Memórias
de um cinema inocente


Guará protagoniza Memórias de um Estrangulador
de Loiras, de Julio Bressane
Memórias de Um Estrangulador de
Louras, filme rodado em Londres no ano de 1971, inaugura a fase de
Julio Bressane no exterior, logo após Cuidado, Madame, sua
derradeira experiência na Belair com Rogério Sganzerla. Memórias
de um Estrangulador de Louras
pertence a um período intermediário, do qual ainda fazem
parte Amor Louco (Inglaterra, 1971), A Fada do Oriente (Marrocos,
1972) e Lágrima Pantera (EUA, 1972), filmes até
hoje desconhecidos, mesmo para o público iniciado. Bressane retomaria
a sua carreira no Brasil somente em 1973, realizando O Rei do Baralho
nos estúdios da Cinédia.
O máximo no mínimo: tal é
a concepção básica de Memórias de Um Estrangulador
de Louras. Câmera, ator, cenário, música do enquadramento,
silêncio sonoro, corpo-texto em movimento sobre tela. Optando pelo
minimalismo, Bressane acaba atingindo a multiplicidade do universo cinematográfico.
Memórias de um Estrangulador
de Louras é como
um feto que bóia, louco e feliz, no útero-Cinema. De uma
simplicidade surpreendente e inspiradora, Memórias de Um Estrangulador
de Louras deveria ser exibido nas TVs, de preferência na Sessão
da Tarde, para deleite de crianças acamadas e febris. Ao longo
de seus 70 minutos, reverberam ali ecos de uma cinemateca imaginária,
essencialmente poética. Suspense, cinema mudo, Buster Keaton, documentários
sobre animais, cinema arqueológico, super-oito e Orson Welles,
Fritz Lang filtrado por Bresson.
Memórias de um Estrangulador
de Louras é rigoroso
em sua musicalidade visual: a ação objetiva é mínima,
mas o em torno é o que conduz ao mistério. O cinema
sempre foi sonoro e qualquer diálogo pode ser imaginado pelo espectador,
ainda que não haja fala na pista de som nem cartelas com legendas.
No caso de Memórias
de um Estrangulador de Louras,
um filme sem diálogos, o gesto vem carregado de intenções
literárias, poéticas, inclusive em sua estrutura. Os longos
planos frontais que comprimem o estrangulador (Guará) num quarto
de um apartamento ou sentado na latrina de um banheiro; o close
nas mãos de Guará sendo cuidadosamente lavadas numa pia;
os planos em perspectiva e as interferências radicais na própria
imagem (a mão que treme, tal como uma bandeira ao vento, diante
da objetiva, obstruindo o rosto insondável de Guará), todos
estes recursos revelam mais sobre o personagem do que quilômetros
de diálogos psicológicos, sendo ainda uma excelente saída
para condições precárias de produção:
quem não tem som direto, caça com arquivo sonoro da BBC.
A figura do estrangulador pode ser interpretada
de diversas maneiras: impotente, louco, pervertido ou simplesmente um
pacato escritor burguês que se delicia expondo ao seu público
algumas aberrações. Nenhuma dessas hipóteses é
realmente válida, já que Memórias
de um Estrangulador de Louras
independe de um entendimento estritamente racional. O fluxo do filme é
também o do inconsciente: o flash-back e a cronologia servem
aqui como elementos fundamentais na concatenação das ações
e na criação do clima onírico. Bressane faz questão
de lançar mão de ganchos tradicionais para melhor "fechar"
a estrutura narrativa (se é que é correto falar em narrativa,
neste caso). O filme abre com a infância do personagem, desenvolve-se
na espiral de suas ações repetidas (o assassinato em série
das louras) e termina com o crepúsculo do estrangulador, agora
um velhinho de aparência inofensiva que escreve suas memórias.
Ou seja, Memórias de
um Estrangulador de Louras
utiliza os recursos cinematográficos com a sem-cerimônia
já indicada na lição de Rogério Sganzerla:
"ser acadêmico quando interessa".
Mas é no interior das ações
que se repetem, que a transformação poética das imagens
ocorre. Memórias de
um Estrangulador de Louras
faz lembrar aqueles planos wellesianos nos quais uma série de espelhos
dispostos em perspectiva multiplicam a imagem do ator, tal como ocorre,
por exemplo, em A Dama de Shangai e em Cidadão Kane.
A montagem de Memórias
de um Estrangulador de Louras
é como a ordenação desta série de espelhos
deformadores: onde reside a imagem original, concreta, verdadeira? Seria
ela de fato existente? Ou tudo não passaria de pura ficção
bidimensional, documentário inconsciente, poesia concreta de acetato?
Em Memórias de um Estrangulador
de Louras, Julio Bressane posiciona-se na infância do cinema.
Olha a realidade com olhos saltados. Balbucia palavras. Cataloga ludicamente
ruídos e músicas. Namora bem de perto a inocência
cinematográfica.
Saltemos para o Rio de Janeiro de 1980. Próximo
às ruínas dos cenários de O Gigante da América,
rodado no estúdio da Magnus Filmes (de Jece Valadão), Bressane,
carregando um Nagra e um direcional e acompanhado de uma equipe mínima
de reportagem, procura por Radar. Quem é Radar? Radar é
o apelido de Leovigildo Cordeiro, o montador de vários filmes cariocas
do Beco da Cinelândia, de inúmeras pornochanchadas e inclusive
dos filmes de Bressane. Radar, ator em várias pontas, ligado à
marginália e à polícia, é o personagem central
deste documentário inspiradamente intitulado Cinema Inocente
– a meu ver, um dos melhores filmes de Bressane.
Aqui, a "inocência" perdida
do cinema não está, como em Memórias de um Estrangulador
de Louras, na própria estrutura, na pulsação
das imagens realizadas pelo seu diretor. Ao contrário: não
há inocência alguma em sua concepção. O "cinema
inocente" do título é, por exemplo, a pornochanchada
realizada no Beco – ou na Boca –, é o cinema de Nilo Machado, o
cinema do qual o próprio Radar seria um exemplo típico.
Não há o intuito de "documentar"
tradicionalmente este cinema, tampouco de registrar imagens por si sós
reveladoras, como nos idos tempos de Bethânia Bem de Perto
(1966). Bressane busca diferenciar-se daquilo que filma. Se em Memórias
de um Estrangulador de Louras
há muita rigidez nos enquadramentos fixos, em compensação
temos também uma entrega muito grande em relação
à construção ficcional – talvez por isso a leveza
e o humor. Em Cinema Inocente, a câmera de José Sette
de Barros abole qualquer ponto fixo, qualquer rigidez na "composição"
da imagem. Bressane está em quadro, e é ele quem faz o som.
Som e imagem vão às vezes para sentidos opostos e a harmonia
dissonante que surge deste esquema é que dá o tom anticonvencional
pretendido.
Há, claro, certa impostação,
certo pedantismo na estrutura de Cinema Inocente. Em alguns momentos,
a impressão que temos é a de que o realizador só
se interessa pelo personagem central na medida em que ele serve à
criação de um determinado clima ficcional próximo
do cinema policial, do filme noir ou do suspense. Por outro lado,
a utilização das imagens de arquivo (pornôs, filmes
antigos), deixa claro que a "inocência" é sempre
matéria de um cinema naïf, "primitivo". O experimentalismo,
a poesia, a "inocência" deste "primitivismo"
acabam, por fim, se irmanando na "sintonia intergalaxial" (Jairo
Ferreira).
Mas o que justamente revela um filme como
Cinema Inocente é que, apesar da convergência, estes
vários cinemas nascem de conjunturas e de situações
de produção muito diferentes. Apesar do tom extremamente
leve e agradável e de sua inventividade às vezes fascinante,
Cinema Inocente é um filme aristocrático. Um filme
que acaba por revelar a diferença que existe entre o que se convencionou
chamar de cinema marginal (na verdade, um cinema de referências
culturais muito específicas e sofisticadas) e o cinema popular
- que já não existe mais. Bressane não se preocupa
em falar desta diferença, mas ela o trai, simplesmente tornando-se
clara, cristalina, na própria feitura de seu filme.
Em Memórias de um Estrangulador
de Louras, Bressane está diante de si mesmo, enclausurado em
uma espécie de monólogo poético. Em Cinema Inocente,
o ponto de partida é o inverso, ou seja, é o diálogo.
Ou melhor, o conflito – através do choque das imagens e dos sons.
E se em "Memórias..." Bressane tratou de estrangular
as louras, em Cinema Inocente por pouco ele não escapa de
ser estrangulado pelo próprio Radar.
Possível síntese entre essas
duas experiências que distam de quase dez anos (Memórias
de um Estrangulador de Louras e Cinema Inocente) é o
curta Viola Chinesa, realizado em 1975, também em 16mm,
com Grande Otelo, um filme-mensagem-manifesto-carta de amor lançada
ao mar para futuros monstros caraíbas.
Luís Alberto Rocha Melo
|
|