Sunshine State,
de John Sayles

Sunshine State, EUA, 2001


Há muito tempo que duas questões parecem rodear os filmes de John Sayles: a posição e as liberdades do homem médio americano cada vez mais ameaçado pelas grandes corporações e o que fazer com uma história que apesar de ser curta (e portanto recente) está condenada a uma tentativa frustrada de se esquecer, já que não se sabe bem como chegar a um acordo com ela. Sunshine State é um filme painel sobre a Flórida, como A Estrela Solitária era sobre a fronteira EUA/México e Limbo era sobre o Alaska. São todos parte de um mesmo projeto de pensar os Estados Unidos contemporâneo.

É fácil apontar defeitos no filme, existem mesmo vários. Ele é longo demais (seus 140 minutos podiam ser reduzidos em uns 30 facilmente), existem pelo menos dois personagens grandes que nada acrescentam, pelo menos outros dois interessantíssimos que nunca são desenvolvidos, há um grupo de jogadores de golfe que funciona como um coro grego comentando a ação (e explicitando o discurso do diretor) francamente canhestro, excesso de cenas reiterativas, entre outros. Todos eles podiam ser ligados ao mesmo problema: Sayles é um excelente contador de histórias quando escreve sob encomenda para os outros, mas nos seus próprios filmes nunca resolveu bem a tensão entre a tradição narrativa que herdou e uma tendência para o ensaio que o seu cinema possui. Daí, que se por um lado ele é um excelente criador de personagens, nem sempre consiga tirar as idéias que deveriam conduzir seus filmes da abstração, o que acaba levando filmes com grande potencial (Homens Armados, Fora da Jogada) a resultarem de pouco interesse, enquanto mesmo os seus melhores trabalhos (Matewan, A Estrela Solitária) tendem a uma irritante irregularidade.

È um inegável mérito do cineasta que, se reconhecemos todos os defeitos de Sunshine State, quando os créditos sobem tendemos a perdoá-los. O primeiro mérito de Sayles é saber utilizar o filme-painel. Se o formato desde Short Cuts (salvo raras exceções) virou um desgastado maneirismo de cinema independente, aqui ele funciona muito bem com os personagens apresentando comentários por vezes complementares, noutros opostos, sem que o filme trate nenhum deles como verdades absolutas (daí o coro dos jogadores de golfe parecer tão grotesco). Num determinado momento, por exemplo, ouvimos um monólogo impressionante de um velho negro sobre os movimentos de direitos civis que, reduzindo-o grosseiramente, diz algo como "sim, nós não temos mais segregação, mas antes o homem negro era dono do seu próprio negócio, agora ele só trabalha atrás do balcão". O filme não trata o monólogo como a única visão possível sobre o assunto, mas reconhece que existe alguma verdade ali. Concorde-se ou não com Sayles, ele faz algumas observações bastante consistentes sobre como as grandes empresas e a direita americana fizeram uso dos movimentos sociais e ambientais.

Uma adaptação de Enquanto Agonizo esta sendo preparada por um grupo de teatro amador, e pode-se dizer que existe algo de faulkneriano nas pretensões (nem sempre bem sucedidas) de Sayles. O seu olhar para as observações das relações raciais poucas vezes esteve tão afiado. A ilha onde a ação se passa tem duas comunidades, uma predominantemente branca, outra um antigo balneário para negros de classe média que sobreviveu quase intacto ao tempo. Ambos estão sendo assediados por grandes grupos que querem transformar a ilha num grande balneário turístico e Sayles, sem chamar muita atenção, vai mostrando as diferentes formas com que elas são traçadas.

O cemitério negro acabou no meio de um campo de golfe (a prefeitura vendeu a área envolta dele), enquanto a comunidade branca comemora seu mito fundador inventado por razões exclusivamente turísticas, a semana dos corsários, mas ninguém se importa. Nenhuma palavra é gasta com a verdadeira história, mas o espectador dificilmente deixará de especular que ela passa pelo cemitério cercado pelo campo de golfe. Sayles às vezes apresenta estas idéias com um simbolismo pesado demais (como o velho cego que não consegue aceitar a morte dos filhos), outras vezes consegue equilibrá-los bem. Mesmo quando suas idéias perdem consistência (ou sofrem com a mão pesada) a habilidade do diretor em construir uma galeria de personagens bastante interessantes seguram o filme.

Filipe Furtado