Tabu, um disco de vinil visual


Tabu de Julio Bressane

Um índio anuncia com uma trombeta mágica (no Tabu de Murnau) o caos que tomará conta da Terra, ou da tela. Árvores balançam solenemente ao som de canários. Sentimos a união do movimento com o cantar dos pássaros até que da banda sonora surge a música de Lamartine Babo simultaneamente com o aumento da velocidade das imagens. A imagem torna-se irreconhecível, as árvores se fundiram em uma coisa só, o começo do começo foi implantado através da vertigem do mundo. O mundo está confuso e desconexo, percebemos o ritmo da tontura e do desequilíbrio. Tudo está torto e prestes a cair. Um céu abstrato rodopia entre copas de árvores e depois se dirige ao caule e à um emaranhado de pontos assanhados, uma imagem que lembra os mitos de origem, a origem de tudo, o começo dos tempos e assim se inicia Tabu.

Todo começo é absoluto e pode ocorrer arbitrariamente. O começo é como um parto, involuntário.Tabu investiga, examina e especula a luz. A luz poética e criadora. A luz, tida como fundamento do cinema, coexiste com a luz como princípio da vida. Aliás, vida e cinema são para Bressane indissociáveis pois como ele mesmo afirma, o cinema é uma potente ferramenta para a busca da autotransformação. Ele é um precioso instrumento que o possibilita se afastar da tendência natural à mediocridade.Não que o homem carregue em seu código genético o gérmen da mediocridade mas sim que o sistema onde ele está inserido faz de tudo através de seus terríveis mecanismos para que ele seja medíocre.

Assim como a luz, a sombra também é importante e fundamental. As primeiras imagens do filme são sombras de um par de mãos. Uma delas aponta para a sombra de uma bananeira. Vemos a atuação dessas sombras ouvindo um barulho semelhante ao som emitido por um projetor antigo.O cinema também é um jogo de sombras. A última sombra-mão acaricia um chão-penumbra ambíguo, que pode ser um corpo nu de uma mulher. A luz seria o sublime êxtase e a sombra,os seres que estão aqui para desfruta-lo.

A última sombra da entrada do filme reproduz decorações de Carnaval, o que anuncia a temática da obra: as manifestações culturais e as raízes brasileiras. Como um químico, Bressane selecionou substâncias distintas e agrupou-as em um mesmo tubo de ensaio para transformá-las em uma só. Ao mesclar imagens cinematografadas pelo Major Reis com imagens do Tabu de Murnau, o autor proporcionou uma só idéia, uma só construção e conseqüentemente uma só imagem.Os índios pulam, dançam, tocam percussão, tomam banho de cachoeira e promovem um carnaval antropofágico. Sentimos o embalo do rebolar das lindas índias ouvindo as alegres canções de Lamartine Babo.

O autor além de ser um cine-químico também se revelou ser um cine-cicerone ao promover o encontro imaginário de dois signos da cultura brasileira. O encontro de Oswald de Andrade com Lamartine Babo promovido por João do Rio. A mistura sensorial do imaginário desses dois símbolos provoca a atmosfera desse filme- album. Outras figuras da época são também reunidas para formar o grupo de andarilhos que circulam pelas escadarias da Lapa. São chamados Chico Alves e Mário Reis. Manuel Bandeira é citado por João do Rio quando este declama: " Meu reino pelas três mulheres do sabonete Araxá" e aparece depois na cena do botequim. Ouvindo chorinho e tomando cerveja ele expõe a sua teoria do poeta sórdido. João do Rio também conta para Oswald a trajetória de Lima Barreto (alusão a Lima Barreto,uma trajetória, primeiro filme de Bressane).

Essas figuras estão entrelaçadas porque fazem parte do mesmo album : a cultura brasileira. A nossa cultura se relaciona com as outras, Oswald compara o nosso carnaval com a Grécia e cita o nome de alguns poetas na conversa com Lamartine."Lamartine, você é melhor que o Breton e muito melhor que o Aragon, você é mais experimental que Apollinaire".Nota-se que o popular Larmatine é comparado à autores de vanguarda. Em uma outra situação, Oswald diz "você é o James Joyce brasileiro, que tal, achas pouco?" e Larmatine numa atitude de escracho se auto esculacha respondendo"James joça".

A resposta do cantor apresenta um procedimento similar aos das chanchadas quando essas se relacionavam com a cultura do chamado primeiro mundo através de parodias. Se o nosso cinema nunca poderá se igualar ao norte-americano em níveis técnicos econômicos só nos resta utilizar essa "inferioridade" a nosso favor pela via da avacalhação. Pegando exemplares norte-americanos e passando-os pelo filtro do escracho a chanchada carioca produziu filmes que ressaltaram essa diferença. A diferença econômica que os colocam na condição de colonizadores culturais e nós na de colonizados. Se lá o protagonista de Sanssão e Dalila transita por um suntuoso cenário Hollywoodiano, aqui Oscarito em Nem Sanssão nem Dalila faz a festa em um castelo de papelão em Jacarepaguá.

Bressane penetra nesse universo metacriticamente como fez em O rei do baralho utilizando o próprio Grande Otelo como protagonista e filmando nos mesmos estúdios da cinédia. Otelo contracenava com Marta Anderson que encarnava um outro símbolo do período: a vedete. Para completar surgia de dentro dos toscos cenários o memorável Wilson Gray. Aqui outros dois grandes ícones da chanchada são utilizados, Jose Lewgoy e Cole nos papeis de João do Rio e Oswald de Andrade respectivamente. Pecas-chaves juntamente com Caetano Veloso que significa Larmatine Babo nesse álbum, nesse grande disco de vinil visual que é Tabu.

Disco de vinil visual porque aqui musica vira imagem e imagem vira música. A musica não é mais um elemento decorativo que floreia e ornamenta a cena, ela é a cena. Ela é o fio narrativo condutor. A musica ultrapassa o seu limite e se entranha na imagem tornando-se imagem. A escolha das musicas-faixas requer uma percepção sensível do tempo musical. Da mesma forma que o olho da câmera executa notas visuais, recortando diferentes detalhes em uma mesma tomada, o evento musical é retomado ao longo do filme em tamanhos diferentes. Existe o plano detalhe e o plano geral musical, ou seja, a musica que focaliza a partícula e o cosmos. A câmera é um instrumento musical.Notas são planos. Escalas são seqüências. A melodia é película. E toda vez que colocamos esse filme-album na vitrola-tela participamos de uma agradável experiência.

Estevão Garcia