxergada em sua totalidade ela reflete a trajetória cinematográfica dos dois personagens e as une. Essa união, essa simbiose entre Bressane e Grande Otelo traduz a relação do experimental com o nosso cinema.

Para Bressane a tradição do experimental no cinema nacional é um fino fio, quase invisível porem forte, firme e continuo que perpassa e costura toda a nossa historia. Ela se iniciou nas tomadas realizadas por Afonso Secreto em 1898 quando este filmou pela primeira vez o Rio de janeiro do paquete que o trazia da Europa e continuou através de outros abalos sísmicos secretos.Esses foram provocados por figuras como Mário Peixoto, Benjamim Abrahão e Alberto Cavalcanti.. Sentimos que esse fio paralelo que às vezes parece não ser elemento constituinte do tecido está sempre esticado e que a sua voz se escuta justamente nesse espaço localizado entre a sua falsa invisibilidade e a sua onipresença.

A operação realizada pelo encontro de Bressane com Grande Otelo possui o mesmo grau de potencia que o encontro imaginário de Oswald de Andrade e Lamartine Babo promovido em Tabu. Nesse caso Lamartine desejava fazer uma transfusão de sangue com Oswald, promover um intercambio espiritual, uma troca de experiências e sensações. Dois signos da cultura brasileira entrelaçavam-se. Aqui ocorre o mesmo, a confluência de dois elementos aparentemente dispares, a mistura de duas substancias supostamente opostas reunidas em um mesmo tubo de ensaio, o experimental e o popular.

O cinema de Bressane caracteriza-se justamente por esse procedimento, reunir em um mesmo espaço símbolos erroneamente considerados antagônicos. A relação originada por esses encontros acabam possuindo maior dimensão e força do que os próprios elementos relacionados. O que importa é a soma, a junção, a criação de uma nova substancia e não as partes separadas. Em Viola chinesa percebemos também a importância do espaço. O espaço onde é promovido o encontro. Esse espaço, o mirante do Leblon é recorrente em filmes anteriores ao Viola como O Anjo Nasceu e em filmes posteriores, Tabu, O Mandarim, Miramar. Às vezes o mesmo determinado trecho é ressaltado.

Aqui o espaço funciona como metáfora, caminhos a serem percorridos, estradas em permanente construção. Grande Otelo diz à Julinho que um dia a Belair vai ser compreendida. Os novos ventos trazidos pela Belair modificaram a paisagem e não há como ignorar esse fato. Viola chinesa é um filme "com todas as épocas no cérebro"mas que se direciona ao futuro. O futuro é a estrada percorrida por Bressane e Grande Otelo no plano final. O futuro do cinema experimental brasileiro, afinal "o cinema comercial quer a aceitação e o cinema experimental quer a sucessão."

Estevão Garcia