Sinfonia
do Silêncio,
de Vigen Chaldranian
Lutryan
symphonia, Armênia/França, 2001
Em uma mostra de cinema, onde a quantidade de filmes se transforma em
labirinto para cinéfilo, excelência artística é
acidente. Impossível ter mais de uma centena de obras, produzidas
em curto espaço de tempo, que satisfaçam a cobrança
por relevância estética. Os critérios para se obter
satisfação, portanto, acabam sendo relativizados. Ou então
corre-se o risco de passar a navalha nos pulsos em meio à inevitável
frustração causada pela busca de obras-primas. Uma programação
acometida de gigantismo só pode ser encarada como panorama informativo
da produção mundial. Trabalhos de países com pouca
tradição nas telas ou com rara possibilidade de circulação
estão ali menos pela qualidade e mais por uma postura política:
a de abrir espaço para expressões marginalizadas até
no já tão guetificado circuito de arte. Com alguma sorte,
ou muita sorte, dirão os céticos, pode-se sair no lucro.
É o caso da
experiência de se assistir a Sinfonia do Silêncio.
Quarto longa-metragem do diretor armênio Vigen Chaldranian, de 47
anos, cuja filmografia é composta de uma trilogia sobre seu povo
(April, The Voice in the Wilderness e Kyrie Eleison), o
filme mostra de cara sua disposição em subverter regras
narrativas. Seu início é enganoso. Um homem carrancudo e
acometido de tosse, a qual tenta curar com goles de whiskie no gargalo,
retorna de passagem à Armênia depois de 25 anos. Graças
ao hábito de se ver procedimentos dramatúrgicos consagrados,
tende-se logo a supor que ele fará um périplo pelo país,
de modo a se esquadrinhar com distanciamento uma realidade, sob a ótica
do exilado de longa data que, mesmo se sentindo ligado afetivamente às
raízes, não reconhece a terra natal e também não
se reconhece nela.
Nada disso. O protagonista,
na verdade, não circulará. Aproveitando a privatização
feita aos tapas de empresas e instituições estatais, efeito
do capitalismo primata e improvisado após o dissolução
da URSS, ele compra um hospital psiquiátrico e lá se interna
com os loucos. Não é o personagem que percorre a Armênia,
como faz Eduardo Tornaghi com São Paulo em O Príncipe,
de Ugo Giorgetti, mas a Armênia que invade o ambiente. Fragmentos
de lembranças da infância e da juventude pouco esclarecem
sobre seu passado nebuloso. Somos postos em um cenário sob efeito
de décadas de comunismo soviético, quando suas carências
eram atenuadas por outras repúblicas, e de uma transição
não menos problemática para outro sistema. Estaria nesse
estado de penúria, de insanidade, de fome, em virtude da soma entre
os dois períodos.
A Armênia é
a capital dos sobrenomes terminados em "ian". País sem
saída para o mar, vizinho da Georgia, do Irã, da Turquia
e do Arzebaijão, com o qual vive conflito territorial, tem 4 milhões
de habitantes, 70% residentes em centros urbanos. No momento, apesar do
modesto parque industrial e da concentração econômica
nas atividades pastoris, o vento é favorável. Dentre as
ex-repúblicas soviéticas, tem o segundo índice de
crescimento da indústria, atrás apenas da Moldava. Historicamente,
eles sempre penaram. Passaram maus bocados nas mãos de persas,
romanos, árabes e bizantinos. Em 1895 e 1896, foram massacrados
pelos turcos-otomanos, de maioria muçulmana, por seguirem o catolicismo.
Durante a I Guerra Mundial, nova sova dos inimigos, que deportaram 1,5
milhão de armênios para a Síria e para a Mesopotâmia,
como mostra o armênio-canadense Atom Egoyam em Ararat, outro
destaque da programação da Mostra. No plano mítico,
o país ficou conhecido por ter sido eleito por Deus para o renascimento
após o dilúvio.
Esse breve e reducionista
resumo histórico serve apenas para se entender como o peso da trajetória
de um povo, um dos mais antigos do mundo, inevitavelmente contamina as
imagens de um filme com a intenção de retratá-lo,
não diretamente, mas nesse caso por uma abordagem alegórica.
Pois é justamente a distância cultural, assim como a pouca
informação sobre aquele mundo, que favorece a relação
com o filme. Mesmo tendo algo sempre a escapar, nas simbologias de alguns
trechos, é possível sentir uma força cinematográfica,
capaz de superar esse limite. Se não há certeza possível
sobre o significado de uma personagem, uma mulher internada no hospício
que primeiro trata o protagonista como filho, depois como amante, podemos
ver nessa figura humana
um sopro de autenticidade, de ar local, de uma desordem a refletir uma
desordem maior, reproduzida inclusive na estrutura torta e fragmentada,
no som em transe, nas imagens à beira do delírio, um tanto
toscas e em sintonia com a insanidade do hospício, da História
e do país. Sinfonia do Silêncio cola-se à sua
realidade específica e, ao mesmo tempo, supera-a pelas opções
dramáticas e formais. Difícil se arrepender depois da sessão
se a idéia for descobrir algo ainda não banalizado pelas
convenções temáticas e estéticas do cada vez
menos independente cinema de periferia.
Cléber Eduardo
|
|