Danièle Huillet, Jean-Marie Straub: Cineastas,
de Pedro Costa

Danièle Huillet, Jean-Marie Starub: cineastes, França, 1999


Nada mais chato, a priori, do que um documentário sobre arte e artistas. Das duas uma: ou veremos uma asséptica reavaliação da trajetória destes artistas (que até pode ser informativa, mas geralmente é muito menos interessante do que ver a arte deles em si), ou teremos uma entrevista na qual o entrevistador invariavelmente tenta levantar a bola para cortadas pré-programadas do seu objeto. Em ambos os casos, em bom português, um saco.

Pois é preciso reavaliar toda esta posição a partir do filmaço que Pedro Costa nos apresenta. E é importante que se frise isso: por mais fascinantes que sejam seus dois objetos de reportagem escolhidos, é o talento e o olhar astuto de Costa que fazem deste um filme superior. Não raro assistimos a documentários banais sobre grandes figuras, aos quais se segue o comentário indefectível: "o retratado é tão interessante que nem é importante analisar o filme". Pois bem, a partir deste filme, não mais se pode aceitar tal (já bastante discutível) argumento. Objeto é uma coisa, realização cinematográfica sobre ele é outra.

Seria fácil para Pedro Costa pegar cenas dos vários filmes do casal Huillet/Straub e colocá-los para comentar, ou chamar "especialistas" para fazê-lo, ou ainda correr atrás de uma pesquisa de pessoas e imagens que contextualizem quem são estes artistas. Mas ele é muito mais inteligente e sutil do que isso. Primeiro, a grande idéia: pegar os artistas no seu processo criativo. Sendo seu objeto não apenas uma dupla de diretores, mas um casal, a escolha funciona ainda mais. Segunda opção certeira: não ir à filmagem, e sim à moviola acompanhar o processo de montagem. Muito mais quieto, silencioso, racional e pessoal, é neste momento que as relações dos dois com a arte do cinema, e entre si, vêm à tona mais claramente.

Finalmente, o golpe de mestre final: o formato visual e narrativo de compor este retrato. Costa posiciona sua câmera numa posição contemplativa, parada, no fundo da sala da moviola. De um lado, a porta de saída, de outro a moviola em si. Huillet é quem trabalha na máquina, Straub vagueia pelo espaço enquanto eles trocam idéias. E ali ficamos, parados. O documentarista não faz perguntas, não sugere pesquisas. Só registra um processo (com eventuais closes no que se vê na tela da moviola para entendermos do que eles falam). Mas, este "só" revela-se um mundo, por causa das figuras em cena: o histrionismo, as citações cinematográficas e as teorias de Straub, o pragmatismo, a falta de paciência e o feeling do tempo da montagem de Huillet passam a dominar a cena. Vamos entrando naquela relação amorosa/profissional/artística de anos, e logo parece que conhecemos aquelas pessoas há muito tempo. Pedro Costa consegue nos colocar dentro desta sala de montagem, assim como ele já havia nos colocado "no quarto de Vanda" em outro filme seu.

E o que aprendemos em uma hora e cinquenta naquela sala vale por pelo menos uns dois cursos universitários de cinema: noções de montagem, de direção de atores, de fotografia, de arte, de teoria do cinema. E não apenas noções abstratas, mas vendo-as enquanto são colocadas em prática na obra-prima do casal, Gente da Sicília. Mas o filme não é só sobre cinema: o espectador pode começar a perceber aquelas duas pessoas quase como personagens ficcionais. Entender a encenação de Straub no seu entra-e-sai da sala, se compadecer dos pedidos de silêncio e concentração de Huillet, se emocionar com as frases que um começa e outro termina, ou com as informações que um lança e outro corrige. No seu cantinho, Costa não interfere com o que vemos nem por meio de luz, então muita vezes estamos num verdadeiro teatro de sombras, sob a contraluz frágil que sai da moviola, e onde as vozes dos dois, dos personagens do filme e da moviola em funcionamento são a música que nos embala nesta viagem pelo pensar e pelo fazer artístico (especificamente o cinematográfico, mas não só).

Há uma beleza quase sobrenatural (que ressoa especial para quem já tenha trabalhado na montagem de um filme) em ver o casal discutindo a origem de uma camisa usada por um ator enquanto dá forma final à montagem de uma sequência. Ou ainda nas reflexões de Straub sobre os atores e o naturalismo, e sobre a batalha entre idéias e matéria que é o fazer cinema. Mas nenhum momento é tão belo quanto o (propositalmente usado assim) final, onde pela primeira vez Straub se refere a Huillet como sua companheira, a mulher por quem é apaixonado. Ao fundo, aparentemente impassível, ela mexe nas sobras de uma cena. Nenhum momento no cinema captara ainda com tamanha grandeza a relação artística e emocional de uma colaboração criativa.

Filme estupendo e aula de cinema, por fim o trabalho de Costa pode ser lido ainda como um manifesto (nem um pouco panfletário) por um cinema de reflexão e de emoção e entrega (o perfeccionismo e o carinho dos dois pelo que fazem não pára de surpreender). Mais ainda: um singelo libelo pelo trabalho na moviola, que com seu tempo dilatado parece ser o instrumento que permite tanto pensamento, tanta emoção a aflorar enquanto, prazerosamente, se constrói um filme. Se Gente da Sicília já era uma obra-prima, sua realização permitiu o surgimento de outra.

Eduardo Valente