Uma Canção de Martin,
de Bille August

Em sang för Martin, Suécia/Dinamarca/Alemanha, 2002


O mal de Alzheimer é uma doença horrível e, ao mesmo tempo, altamente cinematográfica. Isto porque a completa perda de controle que ela causa, assim como as questões relacionadas à memória e identidade, são temas constantes do drama de forma geral, mas em especial de alguns gêneros do cinema, dos quais talvez o mais diretamente associado seja o melodrama. No entanto qualquer pessoa se dedicando a um trabalho relacionado a este tipo de doença em um filme sabe que terá que lidar com uma herança nada agradável que vai de exploratórios telefilmes (que passavam no nosso Supercine) aos famosos "filmes de superação" que tantos Oscars já não renderam para atores interpretando personagens psicologicamente perturbados.

Sob estes aspectos, o novo filme de Bille August até consegue alguns acertos, especialmente no que se refere ao retrato nem um pouco agradável ou redentor do que é a degradação da perda de identidade, e principalmente, a dificuldade das pessoas próximas de lidar com isso. Mas sua falha maior é tentar, sob a justificativa da criação de uma emotividade, criar drama onde apenas os fatos já são dramáticos o suficiente. Assim é que a sempre tão emocionante falibilidade humana, a criação de personagens que não sejam exemplos de virtudes completas ou vícios totais, deixa de ser aqui uma qualidade para tornar-se um fim em si mesmo. E o retrato da personagem central do filme (não o doente de Alzheimer, mas sua esposa) passa de uma desejada complexidade ao patético completo.

O filme começa muito bem, inclusive, com a criação de um interessante romance adúltero altamente sexualizado entre personagens já perto da chamada terceira idade, um tema com o qual o cinema tem lidado pouco. O trabalho com clichês de romance e insatisfação é feito com a necessária auto-ironia de saber se estar lidando com estes arquétipos chapados. A construção da rotina comum dos personagens e os primeiros e discretos sinais da doença também são filmados com sutileza e talento.

No entanto, quando a doença começa a tornar-se o centro da narrativa, August abre mão de toda sutileza e começa um jogo bastante previsível com seus personagens e dramas. A verossimilhança é descartada em nome da dramaticidade, os diálogos tornam-se discursivos em busca de uma clareza de objetivos (personagens chegam a monologar nos dizendo como sentem, o que é o maior sinal da falta de confiança de que poderíamos entender ou sentir por nós mesmos), e os mais banais golpes de roteiro entram em ação (as pistas deixadas para serem apanhadas pela história mais tarde, etc). Nada que se deva reclamar de um filme com pretensões para a manipulação e catarse do público, mas o fato é que assim ele deixa de se diferenciar dos mais banais entre os já mencionados telefilmes.

O que resta de interesse no filme fica na interpretação de Sven Wollter, dando a combinação precisa entre agressividade e falta de motivação do seu personagem doente. Parece uma ilha de tranqüilidade e bom cinema perdida numa movimentação repleta de som e fúria significando muito pouco.

Eduardo Valente