Pílulas
Numa
mostra ou festival de cinema, é difícil se dar conta de
tudo o quanto se exibe. Falta mesmo tempo físico para que os críticos
se debrucem sobre tudo que assistem, com igual disposição.
Por outro lado, o leitor busca saber o que sejam os filmes. Por isso,
a Contracampo resolveu criar aqui esta seção que dê
conta de alguns filmes de uma forma menos completa do que as críticas,
mas que sirva de indicação ao seu leitor, com um mínimo
de observação para que ele possa decidir seu interesse ou
não sobre o filme. Os filmes estão em ordem alfabética.
Abelhas Selvagens, de
Bohdan Sláma
Divoké vcely, República Tcheca, 2001
O argumento prometia mais um típico "pequeno" filme do Leste Europeu sobre
as pequenas vidas em pequenas aldeias, onde pouco parece acontecer mas
muito é retratado sobre a experiência humana. E o pior é que o filme realmente
é isso, mas aqui o pequeno parece pequeno demais... Não pela falta de
uma históra, de forma alguma, mas talvez até pela excessiva centralização
num grupo de personagens francamente desinteressante. Pode-se até dizer
que existe uma reflexão aqui sobre a entrada de um regime capitalista
na vida daquelas pessoas tão distantes de tudo que possa parecer uma ordem
mundial, mas esta idéia está muito nas margens do filme. Se a despretensão
e a simplicidade são qualidades deste modelo de cinema que o filme representa,
pode-se dizer que ele exagera um pouco na dose, em ambos os casos, tornando-se
bastante tedioso e comum. (Eduardo Valente)
Almas Caridosas,
de Thomas Bardinet
Les âmes câlines, França, 2001
A maior pergunta que desperta este Almas Caridosas é o porquê do
seu titulo já que as personagens que habitam seu mundo podem ser muitas
coisas (interesseiras, recalcadas, burras, etc), mas com certeza não caridosas.
Trata-se de uma comédia de erros bastante boba, o que de qualquer forma
poderia render um filme interessante ou pelo menos razoável, mas que aqui
logo descamba para um ritual de humilhações com o intuito de punir os
personagens pelos seus comportamentos. O humor ocasionalmente até funciona
(o que salva o filme de ser insuportável), mas ao final, Almas Caridosas
só se soma a grande lista de filmes da Mostra que todos logo teremos esquecido.
(Filipe Furtado)
Amores e Despedidas,
de Aku Louhimies
Kuutamolla, Finlândia, 2002
Se este Amores e Despedidas tem algum interesse é pelo quanto ele
nos lembra um certo tipo de cinema comercial envergonhado que vem sendo
praticado por aqui. Uma comédia romantica que quer ser "inteligente",
tão sem graça quanto óbvia e totalmente frustada dentro das suas pretensões
de ser um produto diferenciado. Somos apresentado ao mais do mesmo deste
tipo de filme, coadjuvantes esquisitos, dezenas de citações a outros filmes,
personagens com hábitos que destacam a nacionalidade do filme, diversos
encontros e desencontros que o diretor constroi de forma a desesperadamente
tentar dizer algo, mas que tirando rarissimos momentos parecem não ter
nenhuma relação com a vida. Enfim, o nada. (Filipe Furtado)
Angela, de Roberta
Torre
Angela, Itália, 2002
Definitivamente a diretora Roberta Torre tem algum talento para o audiovisual,
para a composição de imagens emocionalmente fortes mantendo sempre a elegância.
Angela começa como uma questão de família, centrando-se em como funciona
a vida daquela mulher dentro de uma indústria clandestina, a do tráfico
de drogas. O mundo das drogas recebe um olhar pessoal, em primeira pessoa,
à maneira de R Xmas de Abel Ferrara. Vemos os rituais para fugir
da polícia, as relações entre os traficantes, o jeito como a mulher é
retirada das decisões (afinal, estamos na sociedade italiana...). Lentamente,
portanto, o filme rápido tende para um In The Mood For Love meio
capenga, com a chegada de um novo parente para trabalhar no negõcio. Ele
se aproveita que a linda Angela não recebe o tratamento que deve ser dado
a uma mulher daquelas ("há quanto tempo você não sai para dançar?") e
começa a nascer um caso proibido, que pode colocar tudo a perder. Filmada
por vezes como uma símile do filme de Wong Kar-wai (mesmo tema musical
se repetindo, o amor impossível se traduzindo por uma beleza visual impressionista),
a segunda parte do filme é cansativa e pouco convincente, resvalando num
sentimentalismo e numa simbologia um tanto piegas. (Ruy Gardnier)
Antofagasta, El Hollywood
de Sudamerica de Adriana Zuanic
Chile, 2002
O documentário
reconstitui os bastidores de um ciclo regional de cinema chileno, nos
anos 20, cuja produção era desenvolvida na cidade do título, situada no
litoral norte do país. Alinhava informações sobre a cidade e sobre os
personagens desse universo, com imagens dos filmes realizados e depoimentos
de atores/realizadores. O compromisso é com a informação e com a postura
política-histórica, esta a serviço da construção de uma memória retalhada
e ainda visitada predominantemente pelo ângulo folclórico. Pretensão estética
não há. A linguagem é caretona e apoiada na velha luz sépia, de modo a
se dar idéia de álbum de família coletivo. No entanto, tem seu interesse.
Reflete uma característica sintomática do cinema sul americano, desenvolvido
por iniciativas de empreendedores, mas soterrado por dificuldades econômicas
e pelo subdesenvolvimento tecnológico, portanto, sempre interrompido em
sua continuidade histórica. Ao falar de uma aldeia cinematográfica, diz
muito de todo o continente. (Cléber Eduardo)
Antonia, de Mariano
Andrade
Antonia, Chile/Espanha, 2002
Quando os filmes sul-americanos tentam espanar a poeira de exotismos grudada
à imagem do continente, tendem apenas a reproduzir características manuseadas
por europeus e americanos, sem no entanto dar um toque regional à pretensão
universalizante. Antonia é mais uma vítima desse equívoco. O título
refere-se à uma funcionária de galeria que, exemplificando o clichê da
mulher moderna, é financeiramente emancipada e emocionalmente dependente.
Sem saber como lidar com sua gravidez indesejada e estressada com o trabalho,
ainda tem de resolver se dá o pé no namorado ausente e se resgata um problemático
amor do passado, agora às voltas com a polícia e com atividades terroristas.
Antonia quer companhia masculina
para dividir o centímetro quadrado da cama e ouvir o relato de seu dia
a dia. Mas é tão nhem-nhem-nhem que, a certa altura, não há como ser solidário
com ela. Essa variação andina e choramingona de Bridget Jones,
sem o espírito autoparódico do modelo inglês, é tocada por um texto de
novelão rocambolesco e estética impessoal. Emprega luz de comercial cafona,
possui cenas filmadas sem habilidade e exibe movimentos de câmera pretensamente
suaves, porém pesados como a Tonha. (Cléber Eduardo)
A Bomba, de Leonel
Vieira
Portugal, 2001
É difícil nos primeiros minutos entender exatamente o que Leonel
Vieira pretende com este filme. O tom parece variar entre um humor francamente
chanchadesco, misturado com um encadeamento de tramas paralelas e com
um arremedo de filme de ação que deixam o espectador meio aturdido. Depois
se revela a verdadeira intenção do diretor: fazer uma grande sátira, que
passa essencialmente pelo papel da televisão no mundo de hoje (e usa em
especial o formato dos "reality show" para isso), mas que vai sobrar para
muitos outros pontos do dia-a-dia português. Neste painel, algumas alfinetadas
efetivamente funcionam (como as que tematizam a incapacidade da polícia,
por exemplo, ou as que ridicularizam os expedientes emocionais da TV),
enquanto outras são francamente equivocadas. É verdade que não se consegue
perder a sensação de estarmos assistindo a um longo esquete de um similar
do Casseta e Planeta, mas pelo menos não é um dos esquetes mais insuportáveis.
Porém, o maior problema desta opção de humor é que nos é pedido que acompanhe
o "drama" de um grupo de personagens ao mesmo tempo em que fica claro
que são apenas meios para compor piadas. Em algum momento isso acaba levando
o espectador ao mais franco desinteresse, pois não há qualquer possibilidade
de identificação. Este problema de ordem dramatúrgica o filme não soluciona
nunca, mas pelo menos diverte ocasionalmente e não chega a entediar. (Eduardo Valente)
Boteco Toda Noite, de Félix
Olivier
All Night Bodega, EUA/França, 2002
Uma câmera digital com imagem particularmente feia acompanha a vida de
uma adolescente dominicana no Harlem espanhol, Nova York. Seu único interesse,
o canto, sai de sua vida quando ela chega atrasada na aula e descobre
que uma outra menina, mais chegada ao professor, roubou seu número. Indignada,
passa a ficar cada vez mais indisposta com sua mãe "de empréstimo". A
seqüência é previsível: sai de casa, envolve-se com criminosos, vende
drogas, é estuprada, etc. Fora de todo registro etnográfico ou documentário,
Boteco Toda Noite (tradução equivocada para o que deveria se chamar
"Bar 24 Horas") é simplesmente mais um filme bem-intencionado sobre minorias
e sobre os problemas dos pobres, das mulheres, etc. Como em todo filme
do gênero, que já vem com uma tese pronta e acabada que se trata de encenar,
a "vida real" nunca surpreende e a ficção é sempre muito pobre, pobre
demais até para que haja algum interesse verdadeiro na história dessa
menina (interpretada com alguma força pela menina Tammy Trull). Na falta
de um desejo verdadeiro de cinema, documentário ou ficção, resta ao espectador
um frio questionamento: "A vida é sofrida, OK, mas o diretor fez esse
filme só pra mostrar o que todo mundo já sabia de antemão?" (Ruy Gardnier)
Brittney, Baby, Mais
Uma Vez, de Ludi Boeken
Brittney, baby, one more time, EUA, 2002
Tal e qual o curta com o qual está sendo exibido na Mostra (chamado Glaadiador),
este longa parece uma brincadeira caseira de meia dúzia de amigos, que
inexplicavelmente nos chega para ser exibido e apreciado num evento como
este. Embora seu ponto de partida (um travesti que ganha um concurso de
sósia de Brittney Spears e busca conhecê-la) seja até interessante sob
a ótica da discussão entre real e simulacro na era dos ídolos de consumo,
certamente não é isso que se busca fazer aqui (ou pelo menos apenas muito
marginalmente se insinua o tema). O que se encena é uma comédia de erros
onde o maior erro está na falta de graça, francamente constrangedora.
Longe da agressividade de um filme da Troma (com os quais possui semelhanças)
ou da ironia sem limites de um John Waters, o filme patina o tempo todo
entre o humor grosseiro e a falta de capacidade narrativa. A arte para
consumo rápido e rasteiro, reprodução e idolatria, ainda fica esperando
uma sátira ou uma reflexão adequadas. (Eduardo Valente)
Bumerangue, de
Dragan Marikovic
Boomerang, Iugoslávia, 2001
Logo no início de Bumerangue fica claro que o diretor é fã de Emir
Kusturica, chegando inclusive a escalar Lazar Ristovski (Underground)
num dos papéis principais. O problema é que também bastam alguns minutos
para o humor do filme passar longe da sua influência principal e cair
numa insuportável histeria. O anjo que narra em off o filme prenuncia
uma possível reflexão sobre as tensões na vida sérvia depois da guerra,
mas isto fica numa intenção que nunca se realiza. O que sobra mesmo é
uma comédia sem graça, uma dúzia de tipos histéricos no lugar de personagens,
uma hora e meia que parecem três e a conclusão de que Kusturica pode fazer
mal a cineastas menos talentosos. (Filipe Furtado)
Como Harry Virou
uma Árvore, de Goran Paskaljevic
How Harry became a tree, França/Inglaterra/Irlanda/Itália, 2001
Uma co-produção européia, passada na Irlanda, dirigida por um iugoslavo
a partir de um conto chinês. Um dos vários problemas deste Como Harry
Virou uma Árvore parece justamente não pertencer a lugar algum. A
outra diretamente ligada a esta é de parecer não ter razão para existir.
É como se nenhum dos envolvidos soubesse bem porque entrou no projeto,
o que ajuda a explicar a direção insossa de Paskaljevic e as atuações
absolutamente burocráticas. O filme parece existir num vazio, não se liga
seja a Irlanda (apesar de um esforço de relacioná-lo com a guerra pela
independência), nem a uma tradição oriental ou qualquer investimento pessoal
do diretor. Como Harry Virou uma Árvore existe, ponto, agora por
quê? (Filipe Furtado)
Eu Fui a Secretária
de Hitler, de Othmar Schmiderer e André Heller
Im toten winkel - Hitlers sekretarin, Áustria, 2001
Eduardo Coutinho construiu um nome no chamado "cinema brasileiro da retomada"
ao realizar um cinema que não poderia ser mais simples: uma câmera digital,
pessoas que falam para ela, um entrevistador. Ou seja: não é este modelo
em si que está errado neste filme alemão. É o fato de que (e aí não podia
ser nada mais diverso de Coutinho) ele não parece ter qualquer idéia nova
ou posição de mundo a colocar. Trata-se tão somente de um depoimento de
90 minutos. Depoimento este, inclusive, historicamente importantíssimo,
mas que como produto audiovisual estaria mais adequado nas prateleiras
de um MIS, a disposição como material bruto para um pesquisador, do que
como um "filme". Pois não chega a estabelecer nenhuma relação com a sua
entrevistada a mais do que a simples tribuna para ela contar sua história.
Não há pesquisa de outros depoimentos, imagens, contextualizações: é só
um longo "talking head". E, pior: ela realmente não tem tanto assim de
interessante a dizer. Nas suas primeiras frases e na última insinua-se
um tema fascinante: até que ponto ser jovem e ingênuo pode ser usado como
desculpa pelos alemães "manipulados" por Hitler. Mas, nos 90 minutos entre
esses dois momentos há uma descrição muito precisa da intimidade no bunker
do Fuhrer que, honestamente, não possui maior interesse, além do pitoresco.
Difícil analisar com ferramentos cinematográficas algo que não se pretende
a ser como tal. (Eduardo Valente)
Fácil de Enterrar,
de JT Petty
Soft for digging, EUA, 2002
Antes de qualquer consideração mais direta sobre o filme, parabéns devem
ser dados à Mostra por escolher um autêntico filme independente americano.
Mais, um filme feito, finalizado e projetado em 16mm, fato raríssimo noes
maiores festivais. Trata-se de um exercício de terror, onde a palavra
"exercício" parece muito bem aplicada por ser este um filme de final de
curso de cinema, na NYU. O fato é que o diretor consegue misturar com
talento uma certa ironia necessária ao gênero (especialmente pós-Pânico)
e ao mesmo tempo uma capacidade verdadeira de assustar com bem pouco.
Trabalha inteligentemente os mitos e clichês assustadores do filme de
horror e consegue com pouquíssimos recursos manter a atenção e a tensão
na tela, pois o espectador está constantemente desconcertado de saber
se o filme se leva a sério ou não. Tudo para terminar num hilário plano
final. Corajosa e bem-sucedida (no seu gênero) aposta da Mostra. (Eduardo
Valente)
Falcões,
de Fridrik Thor Fridriksson
Fälkar, Islândia, 2002
Você sabe que está assistindo um "filme de arte" quando um personagem
grava sua própria voz num gravador portátil falando "Nunca estive tão
sozinho". Falcões é tudo de pior que existe nesse cinema
"de arte" e "para festivais": ao mesmo tempo pretensioso, óbvio e banal.
Cai nos maiores clichês de personagens ("a artista maluquinha", "o forasteiro
traumatizado"), ao mesmo tempo em que se constrói com uma aura de seriedade
e pertinência imperdoáveis. Com personagens, diálogos e situações parecendo
sair de uma sátira de manual de roteiros, o filme mistura um melodrama
digno de novela do SBT com um road movie, tudo misturado com um caldo
"moderninho", claro. Você sabe que está em apuros quando o mais divertido
na sessão é ver como os atores parecem com medo de verdade sempre que
contracenam com um falcão solto. Porque o filme mesmo, não interessa nem
por um segundo, só entedia. (Eduardo Valente)
Fique com Meu Coração,
de Trygve Allister Diesen
Tyven Tyven, Noruega, 2001
Um homem seqüestra sua própria filha. Apesar da resistência inicial desta,
acabam se aproximando, resultando em uma cumplicidade envolvente. A trama
não é novidade. Pôde ser vista, com pequenas modificações, no mediano
Milha Zero (Mostra Br 2001). A incrível semelhança de algumas seqüências
(em ambos temos cenas com o pai se barbeando, por exemplo) sugere uma
refilmagem, o que é improvável. A surpresa é que neste filme está muito
melhor resolvido o envolvimento da filha com o pai. Além de que não há
a necessidade de se criar pequenas aventuras com a possível fuga, nem
soluções martirizantes. O filme até ameaça se perder num arroubo de desespero
do pai, mas logo a delicadeza é reestabelecida. Poderia ser aprofundada
a relação dele com a ex-mulher mentirosa. Não é convincente a maneira
como essa personagem, responsável pelo ato extremo do pai, é desenvolvida.
Mesmo com esses problemas, o que fica é um filme simpático, longe de ser
imperdível, mais longe ainda de ser desprezível. (Sérgio Alpendre)
Free Dogma, de
Roger Narbonne e Marie Berthelius
Free Dogma, França, 2002
A proposta não é desinteressante: juntar diversos realizadores para refletir
sobre o significado do Dogma 95 para os filmes que fizeram e pessoalmente
o que significaram para a carreira de cada um. A seleção é um pouco confusa:
Wim Wenders (mesmo sem ter feito um filme-Dogma, hoje encontra-se eleito
como pensador "cult" do cinema contemporâneo), Lars Von Trier (como não
poderia deixar de ser), Jean-Marc Barr e Lone Scherfig (por terem feito
filmes-Dogma). Além deles, o americano Harmony Korine havia sido contactado,
mas despachara a produção do documentário lhes escrevendo um e-mail em
que dizia que as fobias e paranóias o impediam de fazer esse bate-papo.
Descobrimos logo que: a) Jean-Marc Barr e Lone Scherfig não têm nada para
dizer; b) a jornalista Marie Berthelius, que conduz a entrevista, é verdadeiramente
quem faz a mise-en-scène do filme; c) que ela não tem a menor idéia de
que perguntar aos presentes. Daí, aquilo que poderia ser em alguns momentos
uma boa discussão se transforma em platitudes como "como é ser uma realizadora
Dogma num Clube do Bolinha de cineastas homens?", ou a ridícula idéia
de fazer um minuto de silêncio (!!!). Assim, o único interesse verdadeiro
do filme é apenas a ratificação daquilo que já estava implícito no discurso
de Lars Von Trier desde o bochicho do Dogma em Cannes: o Dogma 95 é apenas
uma maneira de restaurar para o cinema a liberdade, a espontaneidade e
a vontade de fazer projetos existencialmente importantes para o cineasta
sem haver tanta necessidade de perfeição técnica e limpidez da película
de 35mm. Ao que todos confirmam que jamais farão um filme-Dogma novamente,
Lars Von Trier mostra que foi até hoje o único a ter de fato aproveitado
(além de publicitariamente, óbvio) o voto de castidade: não foi pelas
regras, as regras só foram feitas porque é divertido fazê-las, foi para
que as pessoas discutissem o significado delas e o que significa fazer
filmes com essa liberdade. Quem olha longe já sabia. (Ruy Gardnier)
Hukkle, de Gyorgy
Pálfi
Hukkle, Hungria, 2002
Sério candidato ao troféu de filme mais esquisito
do Festival, este exemplar húngaro engana seguidamente o olhar do espectador,
que acha entender o que está assistindo, apenas para ser surpreendido
na sequência. Enquanto busca as regras para este jogo, mais de uma vez
se sentirá perdido, eventualmente fascinado, momentaneamente entediado.
Tudo começa com um velhinhi no interior da Hungria, quen anda e se senta
num banco na rua: vai ver a vida na sua cidadezinha passar. O espectador
se prepara para um filme sobre as pequenas coisas banais da vida no campo.
Mas, a encenação não bate: ao invés do naturalismo das objetivas normais
e do ritmo lento da rotina, um excesso de ângulos inesperados, lentes
macro, uma sinfonia de sons e imagens (sem qualquer diálogo). Aí, parece
que se pega o ritmo e as idéias (os animais que surgem seguidamente, compondo
uma analogia com a vida daquelas pessoas, etc), quando um plano transforma
a superfície da película a que assistimos em objeto de cena, num arroubo
metalinguístico aparentemente despropositado. E assim teremos até o fim
do filme desde um avião rasante (com efeitos visuais à la Matrix)
até uma trama subreptícea de assassinatos caseiros, muito bem humorada.
Por estas constantes alterações e surpresas, Hukkle é um filme
muito agradável e interessante, exemplar raro de cinema que ainda desconcerta,
ainda que irregular. (Eduardo Valente)
Investigação sobre
o Mundo Invisível, de Jean-Michel Roux
Enquête sur le monde invisible,
França/Islândia, 2002
Documentário é uma palavra interessante,
pois está geralmente associada a uma noção de realidade. Portanto, um
documentário sobre um mundo invisível (ou seja, que se debruça sobre fenômenos
como fantasmas, monstros do mar, duendes e elfos) parece uma proposta
interessante. Ainda mais partindo do inesperado pressuposto de centrar-se
na Islândia, aparentemente o "centro mundial dos fenômenos inexplicáveis".
No início o filme insinua que vai se tornar efetivamente irritante, porque
parece mais interessado em si mesmo (imagens com lentes e ângulos estranhos
ao entrevistar as pessoas) do que no assunto. Com o tempo, esta impressão
até que se dissipa, pois o filme assume uma postura em si respeitosa pelos
depoimentos. Mas, se parece realmente interessado, também é impressionantemente
desinteressante. Maçante, repetitivo, sem se aprofundar ou revelar quase
nada, o filme é bastante desprovido de interesse. Alguns Globo Repórter
ou reportagens do Fantástico já fora melhores. Talvez até o Padre Quevedo...
(Eduardo Valente)
Jornada pelo Irã, de Kyanoosh
Ayyari
Sopher Iran, Irã, 2002
Uma nota falsa de mil tomans é a protagonista deste filme ingênuo. É como
se estivéssemos vendo um filme iraniano dos anos 80, antes de sabermos
da existência de Kiarostami, Makhmalbaf ou Panahi. A nota vai passando
de mão em mão, dando um retrato das diversas comunidades do país (viajamos
com ela de leste a oeste). Apesar da idéia interessante (lembramos do
recente Violino Vermelho, e do genial Au Hasard Balthazar,
de Bresson) que mostra os detentores da nota entre a culpa e a vergonha
em ter que passá-la para frente, o filme não aprofunda nenhuma das implicações
que promove. Passa superficialmente por discussões feministas (no concurso
da água fria), sai pela tangente de uma outra sobre o aborto e suaviza
uma possível crítica à situação econômica do país. Mas o que atrapalha
mesmo o filme é a inevitável sensação de déjà-vu. Já vimos várias das
situações em outros filmes. Ainda assim, destaque-se a boa sequência do
casamento, com o padrinho arrependido de ter dado a nota fria como contribuição
para os noivos. (Sérgio Alpendre)
Made In Iceland, de Mikael
Torfeson
Gemsar, Islândia, 2002
Para ser bastante sucinto, bastaria acrescentar um palavra para que o
filme se tornasse auto-evidente: Kids made in Iceland. Mas do filme
de Larry Clark este aqui guarda menos o amor pelo efêmero do que o gosto
do exploit, o sensacionalismo e a colocação em evidência de todos os clichês
da "juventude perigosa": drogas, sexo onipresente e sem cuidados, promiscuidade,
ausência de projetos de futuro, violência indiscriminada... a lista não
pára. Filmado para variar com uma câmera digital que privilegia a "fluidez"
e a sensação de real em detrimento da composição de plano e da decupagem.
Isso quando não se apóia vampirescamente nos depoimentos dos personagens,
que antecipam tudo aquilo que acontecerá na história. Do rejeitado e espancado
Doddi à perturbada virgem Kristin, todos despejam suas angústias (sempre
sem muita preocupação de ir além disso) e interagem com pessoas que só
farão mal a elas. No máximo, o filme interessa a senhoras psicólogas de
40 anos desconectadas com o mundo que querem saber "como está a juventude".
Nada mais. (Ruy Gardnier)
Morrison e Eu, de Lenka Hellstedt
Minä ja Morrison, Finlândia, 2002
"Campeão de bilheteria na Finlândia" dizia o cartaz. Assusta um pouco.
O que será que faz a cabeça dos finlandeses? O romance de Milla com Aki,
homem mais velho, é narrado bem ao gosto do moderno cinema escandinavo.
Câmera ágil, montagem esperta, música pop com vocal feminino. Nada de
novo. O filme começa mal, com cacoetes insuportáveis, uma espécie de Para
Sempre Lilja piorado. A comparação não é descabida. Os dois filmes
(e mais uma porção de contemporâneos) ensinam que não se pode confiar
em homem algum. Têm em comum, também, a vontade da protagonista de viver
em outro lugar, bem longe dali. Mas neste blockbuster não há espaço para
bons momentos. O miolo do filme pode até deixar certa esperança. Os namorados
ameaçam arrancar nossa simpatia. Dá vontade de continuar vendo (apesar
de ser o quinto do dia) só para ver o que a diretora vai fazer com seus
personagens. Entretanto, ao revelar os negócios escusos de Aki, a trama
perde de vez qualquer interesse, descambando para um besteirol involuntário.
Como bônus, um plano final estúpido e inconsequente. (Sérgio Alpendre)
Novo, de Jean-Pierre Limosin
Novo, França/Espanha/Suiça, 2002
Uma versão francesa de Amnésia? (ou seja, onde havia crime no filme
americano, aqui a questão central é sexo e relações amorosas) É uma forma
de começar a explicar o novo filme de Limosin, que trata de um personagem
com o mesmo problema do filme de Christopher Nolan: não guarda na memória
os fatos mais recentes. O filme começa muito bem, antes mesmo de explicar
o problema de seu personagem: uma linguagem livre, câmera solta, montagem
associativa, muita sensação e pouca explicação, sexo filmado com conhecimento
de causa. Com o tempo, no entanto, o filme vai se montando numa estrutura
mais tradicional, e menos interessante. A não ser, é claro, para a platéia
masculina, que pode apreciar a beleza de Anna Mouglalis durante todo o
filme. O filme lida com as questões básicas da condição do seu personagem
(até que ponto se pode viver sem guardar memórias, etc), mas ao enquadrá-la
numa trama bastante esquemática, acaba perdendo sua força inicial. Ainda
assim é um filme muito agradável, mas perde a chance de ser algo mais.
(Eduardo Valente)
Ode a Colônia, de Wim Wenders
Viel Passiert
– Der BAP Film, Alemanha, 2001
A impressão inicial é enganosa.
Conduzidos por imagens de shows do grupo BAP e pela narração memorialística
de seu líder/vocalista, Wolfgang Niedecken, somos introduzidos no universo-orgulhoso-
de-si da cidade de Colônia, na Alemanha. Conforme avança o documentário,
o enfoque se encolhe e, infelizmente para quem não tiver ouvidos tão flexíveis,
prioriza a trajetória do roqueiro. O olhar de Wim Wenders, de qualquer
forma, está todo lá. Ele vê o personagem como perpetuador da ingenuidade
juvenil, com seu sopro de idealismo embalado em ar de lamento, que encara
os anos de juventude não como tempo perdido, mas como período a ser mantido
mesmo sem a mesma utopia. Essa visão ingênua e anti-cínica permeia até
os filmes mais pretensiosos do cineasta alemão e fica ainda mais evidente
nesse exemplar de menor ambição. (Cléber Eduardo)
O Pequeno Monge,
de Joo Kyung-Jung
Dong Sung, Coréia, 2002
Três monges budistas buscam a transcendência num templo nas montanhas.
Os mais jovens têm sérias dúvidas quanto a essa busca. Música insuportavelmente
piegas. Imagens calculadamente belas. Trama com forte tendência à chantagem
sentimental. Desejo insaciável do diretor estreante em adocicar cada sequência,
confirmando tal tendência. Atores medíocres vivendo personagens fracos.
Uma possibilidade é abandonada: a garota que tenta seduzir um dos monges
indiretamente contribui para seu abandono do templo, deixando-nos sem
suas provações. Acompanhar as quase duas horas deste dramalhão feito para
americano ver é um verdadeiro suplício. Com a falsa provocação de filmes
como A Ilha e Mentiras e a pieguice deste O Pequeno Monge,
o cinema coreano ainda come poeira (uma exceção: Amor Proibido)
de outras cinematografias orientais. (Sérgio Alpendre)
Perdido em La
Mancha, de
Keith Fulton e Louis Pepe
Lost in La Mancha, Inglaterra, 2000
Típico caso de filme em que os realizadores se prepararam para realizar
um filme, mas o mundo fez com que acabassem com outro. Assim, o que era
pra ser o making of do Don Quixote de Terry Gilliam torna-se um
verdadeiro ensaio sobre as dificuldades insanas de se fazer cinema, na
medida em que o filme vai afundando frente inúmeras dificuldades. Como
já tinham trabalhado com o diretor, e estavam simplesmente registrando
o processo, impressiona a "entrada" que os realizadores tiveram, a qual
permite que tenhamos acesso a um material efetivamente precioso, revelador
mesmo do processo de realização (e, no caso, destruição) de um projeto
de cinema. O embate entre o material foi feito no "calor da hora" com
a edição a posteriori (ou seja, na hora ninguém podia imaginar que terminaria
em fracasso, mas quando foi montado o filme, isso já era um fato) é um
dos fatores de interesse do filme. A leitura quase épica revela também
aspectos da obstinação do artista e das relações conflituosas entre um
mundo que cisma em ser real, com aquele dos sonhos. Mais do que mera curiosidade
de cinéfilo, o filme é dramático o suficiente para quase ser visto com
produto de ficção, mas acima de tudo é uma lição grande sobre natureza
humana. (Eduardo Valente)
Os Pigmeus de
Carlo, de
Radu Mihaileanu
Les pygmées de Carlo, França, 2002
A primeira surpresa do filme é a diferença de escopo do filme anterior
do diretor, o premiado Trem da Vida. Trata-se aqui, ao contrário
do épico histórico anterior, de uma trama bastante modesta, filmada num
estilo direto. Mas, se alguns momentos reprisam o bom humor que era o
principal ponto positivo primeiro filme de Mihaileanu, em compensação
fica faltando a magia e a surpresa. Neste filme, ao contar uma história
claramente pessoal sua, o diretor acaba perdendo um pouco o distanciamento
que torna o filme muito mais longo do que o roteiro pedia e permitiria,
e a encenação e os atores deixam a desejar muitas vezes (assim como a
trilha, francamente irritante). Há momentos de real beleza (a maioria
envolvendo o personagem do diretor de cinema, e alguns com os pigmeus,
como a "rave" na floresta), mas no geral a mistura de mão pesada com excesso
de zelo pelo material torna o filme pouco palatável, ainda que simpático
e cheio de boas intenções. (Eduardo Valente)
Poniente, de
Chus Gutierrez
Poniente, Espanha, 2001
Com certa condecendência, seria possível enxergar neste filme uma investigação
sobre a xenofobia que toma conta da Europa. Foi dessa maneira que o filme
foi defendido por duas espectadoras na saída do cinema. Seria, também,
tapar os olhos para a incapacidade da diretora em desenvolver essa premissa.
Seria, acima de tudo, ignorar a evolução da linguagem cinematográfica
e não se importar com certos efeitos, pra lá de manjados, que pipocam
por todo o filme. Ao mostrar a mudança de vida de Lucía (Cuca Escribano,
bonita, mas péssima atriz), professora que resolve assumir os negócios
do falecido pai, Chus Gutierrez privilegia a necessidade sexual de sua
protagonista, deixando à margem a pertinente discussão sobre o preconceito
que poderia surgir. Na tentativa de costurar as duas questões (racial
e sexual), ela se perde na total falta de empatia de seus personagens,
daí a impossibilidade de se envolver com os problemas de Lucía. A professora
vê seus empregados africanos trabalharem num regime de quase escravidão,
mas sua única preocupação, além de fazer caras e bocas, parece ser o indesejável
jejum sexual. Quando o conflito se agrava e a trama chega a um desfecho
estúpido, a diretora se lembra da questão racial e encerra seu filme com
um plano inesquecível de tão equivocado. Uma câmera-lenta que, longe de
ser tocante (clara intenção), é apenas patética. (Sérgio Alpendre)
Queimando ao Vento,
de Silvio
Soldini
Brucio nel vento, Itália/Suiça, 2002
O iníco do filme é especialmente promissor, porque o personagem principal
narra em primeira pessoa o que vemos, mas revela-se até certo ponto um
mentiroso contumaz, o que torna sua narrativa algo questionável e de valor
duvidoso, sempre um golpe interessante. Soldini mantém o interesse conquistado
por mais um tempo ao fazer do seu narrador um personagem não necessariamente
simpático, e várias das relações (amorosas e de amizade) que ele mantém
parecem deixar isso bem claro. Só que, lá pela metade, o filme dá uma
virada com a chegada de uma personagem, que torna toda a trama um pouco
"novelesca" demais, ainda que não desprovida de beleza nos momentos em
que seus personagens assumem sua parcela melodramática com paixão. Mas
o real problema é que a trama se alonga bem mais do que deveria e, principalmente,
acaba apelando para os óbvios clichês de solução (tornar o rival amoroso
um cara francamente "mau", etc) facilitando mais do que o desejável a
vida do espectador, e ao mesmo tempo, tornando-se apenas um filme comum.
Não ruim, mas não especial como o início indicava que poderia ser. (Eduardo
Valente)
Rota da Seda,
Minha Irmã, de Marat Sarulu
Altyn Kyrghol, Cazaquistão/Quirgistão, 2002
Representando um país de tradição tão pequena de cinema, o filme até começa
bem, entre o naif e o poético, com suas imagens de um extremamente contrastado
preto e branco nos surpreendendo por um caráter muitas vezes quase abstrato
e uma narratividade bastante livre. No entanto, quando tenta esboçar uma
teoria totalizante e metafórica sobre a sociedade local, o filme logo
torn-ase francamente óbvio, repetitivo e bastante ingênuo, mas aí já no
mal sentido. A utilização de um trem como símbolo do trajeto humano na
região é, para ser bem direto, tosca. Além disso, o que havia de gracioso
na precariedade técnica e estética do filme (na filmagem e principalmente
no som) acaba ficando incomodativo pelo excesso de pretensões. Uma pena.
(Eduardo Valente)
O Show Não Pode
Parar, de
Brett Morgen e Nanette Burstein
The kid stays in the picture, EUA, 2002
Robert Evans tem uma das trajetórias mais interessantes dentro do cinema
americano, tendo sido figura central em filmes como O Bebê de Rosemary,
Love Story, O Poderoso Chefão e Chinatown. Como se
pode imaginar, o cara tem é história pra contar. E este filme é basicamente
isso: Robert Evans contando suas histórias. Se você está pensando numa
autobiografia, é exatamente isso, uma vez que o filme é uma adaptação
do livro de mesmo nome para a tela. Então, a melhor forma de pensar no
filme é como se estivéssemos lendo uma autobiografia, com ilustração audiovisual
(algumas das quais interessantíssimas e fruto de pesquisa excepcional,
é verdade). No entanto, nada há de realmente revelador, reflexivo ou especialmente
novo a se aprender seja sobre o cinema americano ou os EUA do período.
E o formato é o mais careta possível, com único foco de interesse maior
o fato do próprio biografado narrar sua vida, o que se é raro no cinema
documentário, certamente se adequa a noção de adaptar uma autobiografia.
Um filme que certamente mantém qualquer um entretido, mas que ao seu final
não é muito mais do que um episódio de uma série Grandes Nomes, do GNT.
(Eduardo Valente)
Todo Dia Deus
nos Beija na Boca, de Sinisa Dragin
In fiecare zi dumnezeu ne saruta pe gura, Romênia, 2002
Filmado num digital P/B dos mais toscos, o filme não esconde um desejo
até mesmo estético de ser desagradável, ao contar a história de um homem
que não consegue conter seus impulsos (seja o de beber e jogar, mas principalmente
o de matar). O grande problema do filme não é que desagrade ou incomode
a platéia, porém, e sim o fato de que seu retrato "quanto mais piora,
pior ainda pode ficar" torna-se rapidamente previsível, e em muitas ocasiões
francamente desinteressante. O filme ainda tem um toque muito leve do
realismo fantástico trágico que costuma marcar o melhor do cinema do Leste
Europeu, mas este vem em doses muito homeopáticas, e certamente menores
do que a violência pour epater que se torna gasta. Com ocasionais
momentos de força, no geral pelo trabalho dos atores, este é mais um exemplar
dos filmes "que poderiam ter sido", lugar comum nesta Mostra de SP. (Eduardo
Valente)
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