Além da Linha Vermelha,
de Terrence Malick


The Thin Red Line, EUA, 1998


Além da Linha Vermelha de Terrence Malick


Pouco mais de seis meses separaram a estréia de três filmes de célebres reclusos do cinema norte-americano. George Lucas lançava seu primeiro filme como diretor desde 1977; Eyes Wide Shut via finalmente a luz do dia depois da morte de seu criador, Stanley Kubrick; e Além da Linha Vermelha trazia de volta às telas, depois de vinte anos de ausência, o nome de Terrence Malick.

Coincidência ou não, um outro fator comum aproxima as trajetórias dos três cineastas: a tentativa de conquistar a independência criativa sem abrir mão dos grandes orçamentos e das condições de produção que só os grandes estúdios podem oferecer. Lucas, o menos talentoso e financeiramente mais bem sucedido dos três, se beneficiou da construção de um império financeiro do qual, em última instância, Episódio I - A Ameaça Fantasma é o emblema máximo: um produto da mais alta sofisticação tecnológica voltado para o consumo rápido e rasteiro, sem mais. Kubrick, por sua vez, construiu para si um castelo na europa e de lá nunca mais saiu depois de uma experiência traumática como diretor contratado em Hollywood.

Malick é o caso mais radical dos três. Os motivos de sua reclusão são obscuros -- descobri-los, lançando mão das mais variadas teorias e conjecturas, foi um dos jogos favoritos da imprensa cultural norte-americana à época do lançamento em cinemas de Linha Vermelha. Malick recusou-se a dar entrevistas ou fazer qualquer aparição pública para divulgar seu filme. Seu último depoimento foi publicado em 1974.

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Além da Linha Vermelha compartilha com Eyes Wide Shut e Ameaça Fantasma um certo gosto pela referência nostálgica a modelos anacrônicos de cinema. Enquanto o filme de Lucas retoma fórmulas e padrões estéticos de gêneros há muito abandonados (o seriado de aventuras, o western e o épico), Kubrick e Malick optam por uma aproximação a uma estética ainda mais remota: a do cinema mudo.

Tanto EWS quanto Linha Vermelha repousam sobre uma proposta estética que, à maneira de revisão, procuram potencializar ao máximo a síntese imagética e a articulação dos planos (com atenção especial ao ritmo) e minimizar a palavra. Se pensarmos em algumas das sequências cruciais do primeiro (a orgia mascarada, a perseguição), toda força está concentrada na vocação expressionista da imagem, sem a necessidade de suportes. Linha Vermelha começa tomando a liberdade de dialogar diretamente com Tabu, tomando o filme de Murnau como um modelo de olhar inocente.

(Vale notar que o modernismo de que Malick descende é bem diverso da opção Kubrickiana pela ironia. Para isto bastaria uma comparação entre Cinzas do Paraíso e Barry Lyndon -- os dois filmes de época mais ambiciosos que conheço -- ou entre Linha Vermelha e Nascido para Matar.)

A narração em off quase ininterrupta das personagens de Malick fornece as bases de um discurso com o qual as imagens nem sempre estão de acordo. Não há um princípio claro e sistemático na organização dos pontos de vista: a câmera ocupa espaços diversos, assume posições diversas; mas ela é autônoma, tem vontade própria e nunca assume o ponto de vista das personagens. Não se trata do cinema como veículo de expressão interior; as concepções de personagem coletiva e de intersubjetividade servem como elementos para uma experiência que envolve outros fatores diversos. O cinema é para Malick um instrumento de investigação filosófica.

Cinzas no Paraíso parte de um princípio semelhante (e novamente de Murnau, o de City Girl) para procurar dar forma à consciência de uma época (a década de 1910). A questão histórica não é tão importante em Linha Vermelha, o que empresta ao filme um tom universalista que desagrada a muitos. Sem contradição, Malick persegue numa tentativa de radiografar a alma americana através de sua personagem coletiva (embora muito distante dos primeiros filmes, impregnados e cercados pela "Americana"). Há, por vezes, guinadas nesta direção: um exemplo seria a personagem de John Savage -- o soldado demente -- que funciona, à maneira dos habitantes do Shock Corridor de Fuller, como uma manifestação viva do inconsciente americano.

A atualidade do filme é evidente. Em plena escalada militar da era Bushinho, quando a dor da perda cede espaço ao desejo de vingança a todo custo, o apelo à meditação de Além da Linha Vermelha ganha ares de urgência.

Fernando Verissimo