O Homem Sem Passado,
de Aki Kaurismaki

Mies Vailla Menneisyyttä, Finlândia, 2002

Como fazer uma fábula contemporânea sobre o estranhamento do presente e o processo de reificação que progressivamente intermedia nossas relações com a sociedade? Tome um homem: ele chega de trem numa cidade nova. Caminhando pela rua, ele é impiedosamente espancado por um grupo de ladrões, que de quebra lhe roubam todos os pertences pessoais. Levado ao hospital, sobrevive em aparelhos até que todos os sinais da máquina (mais uma vez aí a vida, a humanidade é um índice a ser considerado eletronicamente) revelam que esse homem não tem mais atividade cerebral ou batimentos cardíacos. Quando o barulhinho já clássico de morte começa a povoar nossos ouvidos, o médico e a enfermeira saem da sala. Mas surpresa: esse personagem vive. Talvez não: talvez ele não seja mais um personagem, alguém que tenha uma individualidade, um interior ao qual poderíamos designar "sujeito". Ele é simplesmente uma presença, um dado a mais. Amnésico, sem saber seu nome ou proveniência, desprovido de quaisquer atributos psíquicos ou materiais, ele precisa construir do zero uma existência para ele.

A maior parte das histórias saberia por onde seguir seu caminho: o personagem vai levar o longo do filme para descobrir quem ele é, reencontrar suas raízes, retomar a vida que vivia. O herói sem passado de Aki Kaurismaki faz o percurso inverso. Ele quer viver como ele é, não como aquilo que ele não é mais: ele aceita positivamente sua pecha de homem sem passado. A estranha descoberta chega rapidamente: a sociedade não permite homens sem passado, ela precisa que a cada individualidade seja atribuído um nome, um cartão de identificação, uma atividade. Nessa inadequação entre um personagem que não pode (nem quer) viver com dados que são estranhos a ele e uma sociedade que o obriga em algum grau a ter algum tipo de subjetividade institucionalizável é que O Homem Passado consegue produzir uma beleza difícil, estranha, às vezes cínica, às vezes apenas desencantada, onde o riso (sim, curiosamente trata-se de uma comédia) serve como elemento deflagrador jogos sociais que de alguma forma impedem e atrapalham nosso herói sem nome: precisar de um nome para abrir uma conta, para encontrar um trabalho, para não ser preso...

Filmado numa palheta de cores fria com algum calor (os negros sempre sobressaem, mas as cores fortes são bastante pregnantes), O Homem Sem Passado lembra cromaticamente os filmes alemães dos anos 70, da geração Wenders-Fassbinder-Herzog. Curiosamente, o filme desenvolve para além da fotografia um possível diálogo com essa trinca. Se a preocupação maior desses três cineastas era a inadequação de seus personagens a uma sociedade que não os aceita (Fassbinder) ou suporta (Herzog), a de O Homem Sem Passado não é diferente: mostra como um homem precisa construir para si um mundo diferente daquele que é dado como padrão na sociedade, e seu corolário, ou seja, como a sociedade faz de tudo para dificultar essa possibilidade de linha de fuga. Assim, fica tranqüilamente do lado do Wenders de Alice nas Cidades ou No Decurso do Tempo.

Deixado nu de lembranças e com poucos farrapos para vestir, nosso homem sem passado aos poucos constrói para si sua vida possível: aluga fiado um trêiler para ter um teto, procura emprego, consegue amizades (naturalmente, amizades sem diálogos). Procura o exército de salvação para não morrer de fome, consegue novas roupas e uma namorada. Mas a um homem sem nome só é permitida uma vida anônima: para trabalhar precisa ter uma conta em banco (não há outra forma de pagamento além do cheque), e para ter uma conta em banco é preciso ter um nome. O Homem Sem Passado funciona de acordo com a lógica do absurdo: como é possível que hoje precisemos ter todas as nossas relações mediadas por instâncias burocráticas (bancárias, de bancos de dados?), como todo tipo de relação de identidade (nossas carteiras de identificação, não por acaso, são "de identidade") pode se revelar tão coercitivo quanto um caso de polícia. Para não duvidarmos, é o próprio Kaurismaki que o insinua: presente num banco no momento de um roubo, o homem sem nome e sem passado é colocado numa cela. Do ponto de vista do absurdo, a cena seguinte é a mais forte do filme: o delegado e o advogado discutem entre si os textos da lei, enquanto o protagonista permanece fora do centro da discussão.

O Homem Sem Passado é uma comédia triste. De um lado, as situações e as tiradas de alguns personagens (o ladrão do banco quer uma quantia exata – saberemos depois que foi roubado pelo banco – e pergunta à caixa se não haveria dinheiro a mais, ao que ela responde categoricamente: "pode ter certeza que não, faz parte do meu trabalho") são hilariantes, de um humor mordaz; de outro, o silêncio generalizado e os rostos sempre baixos, bressonianos, e o próprio andamento do filme entregam ao espectador uma recepção fria, agridoce. Afinal, não é uma tragédia nem uma comédia, mas um drama: o drama dos milhões de anônimos, pobres e excluídos em geral da lógica social que o filme parece evocar a cada momento. Ao longo do filme, nosso personagem tem a possibilidade de reencontrar sua família, de redescobrir seu nome, de voltar a viver a vida que vivia. Sua vida anterior, descobre ele, era protocolar, desertificada, sem ânimo próprio (um casamento em banho maria, vida sem satisfação). Nos anônimos, ao contrário, há vida, há calor, existe até a possibilidade de uma política, pois esses anônimos são os únicos que habitam a polis. Os outros, aqueles com nome, habitam apenas suas casas e repartições. Acreditaria-se que O Homem Sem Passado é a tradução cinematográfica das teorias de Jacques Rancière. Tanto melhor para os dois. O Homem Sem Passado brilha com força.

Ruy Gardnier