Operários,
Camponeses,
de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet
Operai,
Contadini, Itália, 2001
1) Um filme simples
Doze atores, uma paisagem de floresta, muito verde. Caderno de anotações
e marcação das falas empunhados, os atores, todos cabisbaixos
e olhando unicamente para o chão repetem sem intonação
dramatúrgica (sem interpretação naturalístico-teatralizante,
poderíamos dizer) partes de Mulheres de Messina, um livro
de Elio Vittorini. A câmera, por si só, não poderia
ter um trabalho mais simples: planos gerais que cortam para primeiros
planos à medida que os persoangens falam, travellings para mudar
de grupo de personagens. Nada virtuoso ou mirabolante. E ainda assim,
um grande filme, uma abissal depuração da arte cinematogrãfica,
a redução ao básico necessário para que exista
um filme: imagem, som (sempre tomado direto), pessoas em cena, diálogos.
2) Um filme claro
No projeto dos Straub, mais do que o uso da literatura como fonte privilegiada
da palavra (Hölderlin, Kafka) ou a vida dos grandes artistas (Cézanne,
Johann Sebastian Bach), conta como preocupação principal
a clareza. Essa clareza não deve ser tomada do ponto da narrativa
(uma história clara) ou da forma cinematográfica (uma forma
límpida, como em Oliveira ou Bresson), mas antes da confecção
da estrutura da obra. Um filme de Straub-Huillet sempre deixa claro ao
espectador a cada instante tudo que está sendo feito. Se grandes
obras espantam o espectador por seu especializado grau de virtuosismo
na feitura (o baile final de O Leopardo de Visconti, os filmes
de Brian de Palma), onde a beleza se produz a partir de uma grande lacuna
entre o know-how do diretor e o do espectador, o cinema dos Straub
fascina pelo exato reverso: aqui nenhuma diferença entre o conhecimento
daquele que vê e daquele que produz, nenhuma carta na manga, nenhuma
tentativa de emocionar por um imprevisto estético: está
tudo lá diante, apodere-se se possível, acompanhe a obra
em seu próprio processo, sua própria estrutura. Sabemos
desde A Crônica de Anna Magdalena Bach que o cinema dos Straub
era claro. O que não sabíamos, provavelmente, é que
o fato desse filme inaugural (mesmo que o primeiro tenha sido Machorka-Muff)
levar para a frente da tela todas as fontes de iluminação
tinha antes de tudo um valor de manifesto: jamais esconder ou fingir qualquer
coisa em sua relação com o espectador. Projeto louco, de
um fôlego absurdo afinal, fazem isso há 40 anos
e de uma dimensão mais louca ainda, a se julgar pelos caminhos
que a arte audiovisual tomou logo cedo e que hoje mais do que nunca segue:
acabar com a sedução como modo de relação
que entretém o espectador na cadeira com o filme que vê.
Dessa forma, os Straub são os únicos no mundo (com exceção
talvez de Guy Debord e dos filmes de Godard realizados pelo grupo Dziga
Vertov) que fazem um cinema estritamente marxista na relação
com o espectador: não há aqui nenhum privilégio dos
meios de produção estética e a arte não se
constrói por esse privilégio (esse saber-fazer).
3) A doce palavra
Operários, Camponeses é o segundo filme de Straub/Huillet
baseado nos escritos de Elio Vittorini, escritor italiano do século
XX. O primeiro é Sicilia! (Gente da Sicilia, 1999),
um pequeno filme em preto-e-branco realizado a propósito da viagem
de volta de um homem de meia idade a sua terra natal para reencontrar
a mãe. Operários, Camponeses segue antes um caminho
inverso: é grande (2h07) e em cores, e acompanha a vida e os conflitos
de um grupo de pessoas associadas por necessidade numa cidade, num rigoroso
inverno, em tempos de fim de guerra (supõe-se a 2ª Mundial).
Mas como em Sicilia!, em Operários, Camponeses a
verdadeira vedete é a palavra falada. É menos o respeito
dócil à palavra escrita que morfeticamente povoa o cinema
"sobre literatura" do que o amor à doce palavra falada,
poder de transformação, de comunicação e de
beleza própria. A fala é aqui distorcida, retorcida, dissociada
de se poder encantatório do espetáculo teatral (técnicas
de vocalização e interpretação com as que
podemos ver em A Última Carta, fracassada e metida-a-besta
incursão de Frederick Wiseman pela ficção). Monocórdia
quase, ela respeita não o conteúdo implícito em cada
coisa que é dita, mas antes a materialidade da fala, o gosto por
cada sílaba dita com precisão, a força de expressão
de cada vogal alongada própria à língua italiana.
4) O entrecho,
a cesura
Não precisava, pois há maneiras de fazer a ficção
funcionar que dispensam entrecho (intriga) e cesura (ponto de virada).
Mas há, e funcionam como tal. Começamos o filme em dois
grupos de trabalhadores. Uns são os operários, e como tal
trabalham todos os dias à exceção dos domingos, até
a noite. Os outros são os camponeses, que trabalham todos os dias
por três estações, de sol a sol, e que no inverno
descansam porque a terra (e a comunidade também) precisa descansar.
Compondo todos juntos uma comunidade em estado de emergência, não
poderia deixar de nascer um conflito básico entre eles: os operários
chamam os camponeses de preguiçosos, os camponeses recusam-se a
receber as ordens de gente que não acreditam serem superiores a
eles). A composição do filme respeita e define a separação:
no lado esquerdo, juntos, três operários; no lado direito,
três camponeses. Durante uma hora, basicamente, eles falam sobre
o ocorrido, sobre os três meses e as dificuldades de convivência
na estação, e sempre sobre outros, os verdadeiros "atores"
sociais. Quando já estamos fascinados e já dispostos a entregarmos
tudo àquela forma até o final do filme, a cesura aparece
e nos entrega outro filme: depois de ouvirmos camponeses e operários
falarem sobre o "Cara Feia" e sobre as discussões que
ele tinha com o resto do grupo, somos de cara apresentados a mais meia-dúzia
de personagens, dessa feita os verdadeiros protagonistas, aqueles que
tomam as posições e respondem por elas. Nesse momento, há
uma espécie de vacilo: não sabemos mais onde estamos pisando,
as regras mudam e demoramos a apreendê-las. A pasagem de um momento
a outro do filme é arrebatadora, mas o gosto se perde um pouco.
Quando "aqueles de quem se fala" passa a ser "quem fala",
o filme desliza sem muita fluência, e demora-se a reaprender a gostar.
Mas a demora não será muita.
5) Gostar de Straub
Serge Daney falava de uma "pedagogia straubiana". De fato, não
é um didatismo do cinema aquilo que Straub/Huillet buscam, uma
maneira de "fazer aprender" com o cinema, mas propriamente uma
pedagogia do audiovisual (em tempo, a outra série "pedagógica"
de Daney era Jean-Luc Godard). Um filme de Straub/Huillet, por sua simplicidade,
por sua clareza, pela ausência da relação de fetiche,
nos ensina a ver de forma diferente. Dessa forma, a intriga de todos seus
filmes é inicialmente uma intriga com o cinema, com a história
e os rumos que o cinema segue. Não se trata propriamente de cinema
experimental, mas antes de uma outra linhagem, da tentativa de criação
e construção de um outro tipo de discurso, mais direto,
sem passar pelas regras de codificação do cinema clássico.
Não se pense que isso oferece simplesmente um filme racional, frio,
sem emoção. Emoção há, só que
tomada numa outra linha. Podemos estar impedidos de chorar com um reencontro
ou um beijo num filme de Straub/Huillet, mas sempre haverá a chance
de nos emocionarmos com um camponês narrando a feitura da ricota
ou o uso simbõlico do louro. Ou simplesmente com a linda dissonância
produzida por 2h07 de falatório sobre as penúrias de um
rigoroso inverno tendo por trás de si a grande exuberância
de uma floresta verde, primorosamente filmada em luz natural. Uma pedagogia
assim é possível.
Ruy Gardnier
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