A
Virgem da Luxúria,
de Arturo Ripstein
La
virgen de la lujuria, México/Espanha/Portugal, 2002
No prológo de A Virgem da Luxúria, é proposto
um convite ao espectador. Da iluminação quente e estourada,
cromatismo obtido por tecnologia digital, à câmera elegantemente
movimentada, a passear em elaborados planos-sequências por uma cenografia
de saltar aos olhos, somos induzidos a entrar um universo em construção.
Esse mundo é de artíficos. Uma realidade exclusivamente
cinematográfica, mas não fechada em si mesma. Nesse mundo
de representação sempre assumida como tal, de forma insistente
até, a técnica eventualmente parece ser um fim em si, não
um procedimento da arquitetura cinematográfica. É sempre
um risco a ser corrido no cinema de Ripstein, a da aprensão inicial
apenas da fachada.
E a fachada aqui joga
ciscos na vista. Atores movem-se em passos coreografados, caminham pelo
cenário como se estivessem em um palco múltiplo de teatro
e cantam no meio de sequências para usar o gênero musical
como referência a ser homenageada, ainda que ironicamente. É
a mesma ironia empregada na concepção cafona, que, ao contrário
da cafonice convicta do argentino Eliseo Subiela em O Lado Escuro do
Coração 2, mantém distanciamento crítico
em relação à exacerbação da latinidade.
Apesar do artificialismo
rasgado e auto-consciente, à beira da esterilidade, há um
sopro de vida própria nesse mundo. Haverá transcendência
em relação a ele próprio e à realidade por
ele aludida? Em alguns momentos, sim, pois a vida pulsa nas imagens. Em
outros, de jeito algum, pois os artifícios, longe de serem recursos,
são o próprio efeito. A Virgem da Luxúria
é um filme bonito. Mas essa beleza está mais na plasticidade
acachapante, na superfície visual, e menos nas emoções
no interior do que vê.
Não é
o caso de reduzir o resultado à essa aparência. Nos elos
entre os personagens, surge um jogo de implicações políticas.
Há uma relação de opressão de uma prostituta
espanhola supostamente republicana, na verdade apolítica, e um
dono do restaurante auto-intulado Espanhol, assumidamente franquista,
com um garçom mexicano de origem indígena. Estabelece-se
ali uma variante da dominação do colonizador sobre o colonizado
(o garçom). Ele se dá em um nível de classe com o
empregador e em um nível afetivo-psicológico com a prostituta.
Mas nada é tão esquemático assim. O campo de forças
tem variáveis, como a paixão não correspondida da
prostituta por um lutador nativo, a humilhação empreendida
por republicanos espanhóis sobre garçom mexicano e a aproximação
do patrão franquista com esses mesmos anti-franquistas, com a intenção
de se sentir mais europeu e menos mexicano.
Paz Alicia Garciadiego,
roteirista e mulher do diretor desde O Império da Fortuna
(1985), diz ter adaptado A Verdadeira História da Morte de Franco,
livro de Max Aub, para mostrar que o México também já
recebeu imigrantes, nos anos 40, após a Guerra Civil Espanhola,
em vez de apenas exportá-los para os Estados Unidos. E somos mesmo
mergulhados em um universo de exilados. Todos querem ter outra origem
e destino nesse filme em que a libertação só é
possível no mundo da representação e da fantasia.
A arte serve aqui à uma remodelagem da realidade. Uma correção
de rota e condição para exilados políticos, culturais
e existenciais, todos à margem de seus sonhos individuais e obsessivos,
mas em busca de nobreza de espírito.
Ripstein assistiu
quando adolescente a prática cinematográfica de Luis Buñuel
em Nazarin (1958) e se tornou assistente de direção
em O Anjo Exterminador (1962). Esse contato ainda leva muitos críticos
a verem no mexicano um herdeiro direto do cineasta espanhol. É
algo a ser relativizado em textos futuros. A obra de Rispstein, composta
de 35 longas, tem rumo próprio. Sua relação com o
melodrama e a tragédia é, ao mesmo tempo, mais próxima
e crítica que a de Buñuel, que se aproximou desse universo
por necessidade, pois tinha de trabalhar dentro de certos parâmetros
no México, e não por convicção artística
como seu "aluno".
Um aluno com idéias
próprias. E desde o início, aos 20 anos, com um western,
Tempo de Morrer (1963), baseado em livro de Gabriel Garcia
Marquez, com roteiro de Carlos Fuentes. É lamentável que
no Brasil, e talvez no mundo, conheça-se pouco seus filmes "antigos".
Principalmente porque alguns de seus filmes mais instigantes, como El
Castillo de la Pureza (1972), El Lugar Sin Limites (1977) e
Cadena Perpetua (1978), foram feitos entre o início e o
fim da década de 70, antes da referência internacional em
que se transformou nos anos 80.
Poucos cineastas se
mantiveram tão ativos e respeitados nas última décadas.
Não há como ignorar sua elaboração de um cinema
autêntico e peculiar. Um crítico mexicano já definiu
o universo ripsteiniano como uma variação de histórias
sobre almas solitárias e presas à sua própria natureza.
Mas há algo ainda mais curioso a respeito do autor mexicano. Impressiona
em boa parte de sua obra como, tendo por trás uma estrutura material
modesta, ele transmite impressão de excesso. Não é
defeito, mas um conceito. Não se procura em seus filmes o ideal
industrial da perfeição e do equilíbrio com o objetivo
de ver em uma expressão a mesma eficiência de outras invenções
tecnológicas. Filmes não têm de funcionar. Têm
de existir.
Sem dúvida,
os dele existem. Busca-se a sensação de um veículo
desgovernado em sua lentidão, a levar as cenas e os personagens
até seus limites, de modo redundante, talvez para assim nos apresentar
as arestas, as sombras e as imperfeições desses tipos e
de suas representações. Daí o peso expresso por suas
imagens mesmo quando elas não mostram quase nada. É um universo
que pede novas visitas, novos olhares e novos questionamentos, caso contrário
corre-se o risco de se reduzi-lo à sua banalidade, ou seja, à
constatação de seus artifícios aparentemente sem
pulsação.
Cléber Eduardo
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