Prazeres Desconhecidos,
de Jia ZhangKe

Ren Xiao Yao, China/Japão/Coréia/França, 2002

Presente imperfeito

Os admiradores de Plataforma não têm muito o que se preocupar na passagem de Jia Zhang-ke da película para o vídeo digital. Na passagem, nada da adesão aos tremeliques e as afetações que a dvcam criou nas mãos de diretores dinamarqueses, franceses ou mesmo americanos. Talvez a passagem ao digital tenha até radicalizado uma certa procura que estava em curso no filme anterior, e que se concretiza em Prazeres Desconhecidos: a desfetichização da imagem cinematográfica plástica, a utilização dela como registro da passagem do tempo e de como o tempo é o elemento que nos proporciona o fim de tudo (o slogan "O tempo destrói tudo", imbecilmente utilizado para justificar "filosoficamente" o mundo de banalidade e da violência de Gaspar Noé em Irreversível, aqui fica claro sem que precisamos de nenhum elemento de choque para que o percebamos) e ao mesmo tempo é a única via de acesso à felicidade, através do "gasto improdutivo de nossos recursos" de que fala Georges Bataille a propósito de Baudelaire1. Se o cinema de Jia Zhang-ke é de difícil penetração e gosto, principalmente para aqueles mais acostumados a uma estética muito rápida e baseada nos jogos de intriga e antecipação, é porque seu cinema lida com outra percepção de tempo, que se liga com outra percepção de vida (e aí é quando vemos que entre o estético e o existencial não há nenhum fosso, mas correspondência, mediada sempre pelo estilo): Prazeres Desconhecidos não é a saga de jovens empreendedores, que fazem coisas ou estão na espera de fazê-las (como o distante primo Ferris Bueller de Curtindo a Vida Adoidado, com quem os dois protagonistas de Prazeres Desconhecidos têm tantas semelhanças – tentam aproveitar o tempo presente – quanto diferenças – ao contrário do colega iânque, eles não têm nenhuma oportunidade de futuro), mas o retrato de uma juventude chinesa desamparada, excluída do recente fluxo de capitais entrados nas grandes cidades. Na China interiorana, ao jovem só resta uma longa espera (um futuro que nunca vem) e o eterno presente como única possibilidade de fugir da angústia e se entregar no universo dos pequenos prazeres terrenos – essas, os "prazeres desconhecidos" do título.

Se Plataforma é uma amarga constatação de que o tempo vai pouco a pouco dissolvendo os sonhos e remetendo os jovens chineses à dura realidade da vida – engajarem-se em empregos tediosos que lhes garantirão uma sobrevivência mas não uma vida –, Prazeres Desconhecidos parece tentar dar uma nova chance a eles. Bin Bin, por ele mesmo, pronuncia a frase que parece ligar um filme a outro: "Não há futuro", como diz a música dos Sex Pistols. Com esse dado de antemão, os dois heróis de Prazeres Desconhecidos poderão fazer seu presente diferentemente dos heróis de Plataforma: ao contrário de uma aposta artística frustrada para o futuro, eles preferem não ter projeto, viver cada dia como uma duração dechada de 24 horas, sem dia anterior ou dia seguinte. Assim, as peripécias do filme só poderiam ser da natureza da repetição: os dias se repetem, os encontros entre amigos, as saídas com as namoradas, o confronto com os inimigos, os grandes trajetos de motocicleta... Xiao Wu, o "artesão pickpocket" do primeiro filme de Jia Zhang-ke (ainda inédito no Brasil em mostras), pode reaparecer na primeira seqüência desse filme, ser preso pela polícia logo depois, e reaparecer como agiota emprestando dinheiro para Bin Bin comprar um telefone celular para a namorada. Quanto ao próprio Bin Bin, sua relação com a namorada é da própria natureza da repetição: os encontros acontecem sempre num mesmo lugar, e a câmera captura esses momentos sempre do mesmo lugar, de frente para um sofá, ao lado de uma televisão (fora de quadro), num estranho quarto de aluguel que mais parece um aquário de vendas do que um motel.

Se Bin Bin está entregue a uma rotina mais esmagadora (seu único dilema é alistar-se ou não alistar-se no exército, e quando decide-se pelo alistamento, é rejeitado por estar com uma meningite que nem ele nem o espectador vêem), Xiao Ji leva uma vida mais agitada: apaixonado por Qiao Qiao, uma dançarina que serve de garota-propaganda para uma bebida alcóolica qualquer, ele acompanha a garota e tenta tirá-la do jugo de um empresário-cafetão também envolvido com diversos tipos de contravenção (agiotagem, formação de quadrilha). Aliás, todo o comércio do filme deriva da ilegalidade: o aluguel dos quartos para Bin Bin se dá num corredor escuro e sujo, e o próprio Bin Bin, depois do infrutífero não-alistamento, resolve abrir uma banquinha que vende DVDs piratas de filmes americanos e de grandes sucessos asiáticos numa banquinha em cima de sua bicicleta, mas não vende Xiao Wu, Plataforma ou Love Will Tear Us Apart, do diretor de fotografia do filme Yu Lik-wai, como bem nota um dos clientes de Bin Bin, que acaba comprando Pulp Fiction. O filme de Tarantino é citado mais uma vez, quando a cena inicial é mencionada como influência para o plano dos dois amigos de roubar um banco.

Voltamos então a um tema já presente em Plataforma. A vida, se é possível, é unicamente por uma arte do mambembe, pela arte da vida provisória (como sugere o título do primeiro filme, "artesão rouba-carteiras"), conquistada como prêmio a cada dia. Impossibiltada de viver com projeções de futuro, a juventude chinesa retratada por Jia Zhang-ke vive apenas um presente imperfeito, indeterminado, clowns passeando por uma cidade do interior, repetindo a cada dia uma série de percursos. A esse respeito, uma cena parece deflagradora e assume a importância de um manifesto pela repetição. Qiao Qiao tenta sair do ônibus para conversar com Xiao Ji, mas o empresário a proíbe; ao que ela levanta e dirige-se para a porta, ele empurra-a com força de volta para o banco do ônibus-camarim; a cena se repete diversas vezes, para além inclusive do que a paciência do espectador está pronta. Mesmo cansativa (e bela justamente por isso), a cena mostra perfeitamente a situação existencial dos heróis do filme: algo os leva a terem que repetir sempre um gesto, mas eles só tem um mesmo gesto no repertório, e dessa forma são sempre rechaçados de volta. Em outra cena exaustiva do filme, a motocicleta de Xiao Ji morre no meio da estrada. Ele tenta por infinitas vezes dar partida nela novamente. Cansado da repetição inútil do ato, o espectador só olha para a rodovia, que se perde ao longe em profundidade de campo. Quando o personagem por fim se dá conta de que a máquina não voltará a funcionar, ele abandona o plano, nos deixando apenas com a imagem da estrada a percorrer. De significado um tanto explícito (indefinição existencial, falta de rumos, suspensão do tempo), a figura da estrada exprime muito bem a poética cinematográfica de Jia Zhang-ke. Não será sua obra até agora baseada no dilema entre um destino inexorável que precisa acontecer (a destruição, a morte) e um tempo passível de apropriação onde só nele se poderá gozar? A corrida de um grupo de jovens para ver de perto o passar de um trem em Plataforma não será a melhor forma poética de uma tal realização?

Ruy Gardnier

P.S.: Por que a fotografia de Prazeres Desconhecidos, mesmo imprecisa no que diz respeito a tecnologia, recursos e precariedade de produção, se revela como a melhor fotografia de cinema digital feita até hoje? Ela não surpreende pela beleza plástica, como havíamos dito, mas adequa-se plenamente aos lugares que filma, preenchendo a tela sempre com uma coloração sem contraste, sempre cheia de brancos e exteriores estourados. A grandeza de Yu Lik-wai, em conjunto com Jia Zhang-ke, é construir o filme sempre em função dos planos médios, território em que o DV não granula até o ponto da feiúra (como nos primeiros planos) e nem mostra suas deficiências – até agora – de definição (como nos planos gerais). O plano médio, Deleuze já lembrava, é o terreno da imagem-ação, da adequação, ou do combate, entre personagem e meio-ambiente. Se o cinema de Jia Zhang-ke trabalha sobre a relação entre vontade (do personagem) e um destino que será sempre o mesmo (a parte do meio-ambiente), Yu Lik-wai soube fazer disso uma lição de forma cinematográfica, e de beleza conceitual.


1. BATAILLE, Georges. La Littérature et le mal. Éd. Gallimard, 1957