Julieta,
de Christoph Stark
Julieta,
Alemanha, 2001
A origem do roteiro de Julieta é um livro do alemão
Henrich Von Kleist (1777-1811), autor constantemente adaptado pelos diretores
de seu país. O mesmo romance havia gerado o drama de época
Marquesa DŽO (1976), de Eric Rohmer, no qual os valores burgueses
eram postos à prova, em decorrência de um gesto extremo de
paixão, e se alteravam por força da conveniência social.
Na nova adaptação, temos outro contexto. Estamos em dias
contemporâneos. Os tais valores burgueses andam tão confusos,
tão flexíveis e tão dissimulados que, a rigor, não
há quase nada a ser colocado à prova. Tudo já foi
dinamitado e precisa ser reconstruído. Do sexo individualista e
anônimo, feito para suprir uma necessidade orgânica e sem
nenhum valor de troca-comunicação, à morte do sagrado
na edificação familiar.
No filme de Rohmer,
uma viúva nobre, engravidada por alguém de identidade desconhecida,
enquanto estava desacordada, é rechaçada pelo pai. O enfoque
valoriza a reação negativa a seu estado de embaraço.
Ela tem de se isolar para não passar vergonha. Na versão
atual, a situação inicial se repete, mas não as conseqüências.
Uma mocinha passa por uma experiência sexual inconsciente depois
de entupir-se de drogas, perder os sentidos e perder-se do namorado durante
uma concorridíssima rave de rua em Berlim, o Love Parade. Ao acordar
no dia seguinte, sem saber de sua condição de vítima
da transa passiva, será ajudada pelo agressor. Vai descobrir-se
grávida pouco tempo depois e reencontrará o mesmo rapaz
na condição de amigo de seu namorado.
Até os momentos
finais, que se tornam relevantes pelo rumo dado pela protagonista à
sua vida depois de saber do ocorrido na noite da rave, o filme gira em
falso. Mas seu retrato do universo e do comportamento dos personagens,
representantes de um segmento de juventude ocidental, supera em interesse
a especificidade cinematográfica. Os personagens são inconseqüentes,
vivem apenas para o momento, não têm consciência de
si mesmos ou do outro, são incertos em relação às
emoções e alteram a percepção pelas drogas,
até o ponto de as perder de vez, em um processo de alienação,
não de ampliação da realidade. As transgressões
às normas e a intensidade de suas vidas flertam com uma sensação
de quase vazio. Em vez de problematizarem suas experiências, por
meio da linguagem verbal, como em Rohmer, eles apenas ouvem música
eletrônica barulhenta. Sem palavras.
Não se está
apenas mostrando uma situação em específico e um
caso isolado. O sexo com a moça apagada reflete a crise de um tempo.
É sexo sem rosto, sem memória, sem intercâmbio. Uma
transa consigo próprio, com uma imagem, com um corpo sem nome,
sem significado extra-físico, sem possibilidade de transcendência,
talvez reflexo de uma cultura, a ocidental e moderna, que prioriza a superfície
e a imagem. O diretor não condena os personagens. Busca compreendê-los
em suas batidas de cabeças e na ausência de rumo e de perspectivas
para elaborar um projeto de caminhada. E é tão compreensível
que legitima as atitudes ao mostrá-los como vítimas de um
tempo, de um estado de coisas e de si mesmos. No entanto, leva-os, de
uma forma ou de outra, à responsabilidade. Sintomas ou não
de algo maior, eles têm de arcar com as conseqüências
de suas ações. Mesmo se for para se redimirem e passarem
a borracha por meio do amor.
Há duas boas
soluções cinematográficas em Julieta. Uma
se passa em um restaurante chinês. É o momento em que, depois
de receber comidinha na boca do amigo do namorado, seu carinhoso estuprador,
a protagonista muda de expressão. Seu rosto traduz uma sensação
de descoberta, de quem percebe uma novidade, um clima romântico
até então ignorado. Nos segundos seguintes, ela corre para
o banheiro. A mudança de expressão era de quem estava para
por a comida para fora. Enjôo de gravidez. Como sabemos quem é
o rapaz, o que fez com ela, a expressão adquire sentido adicional.
Revela uma possível atração da parte dela, mas a
repulsa que mais tarde sentirá. A outra boa saída cinematográfica
é recorrente. Trata-se de uma tábua de ligação
entre dois apartamentos, constantemente atravessada pelos personagens,
que diz muito da própria situação de vida deles:
em cima de uma tábua, sempre em vias de cair, de se machucar, mas
sempre em movimento, transitando de um estado a outro.
Christoph Nark busca
uma linguagem acessível aos jovens urbanos para falar sobre eles
próprios. Com experiência anterior em publicidade e videoclipe,
tenta seduzir a platéia com música eletrônica, ritmo
predominantemente dinâmico e eventualmente acelerado, uma câmera
espertinha que não chega a embaralhar a vista. Características
já definidas, na saída de uma sessão para a imprensa,
como típicas de Malhação, a novela teen da
Rede Globo. Por falta de conhecimento dessa, é impossível
concordar ou discordar. Mas não há demérito algum
em se buscar artifícios narrativos que, sem perda de seu núcleo
dramático, ajudem um tema a obter maior aceitação.
O objetivo de Julieta, afinal, parece claro como clara de ovo:
é falar dos jovens, em especial para os jovens. E não faz
feio ao cumprir esse caminho traçado.
Também pode-se
acusar o filme de ser mera variação do modelo dramático-narrativo
de vertentes mais ousadinhas do cinema independente americano. Sem dúvida.
Mas talvez se trate menos de uma cópia e mais de um reflexo da
globalização cultural de mão quase única,
na qual variações de um mesmo modelo cinematográfico
passam a ser praticadas por diretores de origens distintas, mas aproximados
pela absorção da tal cultura dominante. Essa característica
faz de Julieta um filme sintomático de hoje. É autêntico
e sincero, mas nem de longe original. Mais ou menos como boa parte da
juventude que, mesmo estando em países diferentes, veste-se de
forma mais ou menos parecida, ouve mais ou menos as mesmas músicas,
assistem mais ou menos os mesmos filmes e, provavelmente, vivem mais ou
menos os mesmos problemas. O fim das fronteiras também está
na trilha-sonora, que inclui "Mas Que Nada", de Jorge Ben.
Cléber Eduardo
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